segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

"Serpico", de Sidney Lumet


Serpico (1973)
O protagonista está sentado descansando em seu jardim, escutando a ária “E Lucevan le Stelle”, momento marcante da ópera Tosca, onde o revolucionário Cavaradossi aguarda seus últimos minutos de vida em uma prisão. Um detalhe que pode passar despercebido, mas que demonstra a sensibilidade criativa do diretor Sidney Lumet, que adaptou a história real imortalizada no livro de Peter Maas. O trágico pintor de Puccini e o policial íntegro interpretado brilhantemente por Al Pacino possuem muito em comum, especialmente a qualidade de manterem-se fiéis aos seus valores, mesmo quando confrontados pela total desesperança. Frank Serpico só queria fazer seu trabalho, não defendia nenhuma causa nobre, mas cometeu o crime de ignorar que o sistema alimentava a corrupção que, em teoria, deveria combater.

O roteiro de Waldo Salt e Norman Wexler mostra a gradual frustração de um jovem que tinha uma visão idealizada de como ser um oficial da lei. O desconforto inicial ao perceber os primeiros deslizes de seus colegas, o choque ao constatar que seus superiores temiam sua resistência a receber propina, pois acabaria se tornando como o rei sábio do conto que escuta de sua namorada, um louco aos olhos daqueles que beberam da fonte envenenada pela ganância. Ele não estava disposto a sorver sequer uma gota daquela água pestilenta. Com real interesse, ele atravessa uma fase em que tenta genuinamente compreender as possíveis razões por trás dos atos ilegais de seus colegas, o baixo salário ou problemas familiares, mas logo descobre que não há dificuldade extrema que não seja subjugada pela dignidade daquele cujo caráter não se dobra.

Chega a ser tocante a interpretação de Pacino, exibindo profundas transformações psicológicas num espaço de poucos anos na vida do personagem, indo da tranquilidade gentil de quem entra na brincadeira de crianças na rua, passando pela fase madura da segurança profissional, cortejando pacientemente as mulheres que despertam seu interesse, culminando no retrato triste de um homem existencialmente cansado, cínico, angustiado e agressivo. É impactante o momento, capturado em inteligente plano longo e sem cortes, em que vemos sua explosão pra cima de seus colegas, após assistir eles conversando tranquilamente com o mafioso que havia conduzido para ser devidamente punido. Esse trabalho de construção de personagem é auxiliado pela decisão do diretor de fotografia Arthur J. Ornitz, que, em diversas cenas, utiliza lentes que achatam a imagem, criando a ilusão de que o cenário se impõe sobre o protagonista, oprimindo-o cada vez mais em sua jornada inescapável rumo à descrença total na honestidade em sua função.

* O filme está sendo lançado, em versão recentemente restaurada, pela distribuidora "Versátil".

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