Corpo e Alma (Teströl és Lélekröl - 2017)
A roteirista/diretora húngara Ildikó Enyedi retorna após um
longo inverno com um trabalho essencialmente simples e poderoso. As fortes cenas
iniciais no abatedouro remetem à crueza do clássico curta “Le Sang des Bêtes”,
de Georges Franju, que também utilizava a violência animal como metáfora para
falhas humanas.
O leitmotiv da obra é sintetizado na breve sequência em que o
chefe (Géza Morcsányi) conversa com o novo empregado sobre o impacto psicológico
daquele ofício na rotina dele. O rapaz diz que não sente pena dos animais, resposta
que incomoda seu interlocutor. O problema não está na decisão individual de comer
carne ou ser vegano, mas no absurdo de não se perturbar minimamente com o ato
de abater o animal para suprir sua fome. Conceito mais complexo do que pode
parecer à primeira vista, algo que ressoa em vários momentos da trama. O garçom
que não percebe o chamado insistente dos clientes na mesa, os únicos no local,
por estar com os olhos baixos, focado na tela de seu smartphone. O roteiro evidencia
a ternura no olhar dos animais, os cervos do sonho compartilhado, o gado
sacrificado e os protagonistas, a fragilidade de vítimas que instintivamente
reconhecem a aproximação da finitude e, por conseguinte, aprendem a lidar com o
medo. A ideia da conexão pelo sonho agrega camada de fábula, motivo surreal que
reforça a compreensão de uma sociedade que prima cada vez mais pela incomunicabilidade.
A chegada da inspetora de qualidade Mária (Alexandra
Borbély), uma jovem excessivamente introvertida, faz com que os olhares dos
colegas se voltem para seus movimentos controlados, a cabeça baixa, uma beleza
que parece buscar desesperadamente ser comum. O chefe é um dos que ficam estranhamente
fascinados por aquela figura. Como ele mesmo afirma, vive uma fase em que já
desistiu de amar, provavelmente abalado após ter seu braço paralisado, o
cotidiano desumanizante de sangue e vísceras reflete o torpor em seu rosto sofrido
que parece esculpido a cinzel. Ele teme que o toque feminino venha por pena,
mas ela simplesmente teme o toque, seja qual for a intenção de quem o faça, duas
almas alquebradas que já desistiram de tudo. As tentativas de ambos se adequarem
aos padrões de relacionamentos fracassam miseravelmente, escutar canções de
amor mercadologicamente construídas para o sucesso nas rádios não funciona, a
vulnerabilidade deles não suporta mentiras confortáveis, rituais sem
significado genuíno, os dois aguardam amedrontados no abatedouro como os outros
animais, passivos, contando os minutos.
A paz da floresta nevada onírica
representa a fuga da realidade, a existência sem regras e cobranças sociais, a
resposta está no ato de encarar a verdade e enfrentar o medo. Ao superarem este
obstáculo no terceiro ato, a vitória está nos olhos que se encontram com
cumplicidade passional, na mão que ampara carinhosamente a fragilidade do outro.
Quando eles vencem o medo, o sonho perde razão de existir.
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