Sieranevada
A longa duração, quase três horas, pode afastar o público em
um festival com tantas opções, mas quem der uma chance a “Sieranevada” será
recompensado pelo diretor romeno com uma aula de narrativa minimalista,
ambientada quase que toda dentro de um apartamento, uma das melhores
experiências que tive até o momento, aquele tipo de roteiro que fica martelando
em sua mente horas depois da sessão. Como crítico e cineasta, sempre valorizei
o filme de câmara, então eu aplaudo o resultado obtido por Cristi Puiu, que já
havia me encantado em 2005 com o brilhante “A Morte do Sr. Lazarescu”.
O senso de humor não convencional é pacientemente trabalhado, as sequências se
desenvolvem praticamente em tempo real, o que permite um senso de intimidade
imediato com os personagens. O título propositalmente nonsense potencializa o
absurdo da vida, a falta de sentido. A trama inicia mostrando a reunião de
familiares no apartamento em honra à memória de Emil, marido da sexagenária
dona da casa, falecido quarenta dias antes. Esses estranhos para o espectador,
que ocupa um lugar de destaque voyeur, discutem assuntos genéricos, são levados
pelo álcool a revelar verdades constrangedoras, demonstram insegurança,
constrangimento e arrogância, desfilam argumentos revoltantes e banalmente inofensivos
sobre temas polêmicos como o ataque ao Charlie Hebdo, ou teorias de conspiração
sobre o ataque ao World Trade Center, mas sempre com credibilidade, o elenco é
afinado. Conhecemos esses personagens na medida em que analisamos as reações
deles nas mais tolas discussões, variadas situações aparentemente menores que
estabelecem metáforas preciosas, como a do alimento que nunca é servido.
O trabalho de câmera parece querer induzir um estado de anestesia no
espectador, sem dinamismo, o que pode ser terrível para os mais ansiosos, Barbu
Balasoiu reflete nas escolhas o desejo contemplativo do diretor. A mensagem
mais forte é a de que, por mais desejo que a pessoa tenha em se destacar, por
mais radicalmente oposta ideologicamente aos seus amigos e familiares, há nela
um interesse maior em ser identificada como parte do coletivo, uma necessidade
vital que a obriga a rejeitar certas verdades absolutas e defender discursos
vazios como forma de funcionar em sociedade. O que nos define é a capacidade
para o “jogo de cintura”.
Hooligan Sparrow
O melhor documentário que vi nesse festival, um primor em
sua concepção e execução, segue a luta da corajosa chinesa Ye Haiyan, conhecida
como Hooligan Sparrow, ativista contra a exploração sexual da mulher,
enfrentando a censura do governo e a estupidez machista da sociedade. O
registro, por vezes, precisa vencer obstáculos, com a diretora adotando
qualquer meio possível para flagrar as situações, uma tática do jornalismo de
guerrilha, o que injeta um nível maior de emoção à filmagem, resultando em
momentos verdadeiramente perturbadores.
A diretora Nanfu Wang parte de um caso de pedofilia ocorrido em uma escola
em 2013, para explorar a absurda impunidade garantida em grande parte pelo
silêncio criminoso das forças policiais. É impressionante constatar como as
autoridades tentam de tudo para impedir o trabalho daqueles que lutam para
revelar ao mundo as atrocidades cometidas internamente. Como deter algo que
parece estar enraizado na cultura do povo? Lá, a cultura do estupro não é frase
de efeito usada como cortina de fumaça política, mas uma realidade intimidadora
e deprimente. As inserções quase bucólicas mostrando um pouco mais da origem rural
de Haiyan, ainda que quebrem consideravelmente o ritmo e revelem pouco sobre a
ativista, funcionam como necessário respiro para o espectador. O desfecho
ambientado em um museu é de uma tremenda beleza poética, representando a força
daquela que resiste.
Um filme importante e que deveria ser abraçado pelo grande
público, caso os documentários fossem respeitados e recebessem lançamentos
dignos em nossas salas de cinema.
Capitão Fantástico (Captain Fantastic)
Viggo Mortensen é um dos melhores atores de sua geração,
“Capitão Fantástico” é mais uma pérola em sua filmografia, prejudicada apenas
pela mão pesada do roteirista/diretor Matt Ross, um problema que poderia ser
amenizado com uma edição mais severa, o que reforçaria o impacto de algumas
reflexões propostas, já que o segundo ato arrastado quebra o bom clima que
havia sido estabelecido. Viggo vive um pai que decidiu se isolar com seus seis
filhos longe da sociedade, uma vida idílica na floresta, longe do consumismo e
de dogmas religiosos e, por conseguinte, longe da cultura do medo e da culpa,
campo fértil para que ele tente transmitir para eles os valores que ele
considera mais importantes, na tentativa de formar seres humanos melhores e
mais conscientes de suas responsabilidades.
A trama pode parecer a de uma despretensiosa “Sessão da Tarde”, mas o roteiro
entrega reviravoltas bastante criativas. Após um evento traumático, a família é
forçada a deixar essa zona de conforto e enfrentar a realidade urbana, gatilho
que desperta questões existenciais relevantes, especialmente na figura paterna,
ainda que falte sutileza na abordagem dessas transformações pessoais. O
protecionismo que conduziu um dos filhos à dedicação extrema nos estudos também
o tornou socialmente inseguro, o espectador é levado até mesmo a se revoltar
com algumas atitudes do pai, mas a interpretação primorosa de Mortensen
enriquece as várias camadas de sua construção, salientando que a força motriz
de suas ações é genuína e amorosa. Um bonito filme que merece atravessar a
fronteira do festival e ser abraçado pelo grande público.
O Túnel (Teo-neol)
Os melhores filmes de desastre são aqueles que se preocupam
em estabelecer bem a empatia do espectador com as vítimas das tragédias, algo
que poucas vezes acontece. “O Túnel”, do sul-coreano Kim Seong-hun, apesar de
abusar da paciência do espectador com cerca de meia-hora de redundante gordura
extra, o roteiro oferece uma situação realmente angustiante para o protagonista
que se vê preso em seu carro após o colapso de um túnel. Os movimentos de
câmera ajudam a transmitir o senso de claustrofobia, sem a necessidade de apelar
exageradamente na redução cênica, mas o interesse do diretor está mais focado nas
consequências externas do evento, como no brilhante “A Montanha dos Sete
Abutres”, de Billy Wilder.
É interessante a forma como a trama insere uma crítica
poderosa ao tratamento da tragédia dado pela mídia e pelos políticos, a absurda
ausência de humanidade que rege a espetacularização do sofrimento alheio, assim
como a constatação de que o indivíduo se torna dispensável quando o que está em
jogo é a imagem de um governo, além da criminosa irresponsabilidade dos executivos
envolvidos diretamente no desastre. Vale destacar também a excelente atuação de
Doona Bae, que vive a esposa da vítima, figura que ajuda a manter o tom de ameaça
que a trama frequentemente arrisca perder ao apostar em alívios cômicos tolos.
A indústria norte-americana no gênero tem muito a aprender
com o refinamento dessa obra.
Sob a Sombra (Under The Shadow)
Estreando em longas-metragens com essa pérola do terror, o
roteirista/diretor iraniano Babak Anvari demonstra grande talento ao subverter
as convenções do gênero, apostando na construção de clima e fazendo uso
inteligente de referências. Enxerguei claramente “O Babadook” na linha temática
de proteção materna, mas é “Repulsa ao Sexo”, de Polanski, que garante os
melhores esforços criativos visuais, na utilização do cenário como alegoria
para a perturbação psicológica da mãe que acredita que sua filha está sendo
possuída por espíritos malignos.
O ambiente externo dos últimos momentos da guerra Irã-Iraque, no final da década de oitenta, providencia sensorialmente os estímulos para que os monstros humanos que explodem bombas do lado de fora da casa ajam em conluio inconsciente com as manifestações paranormais internas. Os vizinhos vão abandonando o local, a solidão inerente a qualquer conflito dessa magnitude, a constatação de que a morte pode chegar a qualquer momento, um sentimento que faz ruir o frágil emocional da criança, refletido nas metafóricas rachaduras das paredes e nos constantes lamentos que são escutados pela casa, como se a sociedade estivesse chorando seus mortos.
A mãe, altamente racional, inicialmente vê o medo da filha como uma tolice alimentada pela mitologia do Oriente Médio, a direção de arte trabalha algumas simbologias nesse sentido, mas o roteiro inteligentemente também está interessado em ser eficiente como horror, então a ideia do djinn ser a visão infantil inocente para os perigos reais da guerra se mantém em segundo plano, garantindo um terceiro ato verdadeiramente apavorante. Esse ano está sendo espetacular para o gênero, “Sob a Sombra” é impecável.
O ambiente externo dos últimos momentos da guerra Irã-Iraque, no final da década de oitenta, providencia sensorialmente os estímulos para que os monstros humanos que explodem bombas do lado de fora da casa ajam em conluio inconsciente com as manifestações paranormais internas. Os vizinhos vão abandonando o local, a solidão inerente a qualquer conflito dessa magnitude, a constatação de que a morte pode chegar a qualquer momento, um sentimento que faz ruir o frágil emocional da criança, refletido nas metafóricas rachaduras das paredes e nos constantes lamentos que são escutados pela casa, como se a sociedade estivesse chorando seus mortos.
A mãe, altamente racional, inicialmente vê o medo da filha como uma tolice alimentada pela mitologia do Oriente Médio, a direção de arte trabalha algumas simbologias nesse sentido, mas o roteiro inteligentemente também está interessado em ser eficiente como horror, então a ideia do djinn ser a visão infantil inocente para os perigos reais da guerra se mantém em segundo plano, garantindo um terceiro ato verdadeiramente apavorante. Esse ano está sendo espetacular para o gênero, “Sob a Sombra” é impecável.
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