A Mulher do Lado (La Femme d'à Côté – 1981)
Sou completamente apaixonado por esse filme, o penúltimo na
carreira de François Truffaut, uma das histórias de amor mais trágicas já
filmadas, inspirada parcialmente nas experiências românticas do diretor com
Catherine Deneuve. Já na primeira cena somos apresentados à gentil narradora,
Odile (Véronique Silver), a única utilização da quebra da quarta parede na
filmografia do mestre francês, com o enquadramento e a ambientação nos levando
a crer que ela é uma sorridente tenista, ilusão que a própria quebra, segundos
depois, com o distanciamento da câmera revelando que ela utiliza uma bengala
para caminhar com dificuldade, consequência de um ato impensado após o fim de
um relacionamento amoroso. O que parece bonito e plácido, na realidade, pode
ser triste e profundamente traumático, um elemento sempre reforçado pela fúnebre
trilha sonora de Georges Delerue, uma espécie de leitmotiv que se faz presente
na relação do casal vivido por Fanny Ardant, no auge de sua beleza, e Gérard
Depardieu. Como de costume, Truffaut se apaixonou pela atriz e ela foi sua
companheira até o final de sua vida.
Mathilde e Bernard se amaram intensamente outrora, mas a
ruptura foi violenta, o que faz com que o reencontro casual, sete anos depois,
com ambos estabelecidos em relacionamentos estáveis, provoque uma regressão psicológica
considerável nos dois, destruindo todas as pontes criadas com extrema
dificuldade pelo inconsciente como forma de proteção. Como se não bastasse essa
trapaça do destino, eles são forçados ao convívio diário, já que são vizinhos.
Num toque brilhante do roteiro, os dois são casados com perfeitas antíteses de
seus pares, e, pra elevar a dor, os filhos dos dois tem o mesmo nome: Thomas. O
quarto de hotel compartilhado que inicialmente remete à simbologia dos
encontros secretos de “O Último Tango em Paris”, o desejo que explode após ser
contido por tanto tempo, o simples beijo que causa um desmaio na mulher, sequências
que vão construindo o cenário de uma tragédia anunciada. Quando a lascívia é
saciada, os sentimentos que operaram no passado a separação começam a romper
brutalmente a camada emocional superficial. Sem estragar a experiência de quem
não conhece o filme, posso garantir que o desfecho irá ficar em sua memória por
muito tempo.
Mulheres Diabólicas (La Cérémonie – 1995)
Quando se fala em filmes que lidem com a questão da luta de
classes, você consegue citar algumas obras-primas, como “Mulheres Diabólicas”, “Norma
Rae”, “Ladrões de Bicicleta”, “A Batalha de Algiers” e “Taxi Driver”, algumas
variações criativas, como “V de Vingança”, “Metrópolis”, “1984”, “Brazil” e “Laranja
Mecânica”, ou até mesmo histórias que reduzem o tema à caricatura simplista que
parece escrita por uma criança, como o nacional “Que Horas Ela Volta?”. Aliás,
vale ressaltar que esse último bebe bastante da fonte de Claude Chabrol na
forma como estrutura a crescente animosidade entre os patrões e a empregada,
claro, sem qualquer traço da coragem do roteiro do mestre francês, que adapta
inteligentemente o livro “A Judgement in Stone”, de Ruth Rendell, com
inspiração perceptível também no caso real das irmãs francesas Christine e Léa Papin,
ocorrido na década de trinta. É o meu filme favorito do diretor, seguido de
perto por “O Açougueiro” e “Trágica Separação”. A sua usual crítica aos
burgueses é citada ironicamente por Jacqueline Bisset, que interpreta a patroa,
em um dos excelentes documentários que a distribuidora Versátil incluiu no
lançamento, quando ela afirma que considera curioso o fato de que Chabrol, um homem
que adota confortavelmente o estilo de vida burguês, odeie tanto a burguesia. Uma
pérola argumentativa que evidencia a função do cineasta como voyeur de si
mesmo.
Ao buscar na estação de trem sua jovem empregada (Sandrine
Bonnaire), a patroa não percebe que ela havia chegado mais cedo e estava
esperando em outra plataforma. O espectador descobre junto com ela, já que a
personagem estava propositalmente fora do enquadramento, um recurso sutil que
agrega um elemento arrepiante à introvertida jovem, estabelecendo desde o
início os alicerces psicológicos que irão possibilitar a virada de mesa que
ocorre no terceiro ato. O roteiro revela espertamente que ela é analfabeta,
algo que a constrange profundamente, uma condição que dificulta sua
autopercepção como indivíduo relevante na sociedade. Ela tem uma mancha
criminosa em seu passado, o que a aproxima ainda mais de sua nova amiga, a
espevitada Jeanne (Isabelle Huppert), que também esconde um segredo macabro.
Essa inusitada relação, onde as carências são gradativamente suprimidas pela
preparação do ritual de destruição do opressivo status quo, acaba sendo responsável
por acionar o gatilho libertário e inconsequente na mente de Sophie. As duas
são mostradas em uma cena silenciosamente perturbadora, sentadas no chão vendo
a televisão, de braços dados em um enlace quase “cronenberguiano”, gêmeas de
alma, uma postura visualmente antinatural que prenuncia os atos extremos que
serão cometidos no impactante desfecho, emoldurado coerentemente por uma sessão televisiva da ópera "Don Giovanni", de Mozart, grande paixão cultural dos patrões. Para Sophie, em sua mente corrompida pelo vitimismo, o casal tem aquela quantidade absurda de livros na biblioteca para provocar a jovem, já que ela acredita que ninguém leria aquelas páginas todas por puro prazer. Da mesma forma, incapaz de compreender a fascinante beleza da ópera, ela decide usar como revide o som brutal dos disparos de um rifle. Chabrol em seu momento mais genial.
* Os filmes restaurados, com documentários, estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito, no digistack "Cinema Francês".
Nenhum comentário:
Postar um comentário