Link para os textos do especial:
Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, Der Zorn Gottes –
1972)
Quando o diretor Werner Herzog, utilizando o senso de
urgência documental da câmera 35mm na mão, registra intrusivamente o confronto
do personagem ganancioso de Klaus Kinski com a imponente e imponderável força
da natureza, a megalomania ensandecida de Aguirre acaba se mostrando mais
ameaçadora que as flechas envenenadas dos índios. A opção pelo realismo estético
nessa alegoria poderosa, inspirada em um capítulo real da história da colonização
da América Latina, enfatiza a distorcida autoimagem do homem, reforçada pela
movimentação assimétrica que remete a um animal acuado, um nobre que enxerga na
procriação com a própria filha adolescente o caminho para uma linhagem pura.
O contexto é essencialmente doente, o líder conquistador Francisco
Pizarro, um analfabeto criador de porcos, dá o tom da deturpada missão conduzida
por essa coletividade isolada da civilização, tendo como representação divina e
narrador oficial para o espectador o Frei Gaspar de Carvajal, que afirma sem
titubear: não importa com quem esteja a razão, a igreja sempre estará no lado
do mais forte. A lei da sobrevivência, o domínio do mais agressivo pelo medo, a
imposição cultural em terras estranhas, segurando o chicote sempre ao nível dos
olhos dos escravos ajoelhados, a fundação da doutrina que ainda hoje se
posiciona sobre os mais diversos assuntos, do alto de seus palácios dourados. O
nível de falsidade que é necessário para manter o ritual relevante, mantos coloridos,
frases repetidas e joias, assim como as roupas elegantes dos conquistadores que
dificultam a travessia na floresta mostrada na longa sequência inicial, apenas
evidenciam as rachaduras nos alicerces. É impossível não refletir sobre a progressiva
desumanização dos integrantes da comitiva ao constatarem que a riqueza sonhada,
a mítica El Dorado, não passa de ilusão alimentada pelos delírios de grandeza
do líder. Os terrenos que o imperador de barro aponta ao longe como suas
propriedades, simbologia da arrogância usual em todos aqueles que são alçados
ao poder sem mérito, fadados ao sono intranquilo dos inseguros. A fragilidade
dos corpos, sede e fome, uma realidade pungente que rejeita naturalmente qualquer
teatralidade. Ao quebrar a quarta parede em cenas tonalmente antagônicas, quase
cômicas, mostrando a cabeça decapitada que se mantém falando, ou a vítima de
uma flecha longa informando que aquele projétil maior estava na moda, referência
ao texto da islandesa Saga de Grettir, Herzog sinaliza para a banalização da
violência, elemento indissociável na formação da sociedade.
A sequência que justifica a inclusão do filme nesse especial
é a que encerra a trama, com ecos de “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad.
A câmera mostra os corpos já penetrados pelas flechas, inclusive o de sua
idolatrada filha, a morte onipresente como punição silenciosa, a embarcação
destruída e tomada por macaquinhos que parecem debochar do vazio conceito de
nobreza sustentado por seus falecidos pares. No centro de tudo, Aguirre, o
olhar perdido no horizonte misterioso, ainda sonha em administrar seu império. A
onírica imagem do barco sobre a árvore é a testemunha distante de uma alma
amaldiçoada à loucura solitária daquele que ousou enfrentar a natureza.
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