quarta-feira, 10 de agosto de 2016

"Coração de Cachorro", de Laurie Anderson


Coração de Cachorro (Heart of a Dog - 2015)
Quando a criança estava deitada na cama do hospital, paralisada após um acidente numa piscina, uma enfermeira sentava ao seu lado e lia uma historinha envolvendo um coelho cinza fujão, um livro infantil. Essa memória é terrível, a menina já estava habituada a ler obras mais instigantes, ela já conhecia “Crime e Castigo”, de Dostoievski, mas era obrigada a escutar por horas aquela bobagem. Ela, inconscientemente, tomava conhecimento naquele momento de que os seres humanos são movidos por padrões, buscando reconhecer em outrem uma espécie de código de conduta. Aqueles que não correspondem ao padrão da linha de produção são automaticamente rejeitados. A enfermeira, como grande parte das pessoas, enxergou a criança como um produto padronizado, cujos interesses e sistema de comportamento são facilmente codificados em uma imagem estereotipada unidimensional. Dessa mesma forma enxergamos tudo o que nos cerca, todos os assuntos, dos mais triviais aos mais complexos, especialmente aqueles nutridos pelo elemento do desconhecido, como a morte.

A cineasta Laurie Anderson utiliza a sua relação de amor com Lolabelle, sua falecida rat terrier, como pano de fundo para uma reflexão profundamente emotiva sobre essa questão. Se nós somos definidos pela habilidade da comunicação verbal, como Wittgenstein afirmava, “se você não puder falar sobre, não existe”, precisamos compreender a comunicação dos animais para que possamos codificar o relacionamento. Quando a cadela ficou cega, foi incentivada a tocar nas teclas do piano, produzindo sons que não são reconhecidos como melódicos pela forma humana de codificar música, mas por isso deixam de ser música? A narração afirma que o que escutamos de fundo é a gravação de uma canção natalina da artista canina, um registro especialmente emotivo para a mulher, são sons produzidos pelo toque das patinhas de sua querida filha do coração, um registro de um ser que não existe mais, apenas em sua memória. Se o conceito de beleza musical nasce de sons que codificamos, o que impede esse registro de ser tido como música? Não é exatamente o mesmo critério que utilizamos com o trabalho dos pintores? A mão do artista pode se movimentar livremente pela tela, sem obedecer a qualquer código, o pequeno borrão no canto de uma tela vazia, ou a mistura de cores que não forma uma figura identificável, o resultado sempre será visto e respeitado como arte. Lolabelle também pintava, passando suas patinhas em uma tela.

O elemento desconhecido supremo, a morte, é trabalhado no documentário traçando um paralelo entre um passeio da diretora com sua cadela nas montanhas e o impacto da tragédia de 11 de Setembro no psicológico dos norte-americanos. Na tentativa de reconhecer e codificar as formas de expressão de Lolabelle, para estabelecer real comunicação com ela, Laurie parte com a querida companheira em uma experiência nas montanhas. Após algumas horas, a incrível beleza do local acaba desviando o foco da dona, que se esquece do plano e decide aproveitar aquele tempo brincando com a cadela. A vida é assim, tentamos traçar metas existencialistas, perdemos horas preciosas buscando compreender a lógica da finitude, chegamos até a abraçar a tristeza de não sermos capazes de responder essas questões, mas acabamos encontrando algo divertido no processo que desvia nossa atenção, uma piada bem contada, um bom filme, um bom livro, os primeiros passos de um filho, a ternura no olhar de um cão. 

O medo da morte nasce na cadela ao perceber em seu passeio um perigo que ainda não conhecia: as aves que tentavam se aproximar, caçadoras de um terreno inexplorado. A dona enxerga uma mudança no olhar do animal, algo que ela havia encontrado nos olhos dos seus vizinhos nos dias que se seguiram à queda das torres gêmeas. O medo da morte é parte essencial de um processo importante e que não deve ser negado. O padrão dos veterinários, assim como o livro escolhido pela enfermeira, ao discursar um conteúdo memorizado sobre a possibilidade de acabar com o sofrimento do animal com apenas uma injeção, impede que o animal utilize o tempo necessário para reconhecer a finitude. O envelhecimento, essa aproximação natural da morte após a breve juventude, possibilitou que a diretora enxergasse em suas recordações o momento exato em que se sentiu amada por sua mãe, algo que parecia ter sido bloqueado em sua mente. Laurie propõe, acima de tudo, um convite para que o espectador também analise com carinho a efemeridade da vida, para que ele não perca precioso tempo em rituais que satisfaçam outrem, ou obedecendo a padrões desgastados. Crie seu próprio ritual, codifique sua linguagem única. 
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

  1. Muito bom, Octavio... texto, inclusive, emocionante! É tão raro quando percebemos questões mais essenciais de nós mesmos diante da vida que, ao ver uma obra que escancare mais essa intuição, ficamos tentados em agir mais depressa para "nos resolvermos". Mas sabemos que a vida é uma equação cheio de incógnitas para se achar o valor, não é mesmo?

    E sendo do ano passado, acho que consigo encontrar esse documentário que tanto me cativou por suas palavras.

    Grande abraço!

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