Aquarius (2016)
É uma pena que a recepção desse filme nacionalmente tenha sido
prejudicada por questões políticas baixas, um barulho distorcido encabeçado
pelo próprio realizador e que soou mais alto que a bela melodia da trama. Em
minha lista de melhores do ano, recentemente postada, você irá encontrar “Mãe
Só Há Uma”, de Anna Muylaert, que considero uma obra mais bem resolvida, um
roteiro preciso, sem gordura extra. O trabalho de Kleber Mendonça Filho em “Aquarius”
peca pelo excesso, peca por querer dizer muito, falta foco narrativo, o que é
uma pena, já que há um filme perfeito perdido no pretensiosismo do roteiro.
Algumas cenas parecem enxertadas para satisfazer interesses ideológicos
externos à trama, similar ao que senti em “Que Horas Ela Volta?”, uma espécie
de agenda politiqueira que soa intensamente artificial no papel e, por
conseguinte, esbanja proselitismo raso na entrega do elenco. Não há problema em
ser panfletário, mas tentar infiltrar sutilmente essa intenção causa o efeito
inverso no espectador mais atento, desfila como um rinoceronte em uma loja de
cristais. Outro problema, as sequências de sexo, a polêmica da censura na
classificação indicativa. A questão é que essas cenas realmente são conduzidas de
forma desnecessariamente explícita, contrastando com a sensibilidade dominante,
parecem existir apenas para causar choque, como se a intenção fosse incitar a
polêmica pelos mesmos motivos politiqueiros. A nudez é utilizada com
inteligência quando Clara (Sonia Braga) revela ao público a cicatriz física e
psicológica de sua batalha contra o câncer, mas os demais momentos envolvendo
nudez são tolos, gratuitos, poderiam ser resolvidos com elegância coerente à
alegoria central que o roteiro propõe, ou poderiam ser encurtados na edição. A
cômoda, leitmotiv visual frequente, representa o elemento do desejo sexual que
atravessa gerações, mas a forma como esse móvel é utilizado poderia ser menos
didática, a câmera faz questão de registrar sua presença em várias cenas, a
repetição subestima a inteligência do público e minimiza a beleza da simbologia.
Há tanto material interessante que é abordado sem atenção, como
a crítica que é feita aos estelionatários neopentecostais, rascunhos que nunca
são minimamente aprofundados, enquanto o filme perde tempo precioso em seu primeiro ato mostrando
personagens ainda desconhecidos do público batendo cabeça dentro de um carro,
escutando “Another One Bites the Dust”. Falta senso de direcionamento, a música
exerce função primordial, simboliza a valorização da memória (não apenas cultural,
nas relações humanas, em todas as vertentes), a protagonista resiste bravamente
à mídia digital, ainda que a compreenda como inevitável, sabendo que
informações na nuvem nunca irão substituir a poesia por trás de dedicatórias
para estranhos em livros encontrados nos sebos, mas o espectador precisa se
importar primeiro com a personagem para que o investimento emocional funcione. A
utilização da música somente se torna parte orgânica do todo no segundo ato,
resultando em momentos verdadeiramente bonitos, como quando Clara celebra sua
liberdade dançando ao som de “O Quintal do Vizinho”, de Roberto Carlos.
Vale ressaltar também o reducionismo maniqueísta reservado
ao discurso social que, por vezes, parece ser mais importante que o
desenvolvimento dos arcos narrativos: empresários malvados, elite covarde,
patroa que visita a casa humilde da empregada no dia de seu aniversário, pobres
e ricos divididos sem tons de cinza, não há sutileza alguma na abordagem. Em
alguns momentos, esse discurso social funciona, como na cena em que jovens negros
da periferia se unem aos moradores dos condomínios de luxo no exercício teatral
de gargalhadas ao ar livre. A intenção óbvia é desafiar o preconceito do
espectador, a condução da cena (montagem e alguns enquadramentos) leva a crer
que eles trazem algum perigo. Ao fazer com que esses rapazes entrem na
brincadeira e, mais importante, sejam acolhidos carinhosamente pelos praticantes,
o roteiro desfaz o preconceito e incita genuína reflexão. Em outros momentos, o
discurso social soa forçado e constrangedor, como na cena em que o jovem sócio
da construtora utiliza a cor da pele de Clara como argumento em uma discussão,
ou quando justifica o roubo cometido por uma babá, colocando na boca de uma
personagem a cretina frase: “É assim, a gente as explora e, de vez em quando,
elas nos roubam”. É filosofia socialista de butique, o mesmo tipo de ideologia
torta que defende as atuais invasões de adolescentes em escolas públicas, simplismo
grosseiro que não combina, por exemplo, com a elegante referência ao escritor
pernambucano José Luiz Passos, na cena em que vemos de relance a capa de seu
livro: “O Sonâmbulo Amador”, que trata exatamente sobre o tema da resistência.
Dito isso, qualquer elogio feito à atuação de Sonia Braga é
pouco, a melhor de sua carreira, capaz de suprimir as lacunas de seu
desenvolvimento no roteiro com pausas estratégicas em frases, deixando
transparecer o subtexto, as emoções disfarçadas, o perfeito timing no senso de
humor, o conflito constante entre o compreensível medo residual e a coragem de
quem já encarou a morte. Sonia é o coração pulsante e a alma do projeto. A
jornalista aposentada que se recusa a abrir mão de seu apartamento, mesmo tendo
condições financeiras de morar em qualquer lugar. Clara tem outros
apartamentos, aquela batalha não é movida por mesquinhez, a ameaça invade sua
história de vida, desconsidera todas as experiências belas e difíceis que
forjaram seu caráter, os inescrupulosos no terceiro ato chegam a cometer um
atentado à sua vida, alegoria que representa mais um câncer em seu combalido
espírito, corroendo de dentro para fora após atingir de todas as formas o seu
psicológico. A valente reação dela, na casa do inimigo, o testamento em vida de
uma guerreira inabalável. “Hoje”, linda composição de Taiguara que emoldura a
obra, “eu não queria andar morrendo pela vida”, síntese perfeita para a vitória
pessoal da protagonista.
“Aquarius” é, com todos os seus problemas, o segundo melhor
filme nacional do ano. Kleber Mendonça Filho é muito feliz ao propor a
necessária valorização da memória, simbolizada no apego emocional de Clara com
o apartamento e com seus discos, fragmentos de amor preservados nas estantes.
Quando o indivíduo passa a se relacionar somente com genéricas informações
desprovidas de encanto, tudo se torna dispensável, até mesmo o outro. Ao
estabelecer esse resgate, o roteiro propõe uma resposta lúcida para o desolador
panorama comportamental de nossa sociedade, cada vez mais conectada
virtualmente, olhos fixos nas telas de seus celulares, sem empatia, sem
respeito, sem sentido. A resistência é o único caminho aceitável.
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