Link para os textos anteriores do especial:
Diário
13 de Janeiro – 1920 – 21:30
A festa parecia não ter fim, assim como o estoque de bebida.
O alarido aumentava, a fumaça dos cigarros chegava a dificultar a visão. Tentei
atravessar o salão para reencontrar Stan Laurel, mas tropecei nos pés de um
rapaz que aparentemente tirava um cochilo no sofá. Inicialmente eu me desculpei
pelo descuido, ele se levantou com extrema mesura, tentando me tranquilizar de
todas as formas, dizendo que esse meu ato havia sido a primeira “cena de ação”
da noite. Eu demorei alguns segundos para reconhecer seu rosto, relaxado e sorridente,
mas estava diante de Buster Keaton. Minha mente de jornalista compreendia que,
naquele momento no tempo, ele frequentemente sorria nas produções que fazia com
o amigo Roscoe “Fatty” Arbuckle, mas meus olhos de cinéfilo custavam a crer que
o “homem que não sorria” estava quase chorando de rir com a própria constatação
espirituosa. Aquele Keaton ainda era um jovem pouco conhecido na indústria, que
ainda não havia protagonizado um filme, o que viria a acontecer com o curta “The
Saphead”, que estrearia no final daquele ano. Aproveitei pra convidar o novo
amigo a tomar um uísque na sala ao lado, que parecia mais silenciosa. No
caminho, liguei o gravador oculto.
- Você não imagina o tédio que sinto nessas festas, todos
esses rostos rechonchudos se gabando de suas riquezas, de como seus cavalos
correm mais rápido, de como seus negócios são rentáveis, insuportável. – Keaton
parecia estar sendo sincero.
- Mas o que está fazendo aqui? É sádico? – Ele gargalhou com
minha pergunta, tomou quase todo o uísque do copo e, apoiando a mão em meu
ombro, disse:
- Simples, o dono da mansão, o estimado Sr. Douglas
Fairbanks está me ajudando a realizar o sonho da minha vida. Mas eu quase o
odeio pelo que está me fazendo passar aqui (risos).
- Fale mais desse sonho.
- Claro, ele acredita que eu tenho potencial para carregar
sozinho um filme, um longa-metragem! Vai se chamar “The Saphead”, refilmagem cômica
de “The Lamb”, que o Dougie fez uns cinco anos atrás. Ele está movimentando os
pauzinhos nos bastidores para que nada fique em meu caminho. O mínimo que eu
devia fazer era aguentar essa noite, concorda?
Keaton deixava transparecer uma espécie de distúrbio social,
mais que timidez, ele realmente não gostava de festas, a multidão o apavorava. O
seu projeto mais recente, que havia estreado dias antes, “The Garage”, era mais
uma parceria com Arbuckle. A crítica adorou, mas dava pra sentir no rapaz a
insatisfação com aquela zona de conforto, ele era um peixe grande em um aquário
pequeno. Imaginando que ele não iria ficar feliz com perguntas sobre esse
filme, tentei algo em longo prazo.
- Fora “The Saphead”, o que você está planejando realizar
para os próximos meses?
- Estou nas nuvens, vou escrever e dirigir “One Week”, total
controle criativo, graças à amizade de Dougie com o produtor Joseph Schenck. Também
vou filmar “Convict 13” e estou escrevendo algo sobre um casal que vive em
casas separadas, a família da namorada não apoia a relação, clássico viés “Romeu
e Julieta”, só que medíocre (risos). E você, o que faz nessa casa de loucos?
A pergunta inesperada me fez tomar um gole longo do uísque,
tentando pensar em algo convincente e rápido.
- Na realidade, entrei para reclamar do barulho alto e
acabei ficando pela bebida.
Keaton gargalhou mais uma vez, terminou sua bebida e apertou
minha mão. Ele parecia respeitar todos aqueles que não se levavam muito a
sério, o meu senso de humor o agradou em cheio.
- Rapaz, eu digo que você foi a melhor coisa dessa noite
terrível. Acho que já marquei presença por tempo suficiente, espero que meus
anfitriões não se chateiem, mas vou pra casa. Espero que você sobreviva a essa
loucura. – Keaton deu dois passos longos e já estava saindo da sala, quando eu
o interrompi.
- Espere um pouco, você nem sabe meu nome, não me
apresentei.
Eu realmente tentei espremer aquela situação em busca de
mais alguma resposta, essa constatação tola foi o que pude pensar na rapidez do
momento. E Keaton respondeu à altura, com graça, mas sem qualquer insinuação de
sorriso no rosto:
- Eu prefiro não saber, perde todo o encanto.
E eu perdi a chance única de entrevistar Buster Keaton. Mas
pelo pouco contato que tive, percebi que seu temperamento nunca permitiria um
papo longo e revelador sobre sua intimidade, sobre seu trabalho. Desliguei o
gravador, terminei meu uísque e segui para o salão principal...
Continua em "A Arte do Guerreiro Lúcido", meu segundo livro, que será lançado pela editora Jaguatirica.