Batman Vs. Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice - 2016)
Os críticos norte-americanos estão destruindo o filme, mas
acredito que eles estão se pautando pelas expectativas, mais do que analisando
o produto final. O resultado está longe de ser ruim, tem sim muitos problemas,
mas os acertos que nascem de atitudes corajosas, elemento praticamente
inexistente nesse subgênero, conseguem superar os erros. A ideia de que o todo
é bagunçado, com excesso de informação, não é apenas impressão, o projeto foi
obviamente retrabalhado até o último segundo, mediante o interesse crescente
dos produtores em competir com o universo expandido da Marvel no cinema.
Fica claro que os equívocos mais grosseiros se originam na
decisão executiva do que havia sido pensado como uma honesta sequência de “O
Homem de Aço”, mas que precisou, em um momento avançado do processo, enxertar
uma subtrama totalmente desnecessária como complemento dos arcos narrativos bem
estabelecidos do Superman e do Batman, a inserção da Mulher Maravilha e a
gênese da Liga da Justiça, para entregar um épico de proporções mitológicas
para o público. É facilmente perceptível que esses enxertos, que dominam
principalmente os noventa minutos finais, destoam do que é competentemente
estabelecido no superior primeiro ato. As sequências oníricas mostrando o
futuro apocalíptico dominado por Darkseid, a homenagem a “Crise nas Infinitas
Terras” com o Flash voltando no tempo pra falar com o Bruce, toda aquela
montagem no terceiro ato apresentando, da forma mais preguiçosa possível, os
heróis da equipe que será formada no próximo projeto, já com seus símbolos
definidos por Lex Luthor, um fan service tolo que trabalha contra a lógica da
história, todos esses momentos deveriam constar nos extras do DVD, não no
filme. Além de quebrar o ritmo, não servem à trama que está sendo contada.
Vale destacar os brilhantes vinte minutos iniciais,
mostrando a perspectiva dos humanos passivos diante da destruição causada pela
batalha do filme anterior. A clareza dessa abordagem define a
personalidade de Bruce Wayne, vivido por Ben Affleck, um guerreiro cansado e
consciente de que seu legado, incluindo a culpa por uma tragédia pessoal que é
brevemente insinuada, tudo pelo que lutou, pode estar em risco com a presença
desse deus alado. Ele desconhece o homem por trás da figura idealizada nas
manchetes, aquele enigma que parece não se importar com as perdas humanas em
seu caminho. Esse antagonismo é muito bem orquestrado no roteiro de Chris
Terrio e David S. Goyer, uma pena que o foco seja desviado para “A Origem da
Justiça”, cometendo o pecado cada vez mais usual de se preocupar em preparar
terreno pras continuações, ao invés de garantir a qualidade da história do
próprio filme.
Como Batman, ressalto um detalhe muito importante: pela
primeira vez, conseguiram dar ao personagem o elemento do medo que ele inspira
nas suas vítimas. Em todas as versões cinematográficas, teoricamente ficamos
sabendo que a figura do morcego foi escolhida pelo pavor que o menino sentiu
outrora, mas nunca esse pavor foi efetivamente representado nas telas. O
diretor Zack Snyder merece crédito, já que buscou inspiração no cinema de
horror oriental para nos fazer sentir o medo do bandido ao cruzar com o
homem-morcego. Quando ele se mostra, o tom é de terror, fiel ao espírito de “O
Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller. O Batman de Snyder é a junção perfeita
do herói da moderna série “Arkham” de videogame com a clássica animação da
década de noventa. Até mesmo uma modificação essencial na conduta dele, algo
que pode incomodar os fãs mais devotados, acaba soando coerente no contexto
pessimista de um vigilante em fim de carreira. Ele mata, utiliza armas de fogo,
algo que vai contra a natureza do personagem nos quadrinhos. Mas, da mesma
forma que o Superman desses dois projetos é um embrião, um work in progress,
acredito que o Batman que irá compor a Liga da Justiça terá reconquistado a
esperança na humanidade e voltará aos códigos de conduta clássicos. É mais um
exemplo de coragem que agrega pontos ao projeto. O contexto inserido, com
mão pesada, das mães de mesmo nome, a forma encontrada pelo roteiro para
interromper o combate dos dois heróis, em teoria é interessante, algo que nunca
havia sido utilizado, nem mesmo nos quadrinhos. Mas a execução ficou
prejudicada pela falta de tempo na construção desse arco. É perceptível que, em
alguma versão inicial do roteiro, essa subtrama foi mais bem desenvolvida, mas
teve que ser cortada. A mãe de Clark, de fazendeira resignada no filme
anterior, do nada, aparece trabalhando na cidade. E, sem nenhuma explicação,
ela é sequestrada. Plot típico de telefilme da década de noventa, com toda impressão
de ter sido pensado às pressas, apenas porque o terceiro ato precisava de mais
uma cena de ação. E a cena é ótima, uma pena que os trailers já haviam mostrado
ela completa.
Gal Gadot, vivendo a heroína, por ter mais tempo de cena,
conquista maior relevância, ainda que a história e as motivações de sua
personagem não sejam exploradas. Quando, enfim, parte para a ação, um breve
detalhe a torna mais complexa: ela parece se divertir com a dificuldade
crescente do confronto, uma atitude que preenche algumas lacunas de sua
personalidade, uma guerreira que ama o bom combate, um contraponto interessante
que pode ser trabalhado nas sequências. O Lex Luthor de Jesse Eisenberg irrita pelos motivos certos,
já que o ator compôs uma versão genuinamente inédita para o vilão clássico, sem
referências diretas dos gibis, ainda que funcione como um amálgama do cientista
louco da década de trinta, do homem de negócios ganancioso de John Byrne e do
bon vivant trambiqueiro imortalizado por Gene Hackman. Do jeito como ele
foi estabelecido, não duvido que vejamos ele no futuro com aquela armadura de batalha
roxa e verde dos quadrinhos e das animações. O que ficou faltando foi dar
alguma explicação sobre a motivação do personagem. O único momento em que sua
vilania funciona é na espetacular cena do Capitólio. A atuação de Cavill,
quando ele percebe que foi incapaz de prever o acontecido e salvar aquelas
pessoas, valeu por todas as testas franzidas dos dois filmes. Nesses poucos
segundos, ele se aproximou bastante do Superman dos quadrinhos, da essência do
personagem. Um deus criado por humanos, alguém que precisa aprender o
equilíbrio entre o temor que sente (perceba como ele se preocupa em gentilmente
abrir a portinhola, como se temesse sua própria força) e o dom para inspirar a
humanidade, o farol de esperança que precisa se conter sempre.
A Lois Lane de Amy Adams é uma evolução natural da personagem
do filme anterior, com aquela mesma onipresença conveniente, um problema do
roteiro que finjo não notar por estar encantado com a atriz. É pena que a
interação romântica do casal Lois e Clark seja mostrada apenas uma vez, numa
breve cena em um apartamento, que se desfaz em alívio cômico, pouco para que
realmente compremos a relação de cumplicidade dos dois, um ponto de extrema
importância para os eventos do terceiro ato. Vários beijos num bom
enquadramento não substituem diálogos bem escritos, mas é o que dá pra fazer
quando se faz preciso incluir umas dez subtramas em um par de horas. E o Superman? Bom, Henry Cavill emula muito bem a dignidade
serena que Christopher Reeve imprimiu no passado, mas o personagem ainda vive
numa constante angústia, o que o impede de experimentar momentos de alívio
heroico, aquele senso de aventura empolgante que cativou gerações de leitores
dos quadrinhos. Esse peso existencialista excessivo, reforçado pela paleta
cinza e dessaturada da fotografia, justifica a ideia de que essa nova versão
está mais para uma representação mitológica distanciada, com nada sutis
referências a Jesus, do que uma celebração do super-herói infanto-juvenil
criado por Jerry Siegel e Joe Shuster. Ele chega a carregar um navio nas
costas, mas seu rosto macambúzio te faz orar para que a fanfarra de John
Williams irrompa estrondosa pela sala escura. Mas, não me leve a mal, a trilha
de Hans Zimmer é excelente, coerente com a proposta da trama, com temas únicos
e marcantes para cada personagem.
Em minha crítica de “O Homem de Aço”, postada na semana de
estreia, finalizei afirmando que acreditava que o caminho narrativo, o tom do
filme, parecia estar conduzindo para a utilização do arco “A Morte do
Superman”, com o vilão Apocalypse. Na época, alguns leitores debocharam,
acharam que esse evento marcante nos quadrinhos do herói nunca seria utilizado
no cinema. Bom, eu estava certo. A saga era uma bobagem, pura ação descerebrada
e uma grande estratégia de marketing alicerçada em algo que, todos nós
sabíamos, acabaria sendo resolvida com o eventual retorno do personagem. O
mesmo ocorre aqui, com um desfecho que salienta o óbvio, já que não há Liga da
Justiça sem Superman. Senti falta de um confronto mais brutal entre os dois,
uma troca de socos mais emocionante. Com o estilo Michael Bay de filmar cenas
de ação, Zack Snyder reduz a luta a uma confusão enfumaçada, excesso de
computação gráfica, emoldurada por uma trilha que grita uma emoção que não
brota organicamente, com exceção do breve momento onde o herói se despede de
sua amada. Nos quadrinhos, na hora do sacrifício final, o rosto dele está
machucado, mas no filme, rosto limpo e cabelo intocado. Não há suspensão de
descrença que funcione desse jeito. O recurso da lança de kryptonita foi
preguiçoso, ainda que a simbologia do ferimento mortal no símbolo de esperança
do uniforme tenha sido um acerto. Outro ponto interessante, em mais uma
analogia nada sutil com Jesus, a pietá e o corpo sendo entregue à Lois, envolto
no manto vermelho.
O roteiro buscou homenagear várias histórias importantes de
Batman e Superman, bem mais do que seria possível reunir em uma trama coesa,
uma opção ousada que prejudicou o ritmo, com inserções longas de interlúdios
oníricos que não avançam a narrativa, a já citada inclusão da subtrama da Liga
da Justiça que não serve à história que está sendo contada, além da utilização
exagerada de computação gráfica em cenas que poderiam ser resolvidas de forma
prática. O desfecho, no entanto, evoca a emoção de uma forma muito madura, algo
que os heróis da Marvel, divertidos action figures coloridos aprontando altas
confusões, nem se interessam em explorar.
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