quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Edgar Allan Poe no Cinema


Dois Olhos Satânicos (Due Occhi Diabolici / Two Evil Eyes – 1990)
Pensado originalmente como uma antologia de quatro contos, o projeto acabou reduzido às excelentes contribuições de Dario Argento e George Romero, mestres no gênero de estilos bem diferentes. Em sua versão de “O Gato Negro”, melhor segmento do projeto, Argento utiliza elementos de outros contos de Poe, como “Berenice” e “O Poço e o Pêndulo”, demonstrando o seu respeito pela obra do autor, com destaque para uma atuação impecável de Harvey Keitel e a intensa criatividade cênica usual na carreira do italiano. Romero utiliza “O Estranho Caso do Senhor Valdemar” como moldura para trabalhar seu tema favorito, o ataque ao capitalismo, sendo ajudado pela competência nos efeitos de Tom Savini, elemento que garante o alto nível de uma produção que teve vários problemas de orçamento.


Histórias Extraordinárias (Histoires Extraordinaires – 1968)
É muito curioso que dos três contos utilizados no filme, aquele que no papel é o menos interessante, “Nunca Aposte Sua Cabeça Com o Diabo”, um desabafo literário do autor contra os analistas que procuravam lições de moral em suas histórias, acabou sendo o grande destaque, sem dúvida, a razão do filme ainda ser lembrado hoje. O mérito é do mestre Federico Fellini, auxiliado pela trilha maravilhosa de Nino Rota, que entende a essência corajosa do original e faz de “Toby Dammit” uma crítica à cultura da fama emoldurada em um perturbador pesadelo metalinguístico. Roger Vadim, que dirige o primeiro segmento da antologia, conseguiu retirar o impacto visual estimulado pelas palavras de Poe em “Metzengerstein”, reduzindo tudo à sua especialidade: fotografar belas mulheres intensamente sexualizadas. Jane Fonda está deslumbrante, mas o resultado salienta os aspectos negativos de um cineasta que parece tocar na câmera com a destreza de um chimpanzé tocando violino. Já o segundo segmento, “William Wilson”, adaptando a boa história do duplo, apresenta um Louis Malle mais contido, visivelmente inseguro em um terreno desconhecido, mas ganha pontos pela atuação irrepreensível de um paranoico Alain Delon. Ao sermos conduzidos para o último segmento, parece que estamos vendo um curta moderno que foi inserido em uma produção datada, o impacto é tremendo, do estilo visceral na atuação de Terence Stamp, passando pela direção de arte surrealista, até a esperta homenagem a Mario Bava na personificação do demônio na forma da menina loira de “O Ciclo do Pavor”. Fellini firma seu traço autoral na trama, mostrando que só não se tornou um cineasta reconhecido no gênero do terror porque não quis. O purgatório do ator britânico vivido por Stamp é o falso paparico dos repórteres em sua viagem à Itália para promover um novo projeto, o palco excessivamente iluminado que divide espaço com a extrema pobreza, cenário onde todos estão sempre maquiados e com sorrisos mecânicos, figuras vazias, caricaturas deprimentes de sombras que o cortejam em seu caminho para o inferno.


O Corvo (The Raven – 1963)
Ao apostar no humor como tom dominante para o filme, Roger Corman criou uma pérola que se distancia dos outros projetos do ciclo da AIP, utilizando o melancólico poema de Poe como espirituosa desculpa para colocar em cena medalhões como Vincent Price, Boris Karloff e, como a própria ave do título, Peter Lorre, protagonizando o mais divertido duelo de magos da história do cinema. Até mesmo os efeitos visuais trabalhados com o baixo orçamento mantém um charme fascinante, algo que nos remete aos livros de fantasia que líamos na infância. Vale destacar o hilário relacionamento do personagem de Lorre com o filho, vivido por Jack Nicholson, um jovem que o idolatra, mas que recebe como resposta apenas grosseria. O roteiro de Richard Matheson explora todas as possibilidades cômicas, forçando a mão algumas vezes, mas sempre amparado pelo carisma matador de Price. Ainda que muitos críticos avaliem negativamente o clima da obra, o despojamento aparente na leveza das cenas é o símbolo máximo da competência do diretor, já que o mais difícil é fazer com que a superação diária de obstáculos no set de filmagem não transpareça para o espectador, encantado com a naturalidade do elenco no que parece ser uma festa entre amigos de longa data.


Gato Negro (Gatto Nero – 1981)
Um projeto despretensioso feito como um favor de Lucio Fulci ao produtor Giulio Sbarigi, com fantásticas cenas de gore envolvendo chamas e objetos pontiagudos, abusando dos seus característicos planos de detalhe nos olhos, mas com um cuidado maior na construção de clima em um cenário bucólico inglês, resultando em um verniz mais elegante do que o diretor costumava apresentar à época. A trilha de Pino Donaggio ajuda a reforçar o tom sobrenatural e a tristeza da sina de um amaldiçoado, preenchendo as lacunas usuais dos roteiros de seus filmes. O conto é o mais famoso de Poe, tem um final inesquecível e já foi inspiração para vários projetos, como “No Quarto Escuro de Satã”, de Sergio Martino, que a Versátil está lançando na caixa “Giallo, Vol. 3”, até Mario Bava bebeu dessa fonte em seu “Schock”. Vale comparar a versão de Fulci com a comandada por Dario Argento em “Dois Olhos Satânicos”, presente na caixa. 






* Os filmes estão sendo lançados em DVD pela distribuidora Versátil, com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito, no digistack "Edgar Allan Poe no Cinema, Vol. 2", em parceria exclusiva com a Livraria Cultura. 


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