O Chefão do Gueto (Black Caesar - 1973)
Tommy Gibbs é um jovem revoltado criado no gueto, que pouco
a pouco vai tomando conta dos negócios do submundo do Harlem. Cada dia mais
ambicioso e agressivo, ele inevitavelmente se envolve com a máfia e o resultado
é uma sangrenta guerra de gangues.
Pra começo de conversa, basta dizer que a trilha sonora
desse filmaço foi composta por James Brown, com destaque pras faixas: “Down and
Out in New York City” e “The Boss”. Só esse detalhe sonoro já faria a produção
ser relevante nos dias de hoje, mas seria um crime não ressaltar também a
ousadia técnica de sequências como o embate final entre Gibbs (Fred Williamson)
e o policial que o perseguia desde criança, ou a montagem estilizada que mostra
a escalada de violência dele como chefão.
A direção/roteiro de Larry Cohen, que faria depois o cult
“Nasce Um Monstro”, um especialista em operar milagres com baixíssimo
orçamento, garante ao projeto um resultado mais coeso do que se costuma
encontrar no ciclo, alicerçado em um roteiro que toca no ponto nevrálgico da
questão do racismo nos Estados Unidos da década de cinquenta, período em que a
trama inicia, lidando de forma séria com um tema que era normalmente utilizado
como recurso quase cômico em filmes similares. Quando Gibbs compra o apartamento
do casal branco engomadinho, incluindo o vestuário completo da mulher, apenas
para ter o prazer de jogar pela janela os caros casacos de pele, Cohen
possibilita o revide daquele que sempre foi pisoteado por alegres escravos do
hipócrita status social concedido por esses tolos símbolos de poder. Ele
verbaliza claramente que faz questão de usufruir daquele estilo de vida, o que
leva outro personagem, numa cena mais adiante, a afirmar que o pecado do chefão
foi querer ser como os brancos. Ao despejar o casal, ele tira sua mãe da função
de empregada doméstica, ela passa a ser a dona da casa. E, numa demonstração da
complexidade da discussão proposta pelo roteiro, ela se recusa a acreditar
nessa nova realidade, tão acostumada a servir, a assustada senhora teme sair de
sua caverna existencial e ver a luz.
Gosto muito também do desfecho brutal, a forma como o adulto
retorna moribundo para seu lar da infância em ruínas, somente para encontrar
uma gangue de adolescentes. Pra essa garotada, ele não é um chefão, ele é
apenas mais um idiota que deu bobeira na área deles. Gibbs, triste ironia,
acaba sendo vítima de jovens tão ambiciosos quanto ele outrora foi. Assim como
o romano Julio César, apunhalado por um grupo traiçoeiro, morto pelo próprio
reflexo no espelho da vida.
Coffy (1973)
“Coffy baby, sweet as a chocolate bar...”.
A obra foi concebida pela pequena “American International
Pictures”, responsável por vários filmes de baixo orçamento, como os projetos
de Roger Corman. Samuel Z. Arkoff, o
idealizador da produtora, percebeu o potencial dos “blaxploitation’s” e abraçou
a carreira da bela Pam Grier, realizando quatro filmes com a atriz. O público
adorava esse estilo, mas os críticos e a própria indústria torciam o nariz.
Quando se analisa o filme no contexto de sua época, dois
elementos se destacam como dissonantes no gênero: A mulher sendo respeitada,
utilizando sua sensualidade como arma, uma variação feminina de “James Bond”. E
as drogas e traficantes não sendo celebrados, numa atitude quase panfletária,
politicamente correta. Como a vingativa enfermeira que busca exterminar os
responsáveis pela overdose de sua irmã caçula, a personagem de Grier deixa
claramente exposto em seus olhos o ódio que esconde por trás de cada gesto de
sedução controlada. E essa emoção bruta transparece em cada cena, com o auxílio
de ótimas one-liners, como “Vou urinar no seu túmulo amanhã”.
O roteirista e diretor Jack Hill, mestre no estilo, ganha
pontos ao não limitar a protagonista aos estereótipos de vítima ou criminosa,
deixando-a revelar no poderoso desfecho uma insinuação de fragilidade que a
humaniza. A boa trilha sonora de Roy Ayers apresenta os personagens, com
destaque para “Coffy is The Color” e “Coffy Baby”, interpretados por Denise
Bridgewater. No elenco secundário, Robert DoQui interpreta o extravagante “King
George”, que participa ativamente de uma das cenas mais violentas do filme. Ele
viria a ser reconhecido pelo grande público como o Sargento Reed, nos três
filmes da franquia “Robocop”.
É interessante o arco narrativo da protagonista (e, levando
em consideração o gênero, isso deve ser valorizado). “Coffy” passa o primeiro
ato assombrada pelo remorso consequencial de sua vingança, chegando a encontrar
uma paz temporária com sua consciência, até que assiste o brutal espancamento
de seu ex-namorado. Ao final, traída de todas as formas, nem mesmo a resolução
satisfatória de sua vingança traz paz ou conforto para sua alma, que irá vagar
para sempre num limbo existencial. Ao lado de “Shaft”, esse é o meu filme
favorito no gênero.
A Máfia Nunca Perdoa (Across 110th Street - 1972)
O roubo de US$300.000 de um ponto da Máfia no Harlem, por
três homens negros vestidos de policiais, desencadeia uma busca frenética em
toda a cidade para encontrar os autores.
Com valores de produção que o tornam mais refinado que a
maioria dos filmes do gênero, esta obra merece constar ao lado de
"Operação França" e "No Calor da Noite" (além da semelhança
na temática, sua inspiração também se mostra presente na breve referência ao
faroeste "Duelo em Diablo Canyon", que também lida com um conflito
étnico, protagonizado também por Sidney Poitier), como um retrato pungente de
sua época. Iniciando com a poderosa canção-título (composta e cantada por Bobby
Womack), somos levados a sentir que estamos vivenciando, no meio do fogo
cruzado, o confronto entre brancos e negros no Harlem. A câmera perscruta cada
beco escuro, transpondo com facilidade a crueza necessária em cenas como a da
perseguição ao final.
Não existem heróis e vilões (percebam a atitude redentora de
um dos ladrões, próximo ao desfecho), apenas homens falíveis e moralmente
corruptíveis. Diferente da maioria dos filmes "Blaxploitation", o
roteiro não entrega tipos estereotipados (quase personagens de histórias em
quadrinhos), mas sim um olhar mais profundo sobre o racismo, acentuado na
interpretação de Anthony Quinn (também produtor executivo) e em sua relação com
o personagem de Yaphet Kotto. Subvertendo a animosidade que existia entre os
personagens de Rod Steiger e Sidney Poitier (no já citado "No Calor da
Noite"), garantindo momentos brilhantes, como quando Kotto pergunta à
Quinn: "Quando você me verá como um policial?". O personagem de Quinn
está subconscientemente propenso a crer que todos os negros do Harlem são
marginais, então não consegue assimilar que seu colega (seu superior) possa ser
confiável. Habilmente, Quinn estabelece a ideologia torta de Matelli, durante o
primeiro ato, extravasando-a como uma fera enjaulada, disposto a esmurrar
qualquer um que se colocar em seu caminho. Ao longo do segundo ato, percebemos
que ocorre uma mudança física (consequentemente ideológica), como se ele enfim
tivesse acordado para a realidade de que, naquela selva urbana, ele era um leão
cansado, cujos métodos ultrapassados não se adequavam. A excelente cena final
(que não revelarei) reforça de forma imagética o discurso proposto pelo diretor
Barry Shear, mantendo-se na mente de quem assiste por muito tempo após a
sessão.
Truck Turner (1974)
Esse filme pode não ser tão discutido quanto “O Chefão do
Gueto”, ou “Coffy”, mas é um dos mais divertidos. Isaac Hayes, o músico
responsável pelo tema blaxploitation mais famoso: “Shaft”, protagoniza com
total segurança, trabalhando a agressividade necessária para o serviço, mas
deixando transparecer nos olhos uma vulnerabilidade rara nos heróis do subgênero.
Ele é amparado pela competente direção de Jonathan Kaplan (de “Acusados”, que
deu o prêmio de Melhor Atriz para Jodie Foster, em 1988), que injeta um
refinamento superior ao que costumava ser visto, cenas de ação muito bem
coreografadas, especialmente a do tiroteio dentro do hospital, um toque
claramente autoral. O texto também contrasta com os similares por ser mais
elaborado, o humor é inserido com inteligente noção de timing, contando com a
presença marcante da eterna Uhura de “Star Trek”, Nichelle Nichols, em uma rara
exibição no cinema de sua incrível versatilidade. Vale destacar também a
hilária relação entre Truck Turner e sua namorada cleptomaníaca, um dos poucos
romances monogâmicos dentro da história do blaxploitation.
* Os filmes estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito.
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