Roda Gigante (Wonder Wheel - 2017)
(O texto revela informações sobre a trama, spoilers, então
recomendo que seja lido após a sessão)
É revigorante ver um diretor tão prolífico criativamente
buscar uma nova abordagem aos 83 anos de idade, sem perder sua identidade, exibindo
total controle narrativo em sua elegante sintonia com o diretor de fotografia italiano
Vittorio Storaro, que capta com precisão as cores vibrantes e antinaturais que
remetem conscientemente ao Technicolor, emoldurando o cenário da Coney Island
da década de cinquenta com a aura de terna e gloriosa melancolia dos melodramas
clássicos de Douglas Sirk. Se o estilo despojado de Allen é representado pela
forma como o personagem de Justin Timberlake conversa com o público, não há
outros pontos de fácil identificação, a trama não se parece com nada que o
cineasta tenha realizado em sua longa carreira, algo que pode causar estranheza
no primeiro contato. Boa parte da crítica norte-americana, intensamente preguiçosa,
parece ter se incomodado com o fato de não conseguir desta vez reduzir o diretor
ao estereótipo que eles criaram, cometendo o equívoco banal de apedrejar a obra
por não satisfazer seus desejos, o clássico “não é o filme que eu queria, ou
pensei que seria”.
A trama de “Roda Gigante” é depressiva, existencialmente apocalíptica,
com ecos perturbadores autobiográficos que revelam o estado de espírito de
Allen. A nostalgia do mundo de sua infância dá o tom, conforto necessário para
enfrentar a crueldade do mundo adulto. Kate Winslet vive Ginny, uma mulher
casada com experiência como atriz e que se apaixona pelo jovem Mickey (Timberlake),
um salva-vidas que se dedica à literatura e ao teatro, que acaba se interessando
também pela enteada dela, Carolina (Juno Temple), provocando na primeira um
processo destrutivo e inconsequente que culmina no ato extremo de facilitar o
assassinato da jovem. O rapaz afirma no início para o espectador: “Como poeta,
eu uso símbolos e, como um dramaturgo em germinação, adoro melodrama e
personagens maiores do que a vida.”
Voltando à realidade, Allen se apaixonou pela enteada de sua
esposa Mia Farrow, Soon-Yi, que tinha 22 anos à época, relacionamento que segue
forte ainda hoje, um caso que movimentou as manchetes sensacionalistas e que
fez com que a mulher traída decidisse se vingar assassinando a reputação do
ex-marido, inserindo na amarga equação acusações doentias e claramente
mentirosas de abuso sexual infantil (não existe pedófilo de um caso só). Apesar
de um dos filhos corajosamente se posicionar publicamente sobre o abuso
psicológico da mãe no passado, defendendo que ela fez “lavagem cerebral” nos
pequenos, boa parte do público (que sequer estudou a fundo o caso) ainda liga o
nome do cineasta ao escândalo midiático.
Ginny percebe ao final que não há redenção para sua atitude,
temos que ser responsáveis por tudo o que fazemos, não há vitória em sua
vingança, o seu impulso somente trouxe mais dor. O jovem segue sua vida longe
dela, o filho adolescente piromaníaco parece sentir cada vez mais prazer no
calor das chamas, o marido (atuação inspirada de Jim Belushi) continua
insensível, bêbado e bronco. O filme termina abraçando o patético rosto da
mulher, banhada pela luz azulada que representa morte em vida, espécie de
evolução do conceito trabalhado em “Blue Jasmine”, perdida em suas ilusões e
destruída pela culpa que jamais irá revelar.
“Roda Gigante”, mais que um simples filme em sua carreira, é
a elegante resposta de Allen no crepúsculo de sua vida.
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