Coração de Cachorro (Heart of a Dog - 2015)
Quando a criança estava deitada na cama do hospital, paralisada
após um acidente numa piscina, uma enfermeira sentava ao seu lado e lia uma
historinha envolvendo um coelho cinza fujão, um livro infantil. Essa memória é
terrível, a menina já estava habituada a ler obras mais instigantes, ela já
conhecia “Crime e Castigo”, de Dostoievski, mas era obrigada a escutar por
horas aquela bobagem. Ela, inconscientemente, tomava conhecimento naquele
momento de que os seres humanos são movidos por padrões, buscando reconhecer em
outrem uma espécie de código de conduta. Aqueles que não correspondem ao padrão
da linha de produção são automaticamente rejeitados. A enfermeira, como grande
parte das pessoas, enxergou a criança como um produto padronizado, cujos
interesses e sistema de comportamento são facilmente codificados em uma imagem
estereotipada unidimensional. Dessa mesma forma enxergamos tudo o que nos
cerca, todos os assuntos, dos mais triviais aos mais complexos, especialmente
aqueles nutridos pelo elemento do desconhecido, como a morte.
A cineasta Laurie Anderson utiliza a sua relação de amor com
Lolabelle, sua falecida rat terrier, como pano de fundo para uma reflexão
profundamente emotiva sobre essa questão. Se nós somos definidos pela
habilidade da comunicação verbal, como Wittgenstein afirmava, “se você não
puder falar sobre, não existe”, precisamos compreender a comunicação dos
animais para que possamos codificar o relacionamento. Quando a cadela ficou
cega, foi incentivada a tocar nas teclas do piano, produzindo sons que não são
reconhecidos como melódicos pela forma humana de codificar música, mas por isso
deixam de ser música? A narração afirma que o que escutamos de fundo é a
gravação de uma canção natalina da artista canina, um registro especialmente
emotivo para a mulher, são sons produzidos pelo toque das patinhas de sua
querida filha do coração, um registro de um ser que não existe mais, apenas em
sua memória. Se o conceito de beleza musical nasce de sons que codificamos, o
que impede esse registro de ser tido como música? Não é exatamente o mesmo
critério que utilizamos com o trabalho dos pintores? A mão do artista pode se
movimentar livremente pela tela, sem obedecer a qualquer código, o pequeno
borrão no canto de uma tela vazia, ou a mistura de cores que não forma uma
figura identificável, o resultado sempre será visto e respeitado como arte. Lolabelle
também pintava, passando suas patinhas em uma tela.
O elemento desconhecido supremo, a morte, é trabalhado no
documentário traçando um paralelo entre um passeio da diretora com sua cadela
nas montanhas e o impacto da tragédia de 11 de Setembro no psicológico dos
norte-americanos. Na tentativa de reconhecer e codificar as formas de expressão
de Lolabelle, para estabelecer real comunicação com ela, Laurie parte com a querida
companheira em uma experiência nas montanhas. Após algumas horas, a incrível
beleza do local acaba desviando o foco da dona, que se esquece do plano e decide
aproveitar aquele tempo brincando com a cadela. A vida é assim, tentamos traçar
metas existencialistas, perdemos horas preciosas buscando compreender a lógica
da finitude, chegamos até a abraçar a tristeza de não sermos capazes de
responder essas questões, mas acabamos encontrando algo divertido no processo
que desvia nossa atenção, uma piada bem contada, um bom filme, um bom livro, os
primeiros passos de um filho, a ternura no olhar de um cão.
O medo da morte
nasce na cadela ao perceber em seu passeio um perigo que ainda não conhecia: as
aves que tentavam se aproximar, caçadoras de um terreno inexplorado. A dona
enxerga uma mudança no olhar do animal, algo que ela havia encontrado nos olhos
dos seus vizinhos nos dias que se seguiram à queda das torres gêmeas. O medo da
morte é parte essencial de um processo importante e que não deve ser negado. O
padrão dos veterinários, assim como o livro escolhido pela enfermeira, ao discursar
um conteúdo memorizado sobre a possibilidade de acabar com o sofrimento do
animal com apenas uma injeção, impede que o animal utilize o tempo necessário
para reconhecer a finitude. O envelhecimento, essa aproximação natural da morte
após a breve juventude, possibilitou que a diretora enxergasse em suas
recordações o momento exato em que se sentiu amada por sua mãe, algo que
parecia ter sido bloqueado em sua mente. Laurie propõe, acima de tudo, um
convite para que o espectador também analise com carinho a efemeridade da vida,
para que ele não perca precioso tempo em rituais que satisfaçam outrem, ou
obedecendo a padrões desgastados. Crie seu próprio ritual, codifique sua
linguagem única.
Muito bom, Octavio... texto, inclusive, emocionante! É tão raro quando percebemos questões mais essenciais de nós mesmos diante da vida que, ao ver uma obra que escancare mais essa intuição, ficamos tentados em agir mais depressa para "nos resolvermos". Mas sabemos que a vida é uma equação cheio de incógnitas para se achar o valor, não é mesmo?
ResponderExcluirE sendo do ano passado, acho que consigo encontrar esse documentário que tanto me cativou por suas palavras.
Grande abraço!