segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Tesouros da Sétima Arte - "Fernão Capelo Gaivota", de Hall Bartlett


Fernão Capelo Gaivota (Jonathan Livingston Seagull - 1973)
O crítico norte-americano Roger Ebert divulgava orgulhoso em seu texto que havia abandonado a sessão aos quarenta minutos de filme, ele odiou a experiência. Mais do que contar pontos contra a obra, creio que essa análise dele fale mais contra seu profissionalismo, já que não é ético avaliar algo visto pela metade. Também não é inteligente apresentar esse filme para uma turma de adolescentes nas primeiras horas da manhã como dever escolar, algo que era bastante comum nas décadas de oitenta e noventa. “Fernão Capelo Gaivota” é um evento único na história do cinema, desafia qualquer tentativa de reduzi-lo a um gênero específico. A fotografia premiada de Jack Couffer e a trilha sonora de Neil Diamond costumam ser os únicos elementos unânimes ressaltados positivamente pelos detratores, mas é injusto avaliar de forma tão preguiçosa o trabalho corajoso do diretor Hall Bartlett.

Ele já havia roteirizado/dirigido diversas produções, como “Zero Hour!” e “The Caretakers”, mas estava tremendamente desanimado com os resultados deles nas bilheterias, a sua confiança profissional havia sido abalada. Tudo mudou quando sua esposa o presenteou com o livro “Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach. Ao terminar de ler, sem pensar duas vezes, ele decidiu que aquele era o projeto que ele havia nascido para realizar. Consciente de que a proposta não era popular para os dignitários dos estúdios, uma trama protagonizada apenas por gaivotas, marcada por longos momentos contemplativos, ele vendeu quase tudo o que tinha para que aquele sonho se realizasse. E a crítica da época, usualmente afeita a aplaudir os experimentos umbilicais europeus, sequer se interessou em dar uma chance para aquela linguagem nova intensamente surrealista, muito à frente de seu tempo. Hoje em dia, uma bobagem pretensiosa como “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick, faz críticos enxergarem a roupa espalhafatosa no rei que está nu, a tendência é elogiar tudo aquilo que se mostra complicado, o discurso excessivamente prolixo que esconde uma compreensão rasa, o aval que busca a aceitação intelectual de seus pares, tão inseguros quanto, deixando morrer à míngua os filmes que não são revestidos pelo verniz arrogante de “arte”.

A parábola proposta por “Fernão Capelo Gaivota” é simples e de apelo universal, a mensagem é transmitida de maneira ainda mais simples, com delicadeza e um apreço admirável pelo silêncio. A gaivota antropomórfica, voz de James Franciscus, inicia com o natural senso de desafio da juventude, acreditando que a sua existência não pode se limitar a uma luta diária por caçar comida no lixo com seu bando. Ela quer voar mais alto e mais rápido que seus pares, quer atravessar o céu noturno como as corujas, quer conhecer terrenos diferentes, em suma, não aceita se restringir por dogmas defendidos pelos anciãos. A gaivota então é banida do grupo, ela é a prova viva de que existe opção para uma existência conformista, ela passa a ser a voz de um novo caminho, uma figura messiânica. E, como sempre, vozes dissonantes que libertem o povo da escravidão de pensamento precisam ser caladas. O progresso só pode ser atingido ao se vencer o medo de se correr riscos, não há evolução sem mudanças. Por mais triste que seja a sequência que mostra o primeiro voo solitário da gaivota, já banida, ao som da bela “Lonely Looking Sky”, é possível enxergar a beleza da vitória pessoal de alguém que encara o abismo desconhecido e segue em frente. 

O objetivo do terceiro ato, focado em uma jornada mística com contornos budistas, é evidenciar que a razão da luta não é apenas superar obstáculos, mas também servir de exemplo para que outros se inspirem a tomar a mesma atitude. O aprendizado que não é compartilhado não tem relevância alguma, a vida só se torna importante quando o indivíduo constata que a imortalidade tangível reside na formação de um legado valoroso. 

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