Link para os textos anteriores desse especial que se leva
tão a sério quanto o próprio Woody:
O maior medo de Jonas era se tornar presidente do país,
passar a ter suas eróticas ligações telefônicas grampeadas, comparecer devidamente
vestido às entediantes cerimônias oficiais, deixar de frequentar as famosas
orgias promovidas por seu amigo Juninho Cupido, em suma, protagonizar num circo
sem atrações minimamente interessantes. Por um golpe do destino, ele se viu
forçado a tomar o lugar de uma boneca de ventríloquo que caiu do colo de seu mestre, sendo encontrada semanas depois, esmolando deitada na frente de uma imobiliária.
O que deveria ter sido uma função temporária, até os psiquiatras conseguirem
identificar o distúrbio menos óbvio nela, acabou se tornando uma realidade sofrível
para o rapaz, quando dois especialistas foram vistos correndo gargalhando pela
rua. Nem mesmo as manifestações diárias da classe artística, que vomitava em
ritmo de bolero na frente do hospício, conseguiram comover a opinião pública, a
boneca foi isolada em uma caixa de vidro e colocada em um museu de ocultismo.
Até o presente momento, há relatos de uma família de cubanos que tentou roubar
o artefato, mas sem sucesso.
Jonas, percebendo que não conseguiria fugir do compromisso,
aproveitou sua última noite como um cidadão comum da melhor maneira que conhecia: brincando de
morto e vivo com sua namorada, quarenta anos mais velha que ele. Após quinze
minutos, sentiu que ela estava mais sorumbática que o normal. Antes do raiar do
dia, uma ambulância era vista pelos vizinhos saindo apressada da mansão. Sem
uma primeira-dama, o rapaz chamou os jornalistas para dizer que não via sentido
algum em sua cerimônia de posse, afinal, quem iria fornecer material semanal de
moda para as colunas sociais? A afirmação repercutiu em todas as mídias, chocando
especialmente as feministas. Um debate na televisão sobre a reportagem ganhou
destaque por ter sido mediado por um guaxinim guatemalteco (tente falar isso
cinco vezes em sequência). O novo presidente tentou ganhar a afeição do
público, mas seu sorriso traumatizou uma criança de colo, o que fez com que a
mãe garantisse um cargo de ministro para o marido. Jonas definitivamente não
havia nascido com vocação para sair de casa, o negócio dele era o confinamento.
Já que o povo ficou um longo tempo sem saber como era ser liderado
por alguém de carne e osso, qualquer frase coerente evidenciando algum senso de
retórica que ele dissesse era seguida por aplausos emocionados. O pior pesadelo
dele aconteceu, por mais que ele tentasse reverter isso, a nação clamava seu
nome. Os seguranças do museu afirmam que em algumas madrugadas, especialmente
nos minutos que antecedem as primeiras luzes da manhã, barulhos estranhos são
escutados no quarto da boneca. A classe artística se organiza agora para uma
manifestação mais impactante contra o afastamento dela, envolvendo tripas de
boi, tiro ao alvo com urina e gritos de palavras de ordem com gás hélio.
Enquanto isso, preocupados com a atual situação ética do país, os bandidos
cogitam repensar suas atividades. Juninho Cupido faz fortuna com orgias cada
vez mais mirabolantes. E Jonas, pobre Jonas, segue sonhando com a liberdade.
A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo – 1985)
Durante a Grande Depressão americana, a solitária garçonete
Cecília (Mia Farrow) é perdidamente viciada em filmes hollywoodianos. Cativada
por seu mais novo favorito, A Rosa Púrpura do Cairo, Cecília fica totalmente
surpresa quando o astro principal (Jeff Daniels) repentinamente sai da tela
para conhecê-la.
Inspirado pela comédia muda “Sherlock Jr.”, de Buster
Keaton, Woody cria uma das unanimidades mais queridas de sua carreira, impossível
não se encantar com a trama desse filme. A trajetória da protagonista
simboliza a importância da arte como força motriz para se resistir aos
sofrimentos inerentes à condição humana, algo que o próprio diretor
retrabalharia numa bela sequência de “Hannah e Suas Irmãs”, quando seu
personagem encontra alento para sua angústia numa sessão dos Irmãos Marx. A
garçonete vivida por Mia Farrow, fragilizada figura, não consegue se enxergar
no reflexo do espelho, sem amor próprio, com sua autoconfiança destruída após
anos de relacionamento com um típico machista grosseiro. Sem perspectiva alguma
de melhoria em sua condição de vida, acompanhando a decrepitude de sua cidade
devastada pela Grande Depressão, ela decide passar a maior parte do tempo livre
dentro da sala de cinema, absorvendo toda a magia daquele ambiente. Em uma
produção de aventura simplória, o protagonista não resiste ao ver a jovem na
plateia e decide sair do filme, para conhecer melhor sua fã.
O conceito é simples, a fotografia do mestre Gordon Willis, em sua última parceria com Allen, evidencia a característica fabulesca da trama, reservando para o ambiente interno do cinema um brilho calorosamente etéreo, contrastando com os tons desbotados do mundo triste que a jovem encontra ao acender das luzes. É um toque de gênio iniciar e finalizar a obra com a clássica cena de "O Picolino", Fred Astaire e Ginger Rogers dançando ao som de "Cheek to Cheek", de Irving Berlin, um dos símbolos da época em que Hollywood produzia sonhos filmados, exatamente para elevar o espírito do povo norte-americano afundado na crise. O texto impecável de Woody, em um de seus momentos mais inspirados, como quando o galã se choca ao perceber que, após o beijo dado em Cecília, não será interrompido por um fade out. Como nota final, sempre recomendo que esse filme seja visto em sessão dupla com outra obra-prima: "Contrastes Humanos", de Preston Sturges, ambientado no mesmo período e que agrega à bonita mensagem proposta por "A Rosa Púrpura do Cairo". Ao final, escolhendo ficar com a contraparte real de Tom, o ator que o interpreta, Cecília demonstra que amadureceu. E, numa reviravolta brilhante, o mundo real apresenta sua face brutal, o que a faz retornar ao escapismo da arte, mas agora consciente de sua função, com segurança para largar seu marido agressivo e reiniciar do zero sua jornada.
O conceito é simples, a fotografia do mestre Gordon Willis, em sua última parceria com Allen, evidencia a característica fabulesca da trama, reservando para o ambiente interno do cinema um brilho calorosamente etéreo, contrastando com os tons desbotados do mundo triste que a jovem encontra ao acender das luzes. É um toque de gênio iniciar e finalizar a obra com a clássica cena de "O Picolino", Fred Astaire e Ginger Rogers dançando ao som de "Cheek to Cheek", de Irving Berlin, um dos símbolos da época em que Hollywood produzia sonhos filmados, exatamente para elevar o espírito do povo norte-americano afundado na crise. O texto impecável de Woody, em um de seus momentos mais inspirados, como quando o galã se choca ao perceber que, após o beijo dado em Cecília, não será interrompido por um fade out. Como nota final, sempre recomendo que esse filme seja visto em sessão dupla com outra obra-prima: "Contrastes Humanos", de Preston Sturges, ambientado no mesmo período e que agrega à bonita mensagem proposta por "A Rosa Púrpura do Cairo". Ao final, escolhendo ficar com a contraparte real de Tom, o ator que o interpreta, Cecília demonstra que amadureceu. E, numa reviravolta brilhante, o mundo real apresenta sua face brutal, o que a faz retornar ao escapismo da arte, mas agora consciente de sua função, com segurança para largar seu marido agressivo e reiniciar do zero sua jornada.
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