O Beijo Amargo (The Naked Kiss – 1964)
O sonho do diretor Samuel Fuller era ser dono de um jornal,
apaixonado desde criança pela emoção contida nas manchetes sensacionalistas. O
seu trabalho refletia essa preferência pelo impacto, com um timing perfeito,
como podemos notar na bombástica cena que inicia o filme. A personagem vivida
por Constance Towers, uma prostituta com senso ético, extravasando toda sua
raiva em seu proxeneta, uma explosão de ódio emoldurada pelo jazz da trilha
sonora, capturada pela câmera de Stanley Cortez como uma espécie de coreografia
de uma dança brutal, com a clara intenção de desorientar o público, que apanha
no lugar do homem. O próprio Fuller, numa ação rápida, acrescenta maior
surrealidade ao momento, retirando a peruca da mulher, que segue obstinada em
seu rompante, inclemente aos apelos da vítima. Ela rouba o dinheiro do homem,
já imobilizado no solo, deixando com altivez o local, enquanto o espectador
procura se recuperar daquele frenesi.
O leitmotiv é claro, a crítica ao mundo de aparências e
rótulos, elemento que fica ainda mais óbvio no decorrer da trama. A prostituta
que decide mudar radicalmente de área de atuação, adentrando, como enfermeira,
um hospital para crianças com deficiências físicas. Ela se apaixona pelo
personagem elegante vivido por Michael Dante, um representante da alta sociedade
aplaudido como herói de guerra e filantropo, que eventualmente será flagrado
por ela tentando abusar sexualmente de uma criança. O pedófilo que se esconde
com o verniz hipócrita da burguesia. A prostituta, marginal na sociedade, que canta
uma emocionante canção com as crianças do hospital e se encanta na rua com um
bebê em seu carrinho, demonstrando doçura e o desejo de ser mãe, mas que, por
questões financeiras, pode voltar a vender seu corpo sem remorso algum. Não há
espaço para soluções demagógicas no cinema de Fuller.
Genial a forma como o roteiro dribla a censura do Código
Hays, na cena em que ela conversa num banco de praça com o policial vivido por
Anthony Eisley, conduzindo para um momento de intimidade na casa dele, mantendo
o diálogo sobre a venda de bebida como analogia para o seu verdadeiro trabalho,
simbolizado sutilmente pela cédula que é mostrada pousada ao lado da garrafa de
champanhe. Já o policial, símbolo da lei, acaba se revelando um facilitador
para a prostituição, conduzindo belas jovens em dificuldades financeiras aos
cuidados da dona do bordel da pequena cidade. O filme pede que olhemos além
dos estereótipos, fugindo da demagogia, encarando o pesadelo da vida real.
* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil", em "A Arte de Samuel Fuller", contendo ainda "O Quimono Escarlate", "A Casa de Bambu", "Paixões Que Alucinam" e um excelente documentário produzido pelo ator Tim Robbins, com participação de Quentin Tarantino e do próprio diretor.
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