sexta-feira, 8 de abril de 2016

"Cacaso na Corda Bamba", de José Joaquim Salles e PH Souza


Cacaso na Corda Bamba (2016)
É interessante que, de início, os primeiros depoimentos tentam resgatar a imagem do homenageado, como ele se vestia, o estilo dos óculos que imitava o de John Lennon, o desenho do cabelo, a altura, um menino num corpo de adulto, o professor hippie, o tímido com dificuldade de apresentar seu trabalho em público. Os registros dele em vídeos resgatados, a moldura em traços coloridos de giz, seguindo o espírito dos desenhos dele, realçam a infantilidade em seu conceito libertário, sem cabrestos, refletindo as múltiplas referências que ele utilizava em sua expressão artística. Cacaso escutava verdadeiramente o outro, comprazia-se com a companhia e, entregue no jogo da empatia, criava poemas como que celebrando a beleza da interação. Logo, todos aqueles ao redor, alunos e amigos, encontrando porto seguro naquela fonte de inspiração, de forma espontânea, já que ele se recusava a doutrinar, sentiam o despertar da criatividade.

Fascina o contraste entre o impulso dele pela respeitabilidade adquirida com a disciplina, confrontada diariamente por sua incapacidade de entender a vida sem o elemento constante do caos. Ele não concebia a criação sem o atrito entre esses dois fatores antagônicos. É importante o segmento que aborda a relação dele com o pai, o símbolo de um futuro profissional relacionado aos negócios rurais da família, um homem que não valorizava a arte da escrita, aquele passatempo tolo que havia cativado a plena atenção do jovem. O homem da fazenda considerava aqueles versinhos, como ele se referia aos textos filosóficos do filho, um revoltante atraso de vida. A mãe, por outro lado, enxergava no menino a esperança de que alguma parte dela iria se rebelar àquela realidade tão desencantada e industrial. Nesse ponto, o entrelaçar de trechos de seus poemas se torna não somente revelador da essência de Antônio Carlos de Brito, desnudado em sua angústia, como também enriquece a compreensão da resiliência que o tornou Cacaso. Uma gênese forjada pela gratidão dele pela mãe.

É interessante como o documentário mostra que ele se reinventou no processo de realizar seu próprio livro, e, com seu sábio uso do silêncio, sendo beneficiado inconscientemente por sua timidez, acabou lapidando sua verve crítica. O segredo é que em sua expressão, nos poemas, poesias e canções, não havia interesse em complicar, engendrar uma intelectualidade distante e prolixa, isso ele deixava para os ídolos de barro, Cacaso articulava a sua arte com a carinhosa dedicação de um bom professor apaixonado pela matéria. Ele era simples, o traço mais marcante de genialidade, deixando transparecer a paixão que sentia pela literatura. A verdade do autor sempre alcança o leitor. Ao abalar os alicerces da arquitetura rígida da poesia dos mais antigos, aqueles sonetos impecáveis de rimas e sílabas calculadas dos mestres, com a fluência inconsequente de sua verborragia inebriante, entregando menos quando a tradição pedia mais, ele utilizou o desamparo editorial ao seu favor, promovendo uma anarquia sem censura, um poeta marginal.

Ao rejeitar ser líder, no calor de uma ditadura alimentada por discursos extremistas, a sua liberdade se tornou irresistível. Uma das razões da eficiência do filme pode ser explicada em um detalhe que passa despercebido pela maioria. Em dado momento, numa rara intrusão do diretor em um depoimento, ele complementa com: “A decoração era humana”, resumindo o que estava sendo dito sobre a residência de Cacaso, com poucos móveis, mas sempre lotada de amantes da literatura e da música. A poesia está entranhada na forma, não apenas no conteúdo. É um documentário que aprofunda o conhecimento de quem já respeitava o artista, sem gordura extra e acrobacias de estilo desnecessárias, algo que seria incoerente com o legado dele. Mas o real mérito da obra pode ser sentido naqueles que desconhecem o artista, já que o retrato é trabalhado com tanto esmero que desafio qualquer espectador a não correr para devorar seus textos, assim que os créditos finais, no mesmo tom lúdico infantil, acenarem a despedida. Há emoção, mas a sensação que fica é de alegria, uma celebração de um homem que, em pouco mais de quarenta anos intensos, deixou sua digital perceptível, ainda incomodando, ainda atual. O timing de lançamento do filme não poderia ser mais feliz, precisamos urgentemente resgatar esses valores, o brasileiro precisa desesperadamente de poesia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário