quinta-feira, 21 de julho de 2016

"A Sereia do Mississipi", de François Truffaut


A Sereia do Mississipi (La Sirène du Mississipi – 1969)
A minha relação com a obra de François Truffaut é de profunda admiração, sou apaixonado por seus filmes, e, como crítico, tenho ele como um modelo. Quem leu meu livro “Devo Tudo ao Cinema” sabe a importância do cineasta francês em minha juventude. “A Sereia do Mississipi”, esse neo-noir tão exótico dentro da filmografia dele, costuma ser citado como um equívoco, até o próprio diretor afirmava não gostar do resultado. Eu discordo enfaticamente dessa opinião, o projeto ganha pontos a cada revisão, considero irresistível a sensualidade inerente à trama, uma tensão sexual provocante entre o casal vivido por Jean-Paul Belmondo e a belíssima Catherine Deneuve, com direito a sequências de nudez, um elemento pouco usual em uma carreira alicerçada por um olhar de elegante ternura. Quando Louis compra uma meia-calça para sua esposa, ele a vê como um produto designado para sua satisfação sexual, o que explica a cena que ocorre logo após a descoberta das reais intenções da mulher, quando a câmera dedica generoso tempo a mostrar ele queimando as roupas de baixo da mulher na lareira, frustrante constatação de que é impossível socializar o desejo.

Ela brincou com os seus sentimentos, fingiu ser outra pessoa, participou do assassinato de Julie, a mulher que ele só havia visto por fotos, e tomou seu nome, com o intuito de esvaziar suas contas no banco, entregar para o seu cafetão e fugir do país. Pra Marion, o casamento foi um obstáculo necessário para a execução do golpe criminoso, ela inconscientemente revelou pra Louis o quanto ele é frágil. Em questão de dias perdeu tudo o que havia conquistado como dono da fábrica de cigarros. Ele nem mesmo é capaz de dominar seus sentimentos, acreditou como um tolo na rasa explicação dela para as fotos no primeiro encontro, como ele, tão vulnerável, poderia querer tomar posse de alguém assim? E, sofrendo uma espécie de síndrome de Estocolmo, enxergando na Marion trambiqueira e corajosa, símbolo da ausência de regras no agir e pensar, mais virtudes do que ele havia encontrado na Julie, reflexo exato de sua insegurança, simbolizado na figura religiosa e na vestimenta pudica que encontra na mala da verdadeira, o homem fica completamente perdido em seu amor louco. Ele se torna psicologicamente dependente daquela mulher, abraçando a possibilidade tangível de ser existencialmente destruído nessa relação. E basta encarar por alguns minutos o rosto de Deneuve para perdoar esse ato de suicídio do ego.

Truffaut frequentemente se apaixonava por suas atrizes, mas acho que nunca ele deixou essa condição tão óbvia quanto na longa cena da declaração de amor próxima à lareira. Louis fala por Truffaut, enaltecendo cada centímetro do rosto de sua musa: “Seu rosto é uma paisagem, e, veja, estou sendo neutro e imparcial”. O diálogo é um dos momentos mais eróticos do cinema, sem apelação alguma, apenas o poder das palavras aliado à expressão da atriz. Em sua essência o filme é uma crítica ao amor idealizado e padronizado em rituais como o casamento. Louis procurou uma esposa nos classificados com todas as características que ele considerava perfeitas pra ele, acabou encontrando uma perfeita antítese em todos os sentidos. E, mesmo assim, ele não conseguiu evitar se apaixonar por ela. 

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