Ao ler sobre o falecimento do cineasta iraniano Abbas
Kiarostami, minha mente me conduziu a um fim de tarde perdido em minha
adolescência. Como era costumeiro no início do boom da internet, eu estava
ansioso pra começar mais uma maratona de filmes outrora impossíveis de achar em
videolocadoras, baixados em boa qualidade com legendas em inglês por aquela
ferramenta maravilhosa. O escolhido da semana havia sido Kiarostami, minha
curiosidade era tremenda, já tinha lido muito sobre seus trabalhos.
Os dois
primeiros títulos selecionados para aquele dia: “Gosto de Cereja” (T’am e
Guilass – 1997) e “Close-Up” (Nema-ye Nazdik – 1990). Ah, como eu gostaria de
ter visto eles em ordem inversa. Eu sempre tentava, em respeito à minha
paranoia sistemática, acompanhar a progressão natural dos realizadores, mas a
Palma de Ouro em Cannes recebida pelo primeiro falou mais alto. O caso é que
odiei “Gosto de Cereja”, amaldiçoei o júri e cheguei a cogitar postergar a
maratona. Não estou sozinho nessa, o colega crítico norte-americano Roger Ebert
só faltou xingar os antepassados do diretor em seu texto, deu a cotação de uma
estrela. Eu não fui tão radical, o que senti estava mais próximo de uma
profunda decepção pelo potencial que a obra me passou, o roteiro feito quase
todo em improviso mostrava um suicida buscando alguém que se responsabilizasse
por jogar terra em seu corpo. Sem interesse no investimento emocional do
público, o roteiro não revela nada sobre as razões dessa atitude extrema, o
homem vivido por Homayoun Ershadi é um completo estranho para o espectador.
Após um primeiro ato bastante contemplativo, quase beirando o tédio insuportável,
fiquei apaixonado pelo discurso de um dos passageiros, um taxidermista que
tenta fazer o motorista repensar sua decisão contando anedotas e mostrando como
ele foi salvo de um ato igual por uma deliciosa amora, que sua mão tocou
enquanto ajeitava a corda no galho para se enforcar. Pena que o desfecho, ponto
que irrita até mesmo os defensores mais ferrenhos, jogue no lixo as poucas reflexões
propostas, abraçando uma metalinguagem pretensiosa, mal desenvolvida. O segundo
filme do dia, pelo contrário, insere uma reflexão profunda em uma moldura
despretensiosa, um resultado que me agradou mais e me fez compreender a
grandeza do diretor. Ao documentar um acontecimento criminal e convencer os
envolvidos a reencenar os eventos que o antecederam, Kiarostami evidencia a
simplicidade inerente às melhores ideias. A emoção brota naturalmente no
terceiro ato, algo pouco usual em sua filmografia, o que me leva a indicar “Close-Up”
como ótimo ponto de partida para os interessados. Se o diretor não tivesse feito
mais nada em sua carreira, esse belo tratado sobre a relação entre a arte e a
vida já o posicionaria entre os nomes mais importantes do cinema.
No dia
seguinte vi “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?” (Khane-ye doust kodjast? – 1988) e
“Através das Oliveiras” (Zire darakhatan zeyton – 1994), eu me lembro de ter
checado bastante o meu relógio de pulso nas sessões, o que não considero um bom
sinal. Seus últimos filmes, “Um Alguém Apaixonado” (Like Someone in Love –
2012) e “Cópia Fiel” (Copie Conforme – 2010), produtos muito inferiores, não
fazem justiça ao talento que encontrei em “Close-Up”. Como espectador, agradeço por ter apresentado ao mundo seu colega Jafar Panahi, que começou
como seu assistente, adepto de um estilo que me encanta, obras menos
umbilicais, com maior empatia pelo público. Não estaria sendo sincero se
afirmasse que Abbas Kiarostami está entre meus cineastas favoritos, mas estaria sendo
um tolo se ignorasse o impacto de pedaços de suas obras, um todo que
é definitivamente melhor que a soma de suas partes.
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