O Cavalo de Turim (A Torinói Ló - 2011)
Turim, 3 de janeiro de 1889. O filósofo Friedrich Nietzsche
sai de casa. Ali perto um camponês luta com a teimosia do seu cavalo, que se
recusa a obedecer. O homem perde a paciência e começa a chicotear o animal.
Nietzsche aproxima-se e tenta impedir a brutalidade dos golpes com o seu
próprio corpo, abraçando o cavalo. Naquele momento perde os sentidos e é levado
para casa, permanecendo em silêncio por dois dias. A partir daquele trágico
evento, Nietzsche nunca mais recuperará a razão, ficando aos cuidados da sua
mãe e irmãs até o dia de sua morte, em 25 de agosto de 1900. O que aconteceu
com o cavalo?
O cinema do húngaro Béla Tarr preenche o tempo com longas
tomadas, convidando o espectador a respirar o mesmo ar dos personagens, não é
uma proposta popular. É um equívoco comparar com Tarkovski, ou Mizoguchi, como
a crítica frequentemente faz, as poesias visuais destes diretores, até mesmo
nos projetos mais densos, essencialmente buscavam conexão emocional. Tarr
parece querer apenas testar a paciência do público. Eu tive contato com sua
obra já no período inicial de garimpo na internet, mas eu nunca havia me
apaixonado por seu trabalho, o mais próximo disto foi com “As Harmonias de
Werckmeister”. Como aquele teatral degustador de whisky que, com uma cheirada
na taça, afirma reconhecer trinta aromas diferentes, eu ignorava o tédio
dominante e celebrava especificamente o elemento que havia me agradado, ainda
que representasse apenas alguns minutos. A fase natural de autoafirmação intelectual
que todo adolescente atravessa (e boa parte tolamente carrega para a vida
adulta) fez com que eu defendesse Béla Tarr em discussões virtuais, apesar de
saber que, nas horas vagas, lutava para me manter acordado em seus filmes. Até
que vi “O Cavalo de Turim”, a despedida dele, quando estreou tardiamente nos
cinemas brasileiros em 2016. Analisando friamente, ele é insuportavelmente lento,
irritante, mas, pela primeira vez em sua filmografia, estas definições faziam
sentido dentro da proposta simples e brilhante. O texto, ponto mais fraco do
diretor, mantido inteligentemente no mínimo necessário. Eu, pela primeira vez,
poderia dizer que havia me apaixonado verdadeiramente por um de seus filmes.
A cada dia que passa, o tempo mostrado diminui, a contagem
regressiva da vida. O isolamento de pai (János Derzsi) e filha (Erika Bók) se
torna mais impenetrável, a trilha sonora repetitiva composta por Mihály Vig, uma
missa fúnebre. Cada ação obedece ao tempo real necessário para ser realizada, o
peso dos segundos potencializando o drama. O espectador é estimulado a se
colocar na pele dos dois, convidado a metaforicamente reagir como Nietzsche, “abraçar
o cavalo”, sofrer com a monotonia, e, por conseguinte, refletir sobre os conceitos
trabalhados pelo filósofo alemão em suas obras. A ventania castiga seus corpos
quando são obrigados diariamente a deixar a casa no campo para buscar água no
poço, tão próximo, tão distante. Eles já não se falam, a interação se resume a
palavras de ordem, como se adestrassem um animal; já não se olham nos olhos, os
rituais se repetem cada vez com menos organicidade. Ao auxiliar seu pai nas
manhãs a vestir seu traje, já que tem seu braço direito imobilizado, ela, que
no início se preocupava com cada detalhe, opera agora com total desapego, tentando
executar a ação da forma mais rápida, a resignação deu lugar à inconformidade
que, conscientemente, nunca será sanada. A comida, batata cozida, existe apenas
como recurso de sobrevivência, quando o desejo vital se perde, a fome
naturalmente segue existindo, cada minuto mais forte, mas é dolorosamente ignorada.
Os corpos, enfim, desistem, não há reação, assim como o
cavalo machucado que não consegue mais responder aos brados do dono. A
escuridão, a realidade da noite, não pode mais ser enfrentada pelos candeeiros,
o poço secou, a vida não tem sentido, o desespero por saber que a inexorável degeneração
física aprisiona o indivíduo à espera do triste fim é o que move a trama, a nietzschiana
desconstrução do mundo em seis dias.
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