1 - A Chegada (Arrival), de Denis Villeneuve
"... Ao ser convocada para tentar estabelecer contato com os
visitantes alienígenas, a doutora em linguística, mostrada inicialmente como
uma pessoa melancólica que optou pela solidão como fuga, por medo de sofrer,
encontra motivação profissional e refúgio existencial. A complexidade na
expressão dos alienígenas, como o kanji japonês, através de ideogramas ricos em
significados, representa um desafio amedrontador, assim como a perspectiva de
futuro da mãe que precisa educar pelo exemplo, encontrando o equilíbrio entre
as aspirações que nutre pela filha e o choque irreversível de estar lidando com
um ser estranho e que precisa firmar sua personalidade própria, ainda que
nascido de seu ventre. O delicado contato deve ser mediado sempre pelo desejo
genuíno de compreensão do outro, mas, como o filme evidencia, a raça humana é
propensa ao apedrejamento como resposta imediatista para qualquer pergunta mais
difícil. A mãe repele o questionamento indesejado da filha, desviando a
responsabilidade para o pai; os militares optam facilmente pela violência
perante o medo do desconhecido. O resultado é o mesmo. Exatamente como no conto, “A Chegada” não é sobre uma
invasão alienígena, não é sobre o contato com o desconhecido mundo externo. A
alegoria apenas injeta suspense, serve na realidade como veículo refinado para
uma linda história de amor entre mãe e filha, uma difícil jornada interna de
compreensão da dor como elemento inevitável na experiência do amadurecimento,
uma declaração libertária de união entre povos, um alerta precioso para a
necessidade do diálogo como antídoto contra a agressividade da intolerância, em
suma, um filme que traz esperança em um momento politicamente sombrio para os
norte-americanos. Somos definidos por nossas escolhas, mas caso pudéssemos
optar entre sofrer a dor de um amor fadado a ter um fim horrível, ou
simplesmente evitar o primeiro encontro com a pessoa, qual caminho
escolheríamos? Essa é a questão que o roteiro de Eric Heisserer faz, com plena
consciência de que a única resposta humanamente aceitável é a mais sádica,
emoções não são forjadas em ambientes assépticos, George Lucas já provava isso
em “THX 1138”. A protagonista Louise, vivida por Amy Adams, sabe que a dor do
término de uma relação, por mais avassaladora que seja a ruptura, não
desvaloriza os bons momentos que a antecedem, a mágica interação, a troca de
carinho, a força do perdão, pegadas na areia que serão inexoravelmente apagadas
pelas ondas. É discutível até que a aceitação lúcida da finitude seja o elemento
que verdadeiramente engrandeça a experiência. Sem um ponto final, qualquer
frase perde relevância..."
2 - Elle, de Paul Verhoeven
"... O cineasta Paul Verhoeven, como de costume, utiliza a
violência gráfica como veículo para tratar de assuntos espinhosos. O estupro
sofrido logo na primeira cena, repetido em detalhes depois em flashback, existe
como forma de colocar em confronto Michèle e suas muitas travas emocionais, os
obstáculos que a impedem de seguir em frente, presa aos fantasmas do passado
criminoso do pai, presa ao sentimento de culpa na criação do filho, presa à
insegurança que o marido deixou de legado ao abandonar ela por uma mulher mais
jovem, presa a uma imagem reducionista dela mesma. Perceba que o estuprador não
teve interesse em roubar nada na casa, ele desejava apenas satisfazer seu
impulso sexual. Ela, que frequentemente se sente inferior como mulher perante
as figuras femininas mais jovens, descobre da pior forma possível que ainda é
desejada. Não é coincidência que, após o estupro, ela conquiste confiança pra
seduzir abertamente o vizinho na mesa de jantar de sua casa. Ela deixa de ser
passiva sexualmente, cansa de ser vítima da deselegância do amante que a
enxerga apenas como objeto, e parte para o ataque, com plena consciência da
necessidade de satisfazer seus desejos. Quando ela vê que a esposa do vizinho é
uma jovem recatada, altamente religiosa, nasce o desafio. Outra cena muito
importante ocorre em um restaurante, o encontro com o ex-marido. Ele diz, sobre
a namorada psicótica do filho: “Esse tipo de garota costuma ser boa de cama”. E
ela responde ofendida: “Boa de cama? O que isso quer dizer? Eu nunca entendi”.
Como mulher em transformação, ela, enxergando claramente o machismo repulsivo
na sociedade, ganha a coragem de revidar. Várias cenas criam variações desse
mesmo tema, a natureza constantemente a desafia, mas ela segue forte,
rejeitando absolutamente a autocomiseração como resposta aceitável, ela não
aceita entregar a responsabilidade nas mãos dos policiais, do sistema
patriarcal, o problema tem que ser resolvido de dentro pra fora, a questão é
existencial. Até mesmo quando um agressor tenta humilhá-la publicamente em seu
local de trabalho, sodomizada por um demônio lovecraftiano em um jogo
eletrônico, a resignação subjuga o medo, ela não aceita entrar no jogo
psicológico dele, ela se mostra superior..."
3 - O Quarto de Jack (Room), de Lenny Abrahamson
"... O primeiro aspecto brilhante que saliento é a atuação de
Brie Larson. Vale perceber como ela reage quando o filho pede um cachorro.
“There’s not enough room... Space, there’s not enough space”. Ela se pune
internamente por ter dito a palavra “quarto” (room) levianamente, substituindo
rapidamente pela palavra “espaço”, já que ela fez a criança acreditar que nada
havia além daquele ambiente em que eles vivem: o Quarto (com letra maiúscula).
Já fora do cativeiro, perceba como ela segue falando em tom extremamente baixo,
até mesmo quando não há ninguém por perto, evidenciando o trauma de anos sendo
levada a não chamar atenção. Pequenos detalhes que demonstram o cuidado do
filme, sublinhando sutilmente as consequências psicológicas da terrível
experiência na personagem. Esse recurso da ilusão mantida como forma de
proteção incita reflexões que vão muito além do tema, que pode ser visto como
alegoria para o sistema de crenças humano. O menino questiona a mãe sobre o
mundo do sonho: “Quando sonhamos, nós entramos na TV?”. Ele acha que além das
paredes há apenas o espaço sideral. Aquele é o universo que ele conhece como
prisioneiro na caverna de Platão, criando possibilidades a partir dos elementos
que enxerga ao seu redor. O real é apenas o que ele consegue tocar. A comida e
as roupas, aos olhos dele, são trazidas pelo “Velho Nick”, o fator
amedrontador, desconhecido e onisciente, que opera através da TV, por mágica. O
que ele desconhece é explicado pelo sobrenatural. A mãe, em dado momento,
começa a entender que o filho, com cinco anos, já tem idade para deixar de se
apoiar na muleta da ilusão, então deixa de incentivar isso nele. O objetivo
outrora era fazer com que ele se acostumasse a viver naquele ambiente. Mas a
única forma dela conseguir reunir forças para escapar daquela prisão é com os
dois pés fincados no mundo real. Ao explicar para ele como o mundo funciona, o
menino se revolta, não consegue compreender, ele precisa viver aquela ilusão,
por mais desumana que seja. Num toque genial, o roteiro mostra que Jack era
mais alegre em seu Quarto. Ele descobre que o mundo real, aquele universo que
ele desconhecia, é todo em tons de cinza..."
4 - Carol, de Todd Haynes
"... Até mesmo a incrível semelhança de Mara com Audrey Hepburn,
maquiagem e adereços, possui interessante simbolismo, traçando um paralelo
entre ela e a personagem de Hepburn em “A Princesa e o Plebeu”, uma princesa
entediada que, abraçando o anonimato, embarca em uma viagem de exploração,
inclusive, interna. O tédio faz parte da rotina de Thérese, vendedora em uma
loja de departamentos, acostumada a ser incentivada pela gerência a se adequar
a um padrão, simbolizado na cena em que ela lê o manual de condutas da empresa.
A delicadeza na interação com aquela enigmática mulher que a aborda numa manhã,
o gradual desejo cuidadosamente trabalhado nas primeiras conversas, a
preocupação da jovem com a latente agressividade do marido de Carol, todas as
etapas nessa relação conduzem naturalmente ao sexo, porém, até mesmo nessas
cenas, a câmera se mantém por mais tempo nos olhares, no toque dos lábios,
afinal, a coreografia dos corpos importa menos que a alegria do contato
finalmente satisfeito..."
5 - A Assassina (Nie yin niang), de Hou Hsien-Hsiao
"... A ação, quando ocorre, é abrupta, turva momentaneamente a
água de um rio plácido, gestos rápidos e frios, anti-ação, porque o interesse
do diretor está nos sentimentos dúbios que movem os personagens em seu
cotidiano, não nos consequentes impulsos imediatistas. Os confrontos, doce
ironia, são coerentes à realidade intensa desses guerreiros, altamente precisos
e ágeis, sem a glamourização excessivamente elaborada, visando empolgação e não
reflexão, que o cinema consagrou. O estudo dedicado sobre o período da dinastia
Tang, pesquisa que se reflete na primorosa direção de arte fiel à arquitetura e
ao estilo de vida, serve à adaptação do conto “Nie Yinniang”, de Pei Xing, como
um estofo de realidade que inteligentemente evidencia ainda mais os elementos
utópicos, com a fotografia de Ping Bin Lee, do inesquecível “Amor à Flor da
Pele”, atuando em vários momentos de forma subjetiva, como se enxergasse o
mundo pelos olhos da etérea protagonista, vivida por Shu Qi, uma assassina
treinada para se misturar às sombras e se mover como o vento, metáfora visual
executada com elegância, uma mulher consciente de que está se esvaindo
existencialmente, consciente de que nunca terá o conforto de um lar, punida
severamente por ter demonstrado piedade, punida por ser humana. A câmera
pacientemente esculpe o tempo, como nas obras de Tarkóvski, conduzindo o
espectador a apreciar cada detalhe do enquadramento..."
6 - Snowden - Herói ou Traidor (Snowden), de Oliver Stone
"... Joseph Gordon-Levitt realiza um trabalho assustadoramente competente, conseguindo captar com riqueza de nuances os trejeitos e a voz do protagonista, compondo uma caracterização tão fiel que, mais tarde, quando o próprio Snowden é mostrado, o espectador não sente qualquer abalo na imersão, o recurso potencializa o investimento emocional e não soa forçado. A intenção clara é fazer com que o público se identifique
com o protagonista, buscando entender o escopo brutal do sacrifício, o incômodo
sentido ao perceber que a omissão é o pior crime que pode ser cometido. Como é
salientado em uma das cenas mais impactantes, o que se pode esperar de
dignitários que são capazes de qualquer coisa, até mesmo utilizar o conceito da
ameaça terrorista em um povo já doutrinado diariamente pela cultura do medo a
“deixar o dedo no gatilho”, como bem mostrou Michael Moore em seu documentário
“Tiros em Columbine”, como atroz desculpa para operar total controle social?
Como prever o que será feito por aqueles que não possuem escrúpulos? É
impressionante constatar que o material que era tido como ficção científica
altamente engenhosa outrora, o Grande Irmão orwelliano, acabou se tornando uma
preocupante realidade..."
7 - A Bruxa (The Witch: A New-England Folktale), de Robert Eggers
"... A mente, tão acostumada e programada para reagir aos
impulsos imediatistas tolos dos jump scares, não consegue aceitar que está diante
de um roteiro que está impondo suas próprias regras sensoriais. Analisando bem,
o recurso do susto é o artifício menos inteligente, o bom horror aposta no
poder da sugestão. O público quer respostas fáceis, algo que o diretor Robert
Eggers não está interessado em oferecer. A intensa religiosidade da família
codifica todos os estranhos acontecimentos, o desespero diante do desconhecido
faz com que eles ativem a suscetibilidade humana ao apedrejamento, alimentado
pela culpa cristã e a consequencial punição, um fanatismo que nubla até mesmo
os elos de amor familiar, cegando qualquer senso de lucidez, assim como nas
perseguições dos inquisidores históricos. A utilização da cabra, símbolo pagão,
reforça esse conceito. Conhecemos mais sobre os personagens através de suas
atitudes quando confrontados por esses medos..."
8 - Mãe Só Há Uma, de Anna Muylaert
"... Muylaert encontrou no “caso Pedrinho”, o menino que foi
roubado de uma maternidade em Brasília nos anos oitenta, a fonte para injetar
um poderoso tratado sobre o conceito elástico de família. O filho
pré-adolescente do casal é mostrado praticando judô, mas o roteiro salienta seu
desconforto, seu desinteresse ao alongar sua pausa para água no meio do treino.
Ao ser paquerado pela coleguinha de classe introvertida, ele se sente
constrangido, ele se afasta com medo do que os outros irão pensar dele, um ato
de imaturidade compreensível pela pouca idade. Essa preocupação é o reflexo do
comportamento repressor dos pais, adultos apavorados com a opinião dos outros,
tão imaturos quanto o menino, como é mostrado na sequência em que Pierre revela
preferir se vestir como mulher. O arco narrativo se encerra brilhantemente ao
focar no menino e no irmão mais velho que descobriu ter, uma relação conturbada
a princípio, mas que é abraçada pela ternura quando a rebeldia social de Pierre
conquista o respeito de um garoto que nunca tinha conhecido força de
resistência tão pacífica e gentil. É uma das cenas mais bonitas da história do
cinema nacional..."
9 - Café Society, de Woody Allen
"... Em uma indústria cada vez mais escrava da grandiloquência, o
baixinho de voz mansa segue entregando anualmente os textos mais inteligentes
do mercado, com pouco orçamento e disciplinadamente encaixando a duração final
por volta de noventa minutos, exercitando sua incrível capacidade de síntese
narrativa. Ele abraça pela primeira vez a filmagem digital, mas continua
marchando no ritmo de seus próprios tambores criativos, o roteiro toca em temas
essenciais em sua filmografia, como a discussão existencialista sobre a morte,
a ironia do amor não correspondido e a desconstrução ácida da melancolia
nostálgica, com a mesma vitalidade de seus primeiros trabalhos. Ao final, os
dois apaixonados, em locais diferentes e estabelecidos em relações frágeis,
olhares distantes e melancólicos, como que buscando a luz verde do farol do
Gatsby literário, de Fitzgerald. E, ousado, Woody insinua no sorriso suave da
mulher a possibilidade de que o amor verdadeiro ainda terá chance de superar a
insegurança social. Poético desfecho para um dos melhores filmes em sua
filmografia..."
10 - Coração de Cachorro (Heart of a Dog), de Laurie Anderson
"... O medo da morte é parte essencial de um processo importante
e que não deve ser negado. O padrão dos veterinários, assim como o livro
escolhido pela enfermeira, ao discursar um conteúdo memorizado sobre a
possibilidade de acabar com o sofrimento do animal com apenas uma injeção,
impede que o animal utilize o tempo necessário para reconhecer a finitude. O
envelhecimento, essa aproximação natural da morte após a breve juventude,
possibilitou que a diretora enxergasse em suas recordações o momento exato em
que se sentiu amada por sua mãe, algo que parecia ter sido bloqueado em sua
mente. Laurie propõe em seu documentário, acima de tudo, um convite para que o espectador também
analise com carinho a efemeridade da vida, para que ele não perca precioso
tempo em rituais que satisfaçam outrem, ou obedecendo a padrões desgastados. Crie
seu próprio ritual, codifique sua linguagem única..."
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