quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Rebobinando o VHS - "O Jeca Macumbeiro" / "Tristeza do Jeca" / "Jeca Contra o Capeta"


Nada melhor do que terminar o ano acompanhado de Mazzaropi. Meu primeiro contato com ele foi assistindo o VHS de “O Jeca Macumbeiro”, alugado por meu pai, que diz ter assistido quase todos os filmes dele no cinema. A cópia era péssima, a imagem bastante amarelada, o som quase inaudível. Aquilo era diferente de tudo que eu já havia assistido, o humor tinha um timing próprio, a trama exalava uma liberdade, como se fosse tudo improvisado.


Tristeza do Jeca (1961)
O Jeca Macumbeiro (1974)
Jeca Contra o Capeta (1976)
A crítica normalmente despreza o popular como sendo, obrigatoriamente, resultado de um apreço com pouco critério, aplaudido por leigos que não sabem o que fazem. Não é um equívoco total de percepção, ainda mais nessa nação, onde a cultura nunca foi valorizada e a leitura não é um hábito sequer entre os adultos. O mercado nacional atual erra por buscar nutrir exatamente essa mediocridade confortável, produzindo comédias que, com raríssimas exceções, não seriam aceitas nem mesmo como pueril entretenimento televisivo em mercados mais competitivos. Mas é importante exercitar a sensibilidade e discernir o sofisticado que pode estar inserido em um produto sem maiores pretensões, da mesma forma que se pode constatar o vazio maquiado em uma obra que procura esbanjar sofisticação, com diretores celebrados e grandes orçamentos. Amácio Mazzaropi era muito inteligente, capitalizava em cima dos temas que estavam fazendo sucesso no mundo, transportando, por vezes, de forma até tímida, aquela temática para o universo de seu personagem.

A comédia nacional atual copia o estilo americano, afirmando estar falando a “língua” do povo brasileiro, quando, na realidade, ela está nutrindo a expectativa desse povo que se acostumou ao estilo americano de comédia. Nossa comédia não é simbolizada pelas gags de “Friends” ou “Seinfeld”, ou pelo humor visual meticulosamente construído de Jacques Tati e Jerry Lewis, não é tão elaborada. O humor genuinamente nacional de Chico Anysio, José Vasconcellos, Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, entre tantos outros, é direto ao ponto, frases contundentes, estrutura simples, que não precisa ser sinônimo de simplória e populista. O Jeca de Mazzaropi percebeu que “O Exorcista” lotava cinemas no mundo, então trabalhou o tema em “O Jeca Macumbeiro” e “Jeca Contra o Capeta”, criando as situações com base em seu próprio estilo, aquilo que seu público já sabia que iria encontrar. Quando ele dizia que pensava seu cinema objetivando o público, não a crítica, ele dava uma aula que ainda hoje não foi aprendida por aqui. Não há maneira de se criar uma indústria de cinema somente com projetos autorais e pretensões existencialistas, nós precisamos trabalhar variados gêneros, incentivando cineastas de qualidade a ousarem no terror, na ficção científica, no musical, não ficar reutilizando uma panelinha de meia-dúzia de incompetentes que pensam apenas no lucro, não no legado artístico que irão deixar para o cinema nacional do amanhã.

O Pirola de “O Jeca Macumbeiro” retruca o esquálido Nhonhô, após escutar que ele está sentindo a morte chegar, afirmando com segurança que ele está até forte e corado, numa demonstração do humor irônico e direto de Mazzaropi, uma espécie de Groucho Marx com fala mansa. Na mesma cena, ele se mostra mais direto, ao utilizar a simples analogia com o signo de Virgem, como explicação lógica para o fato do homem doente não ter se casado. Alguns segundos depois, emocionado ao descobrir que o homem irá deixar sua fortuna pra ele, numa abordagem ainda mais direta, na linha tênue do vulgar, ele faz um jogo de palavras: Nhonhô, Deus lhe pague por ocê ter escolhido eu pra ficar “comerdeiro” seu. Ele, nas palavras de Leonardo da Vinci, demonstrava que a simplicidade é o último grau de sofisticação. No inferior “Jeca Contra o Capeta”, o demônio aparece na forma de uma lei do divórcio, onde o exorcismo, como aconselhado pelo Jeca, poderia se resumir a um “banho de picão”. Já em “Tristeza do Jeca”, ele realiza profunda crítica social, extremamente atual em um governo de cotas e bolsas, quando seu personagem responde a um grupo de trabalhadores da roça, que afirmavam ingenuamente que a vida ia melhorar, já que eles todos iam votar no coronel. Mazzaropi afirma: “Vocês podem parar de encher minha cabeça com esse negócio de política? Entra prefeito, sai prefeito, vocês tão se queixando. Vocês não querem trabalhar, querem viver à custa de governo. Faz que nem eu: trabalha!”. 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Rebobinando o VHS - "Olhos de Tigre" / "O Fantasma da Ópera"


Hoje promovi o meu reencontro com a distribuidora que acredito representar o símbolo máximo daquela época: América Vídeo, com seus “filmes que explodem como dinamite”. Quem não ficava louco de vontade de conhecer a bucólica “Pousada do Sandi”, em Paraty, que era divulgada em todas as fitas? Como esquecer essa vinheta de abertura, ao som de “Winner Takes It All”, cantada por Sammy Hagar, com narração do saudoso Jorgeh Ramos, que nos colocava no clima certo, na expectativa para duas horas de puro escapismo?


Alguns anos atrás, eu tive a honra de ser convidado para escrever o texto de abertura do Prêmio da Dublagem Carioca, que foi narrado pelo Jorgeh. Fiz questão de contar pra ele que eu ficava imitando a sua voz, o texto memorizado, enquanto aguardava o início dos filmes dessa distribuidora. É surreal como a vida dá voltas, nunca ia imaginar que ele um dia narraria um texto meu.


Olhos de Tigre (Parole de Flic – 1985)
O Fantasma da Ópera (The Phantom of the Opera – 1925)
Após uma limpeza no cabeçote do aparelho, acabei me surpreendendo com uma fita cuja trama eu não me recordava. É muito legal ver o eterno Le Samouraï e Rocco Parondi sendo transformado em um misto de Charles Bronson e Stallone, um policial aposentado que faz justiça com as próprias mãos, após sua filha ser assassinada por uma gangue de vigilantes urbanos. Ele briga descamisado numa praia, com direito até a uma montagem de treinamento, desferindo socos na direção da câmera, numa trama que ele mesmo escreveu, defendendo até a canção que toca nos créditos finais. O seu comprometimento fica latente ao percebermos que ele realiza suas próprias cenas de ação mais difíceis, e são várias, com a câmera preocupada em assegurar o público de que não se trata de um dublê. Ele entra no mercadinho de um dos assassinos, tem todo o trabalho de encontrar duas nozes, só pra apavorar o marginal na hora de pagar a conta, esmagando-as logo após afirmar calmamente que aquelas eram as bolas do sujeito. E, demonstrando vocação para quiromante, ele pede para o homem mostrar sua linha da vida, poucos segundos antes de meter uma bala na palma da mão que se estendia no ar. Esse tipo de elemento típico da fórmula americana de trabalhar tramas de vingança, conduzido com mão segura pelo diretor francês José Pinheiro, mostra como se pode manter uma qualidade autoral abraçando o estilo de outra cultura. Um ótimo filme de ação, infelizmente nunca lançado por aqui em DVD ou Blu-ray.

Já “O Fantasma da Ópera” foi incluído apenas pela situação exótica que envolveu meu primeiro contato com ele. Assim que coloquei a fita pra rodar no aparelho, voltaram em minha mente as lembranças de um dia atípico nas férias de final de ano, no final da década de noventa. Eu carregava para todo lado o Guia de Vídeo – Terror, lançado nas bancas de jornal pela Editora Escala. Eu memorizava as sinopses e corria desesperado atrás daqueles filmes que ainda não tinha encontrado nas locadoras de vídeo. Esse era um dos que eu tinha mais interesse, já que sempre fui fã do livro original de Gaston Leroux e um apaixonado pelo cinema mudo. Eu pegava a Lista Amarela e saía ligando para todas as locadoras da cidade, perguntando se tinham a fita, sem sucesso. Nas férias, fui passar umas semanas na casa do meu avô na região serrana de Teresópolis. Chegando lá, fiquei feliz, já que tinham aberto uma locadora exatamente na esquina da casa. Melhor, impossível! Na primeira visita que fiz ao lado do meu pai, meus olhos não podiam acreditar no que estavam vendo. Lá estava, em posição de destaque, o clássico protagonizado por Lon Chaney, lançado pela distribuidora Continental. Após toda a burocracia para me tornar sócio, deixei meu pai furioso, afinal, eu precisava copiar aquela fita para colocar na minha coleção. Na casa não havia dois aparelhos, então, por incrível que pareça, fiz meu pai descer a serra comigo, de volta para nosso apartamento, para que eu pudesse realizar a operação. E, nunca me esqueço da frustração, o VHS simplesmente não rodava. Era como se não houvesse nada gravado na fita. Daquele dia em diante, tomei raiva da Continental, que, ainda hoje, continua realizando o mesmo trabalho de baixa qualidade no formato DVD. 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Rebobinando o VHS - "Capitão América" (1990)


O próximo VHS que selecionei na estante embolorada do tempo é símbolo de uma época muito pouco generosa para os nerds. A escassez de produtos para esse público era tanta, que encontrar esse filme na locadora causava até um arrepio na espinha, uma emoção única que hoje se banalizou, com cinco filmes de super-heróis sendo lançados por semana. E, fora de nostalgia, ainda considero essa pérola de baixo orçamento, mesmo com seus problemas e liberdades com o material original, muito mais interessante e eficiente que o primeiro “Capitão América” dessa nova geração, um dos roteiros mais fracos da primeira fase da Marvel. Naquela época, a única imagem cinematográfica que tínhamos do herói patriótico era uma versão bizarra filmada em 1979, que passava no “Cinema em Casa” do SBT, com o personagem utilizando um escudo transparente, um capacete que parecia o do nosso “Capitão Aza” e uma motocicleta. Quando encontrei a capa dessa produção na prateleira da locadora, apenas em versão dublada, lembro que já estava locada, fiquei muito triste. Acabei conhecendo a trama lendo a adaptação oficial em quadrinhos, inserida em um dos números da revista mensal do herói pela Editora Abril. Algumas semanas depois, com dois videocassetes, sendo um emprestado, fita adesiva, além de uma trabalheira para entender como fazer o truque funcionar, eu fiz a cópia da fita, uma das minhas primeiras incursões infanto-juvenis no mundo da trambicagem cultural. Como eu era ingênuo e sistemático, fiquei bastante preocupado por alguns dias, achando que o FBI ia eventualmente bater na minha porta. Já estava até praticando técnicas de fuga assistindo “Papillon”.


Capitão América (Captain America – 1990)
Chego a sorrir lembrando que, na primeira vez que assisti, por volta dos nove anos, fiquei emocionado nos créditos finais, ao som da melancólica “Home of the Brave”, cantada por Ivan Neville. E, assustado, percebo que, ainda hoje, aquele desfecho, com a narração que fala sobre o presidente, vivido por Ronny Cox, agradecer o herói que, em sua infância, fez com que ele acreditasse no poder do sonho, ainda me dá um nó na garganta. Um toque simples de sentimentalismo que compensava a pobreza da produção, enquanto os altos orçamentos hoje no subgênero carecem de emoção genuína, com cada página no roteiro extremamente calculada. A própria opção de exibir pouco o uniforme do herói, gera uma expectativa saudável, ainda mais quando se é criança. Essa produção de Menahem Golan, dirigida por Albert Pyun, modifica elementos básicos, como fazer do vilão nazista Caveira Vermelha, vivido por Scott Paulin, um italiano que recebe ordens de Mussolini. Mas acho válido o senso de humor, simbolizado na cena em que o Capitão América estreia seu uniforme, debochando com seu superior sobre a preocupação que eles tiveram com sua camuflagem. Por mais refinada que seja a nova versão, não dá pra levar a sério, ainda mais em um contexto sociopolítico real, um soldado vestido com as cores da bandeira de sua nação, que utiliza um escudo como bumerangue.

O problema foi que a produção necessitava do lucro que seria obtido em outros filmes, para custear a correta finalização das filmagens que constavam no cronograma, mas Golan acabou tendo que fechar a cortina antes do espetáculo acabar. Parte de elenco chegou a entrar em contato com o criador do herói: Stan Lee, para ver se ele conseguia interceder pela produção, para que o resultado saísse, com sorte, de uma forma digna. A primeira meia-hora é bem eficiente, mas o segundo ato, que envolve o retorno do herói após ser descongelado no futuro, se perde em resoluções típicas de filmes para televisão, conduzindo para um terceiro ato que parece ter sido idealizado às pressas, ainda que o cenário do castelo italiano seja imponente, mas terrivelmente subutilizado. O maior erro do filme foi a escalação do protagonista: Matt Salinger, filho do escritor J.D. Salinger, de “O Apanhador no Campo de Centeio”, sem carisma algum e aparentando estar totalmente desconfortável vestindo o traje colorido, ainda que tenha afirmado em entrevistas sua empolgação com o papel, já que era fã do personagem desde a infância. É curioso ver Ronny Cox e Ned Beatty, que trabalharam juntos no clássico “Amargo Pesadelo”, reunidos no projeto, mesmo sabendo que seus agentes deviam ter sido demitidos na época. 

domingo, 28 de dezembro de 2014

Rebobinando o VHS - "Ratos" / "O Rato Humano"


Após me aventurar na pancadaria de Steven Seagal, ainda tentando me lembrar de suas tramas, decidi checar se essas duas fitas exóticas não tinham se desmagnetizado. Para meu azar, elas funcionaram perfeitamente. Elas são resultado do garimpo em uma tarde perdida na década de noventa, no mercado popular da Uruguaiana, que os leitores cariocas provavelmente conhecem. As fitas, na melhor das hipóteses, advindas de locadoras de vídeo que haviam fechado, ficavam empilhadas do chão ao teto, sem nenhum critério, acumulando poeira. “Leve 3, Pague 1”, gritavam os vendedores, mas, com um bom papo, você conseguia negociar valores ainda mais baixos. Naquela época eu voltava para casa com algumas sacolas, algo em torno de vinte fitas, com sorte, algumas bem raras. A capa de “O Rato Humano”, sem dúvida, uma das mais vergonhosas do formato, continha um aviso macabro: “Advertência – Aconselha-se ao público impressionável não alugar esta fita”. Em meu cérebro isso significava: “Leva logo, moleque!”.


Ratos (Rats – Notte di terrore - 1984)
O Rato Humano (Quella Villa In Fondo Al Parco - 1988)
“Ratos”, dirigido de forma incompetente, como de costume, pelo italiano Bruno Mattei, pode até ser considerada uma obra-prima, quando comparada ao espetáculo de vergonha alheia que é “O Rato Humano”, que será analisado com a atenção que merece no próximo parágrafo. Ele começa com um letreiro interminável, sempre um péssimo sinal, avisando que estamos assistindo um mundo pós-apocalíptico, numa era intitulada criativamente de “A.B”: após a bomba. Um evento tão impactante que substituiu a influência de Cristo na contagem do tempo. Como todos os filmes no tema após “Mad Max”, somos conduzidos obviamente para um cenário desolador habitado por homens de jaqueta de couro, bandanas e lenços no pescoço, montados em suas motos possantes, com estoque infinito de gasolina, elemento que surpreendentemente nunca se esgota em mundos pós-apocalípticos. E, nesse mundo de homens e mulheres fortes, castigados diariamente pelas intempéries, a simples visão de um corpo sendo comido por alguns ratos leva as sobreviventes a gritarem desesperadamente. Nada mais ameaçador que a possibilidade de contaminação por leptospirose, meningite ou hepatite, quando se vive em um mundo aparentemente sem água, mas com gasolina e munição infinita. Mas nada supera o desfecho, uma espécie de primo pobre, estrábico, corcunda e gago de “O Planeta dos Macacos”, quando os personagens descobrem que estão vivendo em um mundo de ratos humanos, um plot twist tão impressionante que o aparelho, indignado, até mastigou o trecho da fita.

“O Rato Humano” é dirigido por Giuliano Carnimeo, responsável por “Sartana – O Matador”, aquele que considero o mais divertido na franquia do Mandrake 007 do faroeste italiano, vivido por Gianni Garko. Uma produção da Fulvia Films, que, numa exibição de politicamente incorreto ao extremo, coloca o falecido Nelson de la Rosa, o menor homem do mundo, com 54 centímetros, escondido por uma maquiagem tosca de rato, saindo de privadas para atacar suas vítimas. O conceito, por si só, já faz o queixo cair, mas a execução é ainda mais absurda. A fotografia do VHS é escura o bastante para impedir que tenhamos certeza se nós estamos realmente presenciando os ataques, ou é nossa imaginação fazendo todo o trabalho. Ao final, ficamos com uma sensação de profundo mal-estar, similar ao que sentimos ao assistir o clássico “Freaks”, um sentimento sempre muito bem-vindo em filmes do gênero. Então, de certa forma torta e bizarra, mesmo sendo intensamente ruim, a fita satisfaz suas pretensões. 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Rebobinando o VHS - "Difícil de Matar" / "Fúria Mortal"


Nessa maratona nostálgica durante as festas de final de ano, postarei um texto por dia, totalizando dez, rebobinando antigos VHS’s de variados gêneros e épocas, filmes não necessariamente bons, mas que, em sua maioria, não foram lançados em DVD ou Blu-ray no mercado nacional. Obras que estão embolorando na estante do tempo. Para aproveitar ao máximo a experiência, os textos, breves e descompromissados, nascem após revisões no próprio formato.

Escolhi iniciar com dois filmes simbólicos da época em que iniciei minhas garimpagens pelas locadoras de vídeo, após meu pai ter ganhado numa rifa o estimado videocassete. Eu nunca gostei de Steven Seagal, detesto seus filmes mais conhecidos: “A Força em Alerta 1 e 2”, mas os seus quatro primeiros projetos são bons em seu gênero, especialmente “Marcado Para a Morte”, que já abordei em um texto do especial “Kung-Fu Fighting”. Esses dois que escolhi revisitar hoje não paravam nas prateleiras das locadoras. Era comum você precisar assinar uma lista de espera com o atendente, que prometia ligar pra você no exato momento em que as fitas fossem devolvidas. E ele ligava mesmo! A “RG Vídeo Locadora”, que ainda resiste na Rua 28 de Setembro, em Vila Isabel, era minha segunda casa, então eu esperava sempre a ligação do Ricardo, dono do estabelecimento, que acabou se tornando amigo da família. Como era emocionante chegar lá sem saber exatamente quais filmes estariam disponíveis, aqueles que tinham fichas coloridas inseridas nos estojos. Eu ficava abraçado com aquelas capas sem fichas, fazendo hora, na expectativa de que o cliente as devolvesse. Estava me lembrando dessa época nessa tarde, enquanto abria o estojo e colocava a fita pra rodar no aparelho, torcendo para que ela não estivesse desmagnetizada ou fosse mastigada dentro da máquina.


Difícil de Matar (Hard to Kill – 1990)
Fúria Mortal (Out for Justice – 1991)
Um dos motivos que me fez unir os dois em um único texto é que simplesmente não conseguia me lembrar das tramas ao final das sessões. Os dois são sobre vingança. 

Em “Difícil de Matar”, o herói de fala mansa fica em coma por sete anos, ostentando um cavanhaque risível, conseguindo a proeza de, em seu estado vegetativo, despertar a paixão avassaladora de uma linda enfermeira que se mostra emocionalmente despreparada e desastrada, vivida pela musa dos anos oitenta: Kelly LeBrock, que estava casada com o ator na vida real. Ele sai do hospital e, com pouco tempo de treino, consegue retomar toda sua habilidade nas Artes Marciais, um conflito interno que o roteiro resolve em uma rápida montagem. O diretor Bruce Malmuth, do bom “Os Falcões da Noite”, o projeto que quase foi “Operação França 3”, também conhecido popularmente como o filme do Stallone com barba, não consegue realizar algo acima do medíocre nessa fita. A única cena interessante que consigo lembrar ocorre no primeiro ato, uma pancadaria numa loja de conveniência, onde Seagal exibe toda a indisfarçável arrogância que destruiu sua carreira e sua indiscutível perícia no Aikido. Adoro o momento em que ele bate um papo tranquilo com o ladrão que o ameaça com uma faca, chegando a se ajoelhar, convidando o marginal a tentar a sorte, pouco antes de transformá-lo em uma espécie de Curupira norte-americano.  

Já em “Fúria Mortal”, Seagal interpreta basicamente o mesmo personagem, como sempre, apenas inserindo um péssimo sotaque italiano e o hábito estereotipado de beijar a face de seus amigos. Num ato que demonstra como ele é um ególatra insuportável na vida real, ele exigiu que cenas de seu antagonista fossem cortadas, já que eram defendidas por um ator de verdade: William Forsythe. O diretor John Flynn emoldura todos os absurdos sem nenhum senso de humor, o que acaba tornando tudo intensamente mais engraçado. O segundo ato é arrastado, como se o roteiro estivesse sendo resolvido no dia das filmagens, mas melhora no desfecho. O herói de fala mansa testemunha um motorista se desfazendo de um cãozinho na estrada, elemento de ternura trabalhado no roteiro com mão de pedreiro com Parkinson, conduzindo para uma cena final que seria descartada como demagógica e inverossímil até em especiais televisivos de emissoras com baixo orçamento. Mas, exatamente como o filme anterior, existe uma cena que redime o espetáculo: a pancadaria no bar. Seagal quebrando dentes com uma bola de bilhar vale o esforço de tentar induzir em seu subconsciente algum interesse no desenrolar da trama. 

"O Ciúme", de Philippe Garrel


O Ciúme (La Jalousie - 2013)
O olhar voyeur da filha que descobre, sem entender a complexidade de sentimentos, que seus pais irão se separar. É dessa forma que Philippe decide iniciar sua obra, inspirada em seu pai, o ator Maurice Garrel, com a opção pelo belo preto e branco da fotografia de Willy Kurant evidenciando o tom de teatralidade, o artificialismo inerente aos relacionamentos humanos, explorando as variações do ciúme e da inveja em um microcosmo familiar. A curta duração, por volta dos setenta e sete minutos, ajuda a fazer com que o foco da trama, o leitmotiv da efemeridade do amor inserido em um contexto de caos, não se perca em exibições vazias de estilo. 

O artista vivido por Louis, filho do diretor, acaba de ser integrado ao elenco de uma peça, o que causa inveja profissional em sua nova parceira, também atriz, vivida por Anna Mouglalis, que não consegue trabalho há anos, nutrindo uma insegurança que afeta sua vida romântica, tendo criado uma couraça de teatralidade que a protege, mas também impede que ela realmente se entregue emocionalmente em uma relação. Por outro lado, o roteiro dedica tempo generoso no ciúme sentido pela mãe, vivida por Rebecca Convenant, que vê sua filha ficando cada vez mais afeiçoada à nova namorada do ex-marido. Mas a câmera de Garrel evita qualquer tipo de confrontação, não há interesse em elaborar cenas emocionalmente grandiosas que demandem esforço dos atores, preferindo se focar nos momentos que servem como ponte entre a motivação da ação e a consequência do ato, atingindo o cerne psicológico dos conflitos entre os personagens e facilitando a identificação no público. 

Sem uma ponta de cinismo, conseguindo extrair lágrimas espontâneas com sua inesperada docilidade, trabalhando com objetividade uma trama que tinha tudo para ser amarga, Garrel consegue criar um retrato apaixonado sobre os fascinantes atalhos da vida, deixando a clara mensagem de que, por mais que tentemos preencher o palco desse grande teatro com as falas memorizadas, a natureza sempre encontra um caminho. O inesperado foge aos rituais. 

"Mommy", de Xavier Dolan


Mommy (2014)
Esse não é o melhor filme na curta, porém promissora, carreira do jovem diretor canadense Xavier Dolan, lugar que reservo ao seu segundo projeto: “Amores Imaginários”, mas é mais interessante que os anteriores “Laurence Anyways” e “Tom na Fazenda”. A estética de excessos, que o leva a ser comparado com Pedro Almodóvar e Baz Luhrmann, pode afastar boa parte do público, mas é fácil demais rejeitar suas obras taxando-as de exibicionismo arrogante, um rótulo que impede uma análise mais profunda. 

Nesse projeto mais sóbrio, ele opta por uma razão de aspecto 1:1, que fala diretamente à essência dos confinados personagens, limitados a uma existência sem horizontes, expandindo a tela exatamente no belo momento que representa o sonho, o potencial, as aspirações. A beleza dessa cena, que obviamente não irei revelar, já demonstra que existe uma inteligência sensível por trás das escolhas estéticas do diretor, não são artifícios vazios. Ele pode ter se perdido na trama, com quebras de ritmo pontuais no decorrer da longa duração, deixando de enriquecer mais a construção dos personagens, possibilitando maior conexão emocional com suas motivações, o que tornaria mais agradável essa experiência para o público, mas são equívocos compreensíveis em um cineasta que ainda está se ajustando às suas próprias ambições artísticas. 

Ele evoluiu, aprimorando a utilização da câmera lenta, algo que eu considerava falho em seus filmes anteriores. A utilização de músicas pop como parte intrínseca, complementar, na narrativa, também irá repelir aqueles que não apreciam o estilo, mas é válido entender que, apesar do conflito entre a mãe, vivida de forma brilhante por Anne Dorval, e o filho ser intimista, o roteiro é uma ficção científica, mostrando uma versão alternativa e futurista do Canadá, onde uma nova lei permite que os pais entreguem seus filhos com problemas mentais aos cuidados de uma instituição pública. A teatralidade na interpretação é, assim como o uso da música, uma ferramenta que expressa os sentimentos em jogo, que potencializa o soco no estômago desferido por aqueles que a sociedade julga como perdedores, o desgaste na relação entre pessoas que se amam tanto, que encontram dificuldade em conviver. 

"Sétimo", de Patxi Amezcua


Sétimo (Séptimo - 2013)
O conceito que move esse suspense me recordou “Picnic na Montanha Misteriosa”, de Peter Weir, mas com uma proposta totalmente diferente, abraçando sem culpa alguma as fórmulas do gênero, numa pouco sutil alegoria aos perigos inseridos na selva de pedra e os efeitos psicológicos do colapso da relação de um casal em seus filhos. Não é importante que o roteiro deixe muitos furos, contanto que esses não sejam percebidos enquanto você assiste a obra, que o entretenimento não seja afetado. Felizmente, o projeto do espanhol Patxi Amezcua funciona bem até o momento em que você pisa fora da sala escura e começa a pensar a respeito.

A ideia é interessante em sua simplicidade, o sumiço de duas crianças que moravam no sétimo andar, enquanto desciam sozinhas as escadas de seu apartamento, o local que deveria simbolizar a segurança máxima delas. O primeiro ato trabalha razoavelmente bem o mistério, mérito total da atuação convincente do ótimo Ricardo Darín, mas quando o filme se encaminha para entregar a resolução, acaba se perdendo nas próprias convenções as quais se agarra, como o recurso batido dos desgastados celulares com pouca bateria. Nenhuma informação é passada sobre o prédio, que poderia muito bem estar vazio, ou sobre os vizinhos, o que poderia deixar a investigação do pai um pouco mais interessante. A trilha sonora de Roque Baños, sempre querendo chamar mais atenção do que a própria cena que emoldura, acaba dessensibilizando o espectador ao subestimar sua inteligência emocional.

As motivações de alguns personagens se mostram implausíveis na tentativa de, contra a lógica, inseri-los, por exemplo, em cenas essenciais no terceiro ato. Essa insegurança na condução, que pode ser explicada pela pouca experiência do diretor, em seu segundo filme, acaba arruinando a experiência, que se torna mais amarga na memória, na medida em que você se afasta da sala escura. A maior ambição do roteiro formulaico parece ser chamar a atenção da indústria americana e fazer valer uma refilmagem. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

"Questão de Tempo", de Richard Curtis


Questão de Tempo (About Time - 2013)
O neozelandês Richard Curtis é extremamente eficiente como roteirista, mais do que como diretor, tendo escrito algumas das melhores comédias românticas das últimas décadas (Quatro Casamentos e Um Funeral, Um Lugar Chamado Notting Hill e Simplesmente Amor). O conceito da viagem no tempo é sempre instigante quando trabalhado com inteligência e alguma sensibilidade (como o escritor Richard Matheson em Bid Time Return, que foi adaptado no adorável filme Em Algum Lugar do Passado), ainda que em porção diluída, como neste Questão de Tempo. A trama criativa trabalha sentimentalmente, sem nunca resvalar no piegas, as transformações humanas advindas das idas e voltas no tempo, estabelecendo regras que são respeitadas, tornando a imersão na brincadeira algo verdadeiramente prazeroso. Curtis aproveita para relembrar seus tempos como roteirista dos programas de Rowan Atkinson (o 'Mr. Bean'), potencializando os aspectos patéticos do humor, apostando no humor pastelão. 

Existem problemas na estrutura do filme, mas não prejudicam o resultado final: o segundo ato se alonga mais do que o necessário em subtramas que nunca são plenamente desenvolvidas; a mensagem é simples, mas é desgastante a forma que o roteiro encontra para tentar engrandecer o óbvio, a vida é curta e devemos apreciar cada momento - um pouco de sutileza seria muito bem-vinda. Mas quando o leitmotiv retorna no "terceiro ato" qualquer pequeno dano já estará esquecido. A manipulação do tempo que o personagem herda de seu pai (o excelente Bill Bighy) é limitada a pequenos feitos, fazendo com que o jovem Tim (Domhnall Gleeson) utilize seu superpoder apenas em flertes românticos, como quando busca reencontrar a jovem Mary (Rachel McAdams). Por mais que esperemos que nas comédias românticas o “coração” esteja no casal do pôster, surpreende que nesse filme o sangue pulse mais forte na relação entre pai e filho, a verdadeira história de amor que Curtis deseja contar. Revelar demais a trama seria um desserviço, mas a forma que o roteiro encontra de complicar a vida do rapaz já vale o ingresso. E, assim como no excelente Feitiço do Tempo, ele irá aprender a ser um homem melhor devido ao uso desse poder. 

Este terceiro filme de Curtis como diretor também pode ser considerado seu projeto mais pessoal, simbolizado por um acontecimento que ocorre no desfecho, que obviamente não revelarei. A forma como ele lida com valores familiares e relacionamentos amorosos pode ser ingênua e sacarina, mas existe como uma reflexão madura de alguém que não segue uma fórmula. Diferentemente do que faz um Nicholas Sparks, por exemplo, conseguimos sentir a real afeição do escritor por cada personagem que ele conduz nas páginas do roteiro. Existe algo de Frank Capra em seus trabalhos, o que os faz resistir ao duro teste do tempo. As lágrimas ao final brotam naturalmente. É programa perfeito para final de ano. 

"A Trapaça", de David O. Russell


A Trapaça (American Hustle - 2013)
Desde os primeiros segundos, percebemos estar diante de uma homenagem ao trabalho de Martin Scorsese, com alguma inspiração também nos trabalhos de Preston Sturges (a personagem de Amy Adams, Sydney, é uma óbvia referência à vivida por Barbara Stanwick em “As Três Noites de Eva”) e Ernst Lubitsch. Pena que seja apenas uma reverência estética, já que falta ao David O. Russell a coragem e o estofo cultural de Scorsese, assim como a sagacidade cômica refinada de Sturges e Lubitsch.

Existem pequenos momentos em que a naturalidade na atuação, mérito especialmente de Jennifer Lawrence (Rosalyn), aponta claramente um potencial desperdiçado no excesso de “glacê” industrial. Exemplo perfeito de obra que somente recebe alguma atenção especial por constar na lista de indicados de eventos calcados em lobby. O roteiro, de Eric Singer e do próprio Russell, é bastante confuso, logo, o único elemento que impede a dispersão da atenção durante a longa duração é o jogo cênico entre os atores. E o desequilíbrio nesse aspecto se torna então um grave problema.

Christian Bale (Rosenfeld), excelente em cena, consegue fugir da caricatura que sua figura parece impor, transmitindo humanidade/vulnerabilidade em detalhes sutis que um ator competente insere em diálogos sem muito brilho. O mesmo não se pode dizer de Bradley Cooper (Richie), que continua não demonstrando em cena os motivos que o levaram a ser alçado das comédias tolas ao status de um dos melhores atores do ano, todos os anos. É basicamente o mesmo personagem de “O Lado Bom da Vida”, com barba e o cabelo do Justin Timberlake, simplificando um arco narrativo que parece muito mais interessante nas páginas do roteiro. Ele parece não saber interpretar o meio termo entre um homem apático e um neurótico, evitando também o necessário humor, como se quisesse desesperadamente fugir do estereótipo que mantinha em projetos anteriores. Assistir o “embate” cênico de Bale e Cooper é como assistir o encontro entre um ator muito experiente e um esforçado recém-saído de um reality show. O comediante Louis C.K., fora de sua zona de conforto e com menos tempo em cena, acaba entregando uma interpretação com mais camadas, muito mais satisfatória.

A caracterização exagerada acaba servindo como uma das poucas metáforas que funcionam, ressaltando logo nos primeiros minutos, onde vemos o personagem de Bale calmamente arrumando o que resta de seu cabelo, a frágil artificialidade que sustenta a confiança dessas fraudes ambulantes, leitmotiv que poderia ter sido mais bem trabalhado. Como havia citado anteriormente o “glacê”, finalizo dizendo que “Trapaça” é um bolo vistoso com os ingredientes certos, calculados com precisão para o reconhecimento em premiações, mas com prazo de validade muito curto. 

"Mulheres ao Ataque", de Melissa Stack


Mulheres ao Ataque (The Other Woman - 2014)
A sensação que tive ao longo do filme foi de que o roteiro havia sido escrito por uma amadora. Depois constatei que Melissa Stack assinou, de fato, seu primeiro longa-metragem, abusando até de piadas sobre excrementos, que assim como as similares no gênero sobre flatulências, são um excelente indicativo de um profissional com pouquíssimas referências, sem o necessário estofo cultural no próprio estilo em que se aventura. Para ter uma ideia do desastre, sobra espaço até para aquela batida cena de observação à distância, ao som do clássico tema de “Missão: Impossível”. Nem os especiais de final de ano da Xuxa utilizavam esse artifício. É incrível pensar que uma mulher escreva um material tão essencialmente machista. Não há virtuosismo na direção que salve um esqueleto narrativo em estágio terminal de osteoporose. E Nick Cassavetes é um diretor talentoso, que já provou isso no seu roteiro original “Alpha Dog” e tirando leite de pedra na melhor adaptação do universo literário de Nicholas Sparks: “Diário de Uma Paixão”.

Cada situação cômica é trabalhada à exaustão, fazendo com que até mesmo Cameron Diaz, uma força carismática de pouco talento, acabe se tornando enjoativa em caras e bocas forçadas. Marilyn Monroe era tão limitada quanto, porém parecia genial defendendo textos escritos por Billy Wilder. Diaz, nas mãos frágeis de uma roteirista insossa, não tem a mesma sorte. Existe química entre Diaz e suas colegas de cena Leslie Mann e Kate Upton, mas elas vivem personagens cujas motivações são volúveis, pouco críveis até mesmo para os padrões das sitcoms televisivas. É uma visão desnecessariamente estereotipada, com amizades que se fortalecem com apenas uma rodada de bebida ou na execução do clichê desgastado da montagem de dança. Quando elas se revoltam, o roteiro resolve tudo com a óbvia utilização do laxante e outras traquinagens adolescentes que caberiam perfeitamente na série “Loucademia de Polícia”. Caso transpostas para a vida real, das páginas do roteiro, essas mulheres seriam completamente insuportáveis.

Caso esteja interessado em comédia tematicamente similar, mas com resultados infinitamente mais satisfatórios, fique em casa e reveja “O Clube das Desquitadas”, de 1996, com Goldie Hawn, Diane Keaton e Bette Midler. Impressionante como a sociedade e a indústria do entretenimento regrediram e se infantilizaram, em menos de duas décadas. 

"Toque de Mestre", de Eugenio Mira


Toque de Mestre (Grand Piano - 2013)
Analisando com olhos que buscam verossimilitude, até mesmo o clássico de Hitchcock: “Um Barco e Nove Destinos” poderia ser criticado como altamente ilógico e cheio de furos. Ao percebermos que a trama é uma desculpa, com os sobreviventes no barco sendo uma metáfora que representa a sociedade alemã perante a ascensão do nazismo, começamos a nos focar em outros detalhes. É muito fácil descartar “Toque de Mestre” como tolo pela sua trama e eventuais implausibilidades narrativas, mas o elemento mais importante em um suspense é a eficiência do roteiro/direção na elaboração das cenas. E levando em consideração que o roteiro foi escrito pelo fraco Damien Chazelle, de “O Último Exorcismo – Parte 2”, e a direção ficou a cargo do pouco experiente espanhol Eugenio Mira, achei válido o resultado final desse projeto que tinha tudo para ser uma catástrofe. 

É interessante notar na iluminação e no trabalho frenético de câmera a óbvia inspiração nas obras que Brian De Palma realizou no gênero, especialmente “Vestida Para Matar”. Sua estrutura minimalista e claustrofóbica, que remete a “Por Um Fio” e “Velocidade Máxima”, acompanha um pianista (Elijah Wood) que executa seu concerto mais difícil após cinco anos se recuperando de um fiasco profissional, sabendo que irá morrer caso seus dedos errem alguma tecla do piano. John Cusack, num trabalho que prima pelas nuances em sua voz, interpreta o enigmático atirador que também ameaça a esposa da vítima, interpretada por Kerry Bishé. 

A voz é uma metáfora para o intenso pavor interno de um artista que tenta resgatar a coragem necessária para enfrentar novamente um público após um evento traumático, sabendo que a sua vida e a de sua família dependem de sua competência dedilhando o piano que era de seu mentor. A ideia de que em cada peça musical de pura beleza ocorre uma ingrata batalha entre a genialidade por trás da composição e os esforços tremendos do homem que treina para pôr em prática a complexidade de emoções propostas pelo autor. Deixando clara a função simbólica da trama, a motivação do terrorista, como em todos os filmes de temática similar, não é o foco do roteiro. Não dá para desprezar, por exemplo, a criatividade técnica empregada na melhor cena, onde o pianista luta para se comunicar pelo celular, enquanto se mantém tocando o piano. Também é impossível relevar um terceiro ato que desperdiça o potencial revelado nos primeiros trinta minutos, abraçando uma previsibilidade típica de roteiros escritos por estudantes. 

O filme possui vários problemas, excesso de diálogos expositivos e alívios cômicos pouco eficientes, mas em sua curta duração satisfaz precisamente naquilo que se propõe a oferecer.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Cine Samurai - "A Traição"

Link para os textos do especial:


A Traição (Daisatsujin Orochi – 1966)
O diretor Tokuzo Tanaka não tinha o apreço pela grandiosidade temática de um Kurosawa, ou interesse pelas divagações filosóficas de um Ozu, estando mais próximo do tipo de abordagem feita por Mizoguchi e Kobayashi. Como assistente de direção de Kurosawa e Mizoguchi, ele bebeu das melhores fontes possíveis em sua área, utilizando sua técnica a favor dos chambaras realizados pelo estúdio Daiei. Ele é conhecido apenas por aqueles fãs mais dedicados do gênero, pelo seu trabalho nos projetos da série “Zatoichi”, mas a sua obra-prima indiscutível é “A Traição”, uma refilmagem de “Orochi”, dirigido por Buntaro Futagawa em 1925.

Indo contra o tradicional estilo dos chambaras da época, com os primeiros dois atos dedicados a minuciosas construções de desenvolvimento dos personagens e suas motivações trabalhadas em longos diálogos, com a ação reservada para o clímax, o roteiro de Seiji Hoshikawa entrega um ritmo frenético, com intensas cenas de ação que preparam a catarse da batalha final, elogiada de forma justa como sendo uma das mais longas e brutais no gênero, onde assistimos o personagem vivido por Raizo Ichikawa, um samurai honrado que é acusado injustamente por um crime, lutar sozinho contra mais de duzentos guerreiros.

E se a trama evita aprofundar melhor, por exemplo, o relacionamento de amizade que se forma entre o samurai exilado e o ladrão que roubou sua carteira, ela compensa com um dos momentos mais impactantes, não somente dos chambaras, mas do cinema de ação como um todo: a hora em que o herói, exaurido no longo combate final, precisa forçar seus dedos a soltarem o tsuka/cabo de sua espada quebrada, para poder continuar o confronto. É angustiante ver o corpo ir além dos limites, ele fica desidratado, busca saciar sua sede entre uma esquiva e outra, não se trata apenas de uma luta, é carregado de simbologia, a epifânica transformação de alguém que está consciente de que perdeu tudo, movido apenas por seu caráter. 

* O filme está sendo lançado pela distribuidora "Versátil", na caixa "Cinema Samurai 3".

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

"Contos Brutais de Honra", de Kiyoshi Saeki


Contos Brutais de Honra (Showa Zankyo-den – 1965)
Um dos aspectos imagéticos mais interessantes que um leigo pode captar nesse pioneiro trabalho da Toei, dirigido por Kiyoshi Saeki, é o confronto entre duas gerações. De um lado, os homens honrados, herdeiros do código samurai, que representam o espírito da tradição japonesa, simbolizado especialmente pelo personagem de Ken Takakura, com sua silenciosa expressividade, capaz de sacrificar seus amigos em respeito ao pedido de seu mestre no leito de morte. Do outro, mafiosos motorizados, com camisetas floridas, símbolo de uma cultura que já não é mais pura, capazes de desferir um tiro de revólver nas costas de um homem portando uma espada. O país devastado concluía a transformação de um Estado-nação tradicionalista para o capitalismo ocidental com todas as suas vantagens e desvantagens.

A trama do rapaz que retorna para casa e se vê inserido em um combate onde não se deve utilizar a violência, mesmo que para se defender, foi utilizada em diversos projetos, como no clássico de Bruce Lee: “O Dragão Chinês”. A tradicional catarse da vingança no clímax, após várias exibições agressivas de injustiça, sempre funciona. É interessante notar que, no confronto final, quando os personagens de Takakura e Ryo Ikebe decidem encarar sozinhos toda a gangue, o primeiro utiliza sua espada, enquanto o segundo porta um revólver. A representação metafórica da união de duas gerações, onde nenhuma sairá ilesa, num sacrifício que possibilitará a esperança num futuro mais harmonioso, conduzindo à imagem final das pombas sobrevoando o templo, que nos remete ao deus japonês da guerra: Hachiman, que tinha a pomba como símbolo da paz que deve ser objetivada após uma batalha.

Com um formato inspirado nos filmes de gangsteres norte-americanos, os “Ninkyo-eiga” podem ser considerados uma evolução natural dos “Chambara”, com tramas que lidavam com os conflitos entre a gananciosa sede de poder e os códigos tradicionais de honra entre cavalheiros, colocando o herói sempre num dilema entre seus deveres e seus sentimentos pessoais. O antagonista do respeitável Yakuza era o gurentai, o mercado negro do pós-guerra da Era Showa, infratores sem nenhuma consideração pelo rigoroso código de honra dessa sociedade criminosa. Essa visão romantizada dos membros da Yakuza seria radicalmente invertida nos “Jitsuroko-eiga” da década de setenta, que passaram a mostrar os membros dessa sociedade como criminosos sem honra, cruéis, traiçoeiros, uma visão mais cínica e próxima dos anseios dos jovens estudantes japoneses que tomavam as ruas em protestos. 

*O filme está sendo lançado pela distribuidora "Versátil" na caixa "Cinema Yakuza", com "Flor Seca", "Guerra de Gangues em Okinawa", "Sonatine", "A Marca do Assassino" e "Os Lobos", além de documentários e entrevistas. 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Guilty Pleasures - "American Pie 2"

Link para os textos do especial:


American Pie 2 – A Segunda Vez é Ainda Melhor (American Pie 2 – 2001)
Vou confidenciar pra você, caro leitor, um dos critérios que utilizo nesse especial. Após selecionar alguns filmes em um rápido resgate emocional, foco minha atenção naquele cujo texto mais me demoro escrevendo. Vou parando em cada linha, analisando se é válido confessar publicamente aquele prazer culposo. Esse texto em que agora pousa seus olhos foi especialmente difícil de terminar. O caso é que eu era uma mistura de Jim e Finch na vida real. Até fisicamente, já que compartilho com o ator Jason Biggs um nariz um pouco avantajado, ou, como minha mãe costumava dizer, nariz de italiano. E, naquela época, como eu era muito magro, ele realmente se sobressaía na multidão. Como o personagem vivido por Eddie Kaye Thomas, eu era considerado um erudito chato por quase todos da turma. Sério e praticante da arte de inserir referências literárias e cinematográficas em praticamente qualquer assunto, faltava-me apenas encontrar minha musa, minha “Stifler’s mom”, a milf dos sonhos. Assistir esse filme, enquanto estudante adolescente nerd e pouco desenvolto com as mulheres, fazia obrigatoriamente com que eu me identificasse naquele contexto.

Em sua estreia, eu lembro que morri de rir com as trapalhadas do rapaz ao tentar aprender a soltar um sutiã com apenas uma mão, exatamente porque eu também não tinha experiência alguma nesse sentido. O pai, vivido por Eugene Levy, sempre flagrando seu filho em desastradas aventuras sexuais, aquele pesadelo clássico de constrangimento que persegue os jovens inseguros, inseridos nus em ambientes públicos de seu cotidiano, fala diretamente aos medos compartilhados por adolescentes do mundo todo. O colega extrovertido e inconsequente, como o Stifler vivido por Seann William Scott, que parece viver em um universo paralelo, com leis próprias, escondendo por trás de suas ininterruptas festas regadas a álcool, o pavor de amadurecer, como um Peter Pan intensamente pervertido. É impagável a cena que mostra a reação dos amigos à chegada dele após ser vítima de mais uma brincadeira cruel, todo molhado de urina. Ela desperta aquele pré-adolescente interno em cada um de nós, que já passou por aquela fase tola de preparar sucos exóticos com ingredientes bizarros, somente para rir até chorar da cara dos amigos que tiveram que beber. Até eu, que, por ter sido excessivamente introvertido, era sempre o alvo dessas brincadeiras, não consigo me privar dessa risada nostálgica.

O filme do diretor J.B. Rogers, que considero o mais engraçado da franquia, faz parte de um subgênero que é importante em cada geração. Acho interessante a inspiração que o primeiro filme foi utilizar, na superproteção paterna e em sua cena mais famosa, a masturbação com o auxílio da torta, bebendo da fonte do bom livro “O Complexo de Potnoy”, de Philip Roth, que li na mesma época em que conhecia “Os 120 Dias de Sodoma”, do Marquês de Sade. É fácil menosprezar a comédia como bobinha, esquecível, mas acho mais válido buscar o diamante na rocha. Já com o olhar maduro, continuo me divertindo com esse grupo de amigos, sempre assisto quando está passando na televisão. Nunca me esqueço da última vez em que estive com meu pequeno grupo de amigos de escola, sentados no refeitório, planejando o que faríamos nas férias, imaginando quais desafios nos aguardavam. Ao final do papo, repetindo o gesto dos personagens de “American Pie”, levantamos nossos copos de refrigerante e brindamos ao próximo passo, sem imaginar que ele seria longo na estrada da vida e, eventualmente, nos afastaria em rumos diferentes. Rir hoje com Jim, Finch, Oz, Stifler e Kevin, significa retornar àquela mesa do refeitório, onde nosso maior problema era passar nas provas finais. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

"Serpico", de Sidney Lumet


Serpico (1973)
O protagonista está sentado descansando em seu jardim, escutando a ária “E Lucevan le Stelle”, momento marcante da ópera Tosca, onde o revolucionário Cavaradossi aguarda seus últimos minutos de vida em uma prisão. Um detalhe que pode passar despercebido, mas que demonstra a sensibilidade criativa do diretor Sidney Lumet, que adaptou a história real imortalizada no livro de Peter Maas. O trágico pintor de Puccini e o policial íntegro interpretado brilhantemente por Al Pacino possuem muito em comum, especialmente a qualidade de manterem-se fiéis aos seus valores, mesmo quando confrontados pela total desesperança. Frank Serpico só queria fazer seu trabalho, não defendia nenhuma causa nobre, mas cometeu o crime de ignorar que o sistema alimentava a corrupção que, em teoria, deveria combater.

O roteiro de Waldo Salt e Norman Wexler mostra a gradual frustração de um jovem que tinha uma visão idealizada de como ser um oficial da lei. O desconforto inicial ao perceber os primeiros deslizes de seus colegas, o choque ao constatar que seus superiores temiam sua resistência a receber propina, pois acabaria se tornando como o rei sábio do conto que escuta de sua namorada, um louco aos olhos daqueles que beberam da fonte envenenada pela ganância. Ele não estava disposto a sorver sequer uma gota daquela água pestilenta. Com real interesse, ele atravessa uma fase em que tenta genuinamente compreender as possíveis razões por trás dos atos ilegais de seus colegas, o baixo salário ou problemas familiares, mas logo descobre que não há dificuldade extrema que não seja subjugada pela dignidade daquele cujo caráter não se dobra.

Chega a ser tocante a interpretação de Pacino, exibindo profundas transformações psicológicas num espaço de poucos anos na vida do personagem, indo da tranquilidade gentil de quem entra na brincadeira de crianças na rua, passando pela fase madura da segurança profissional, cortejando pacientemente as mulheres que despertam seu interesse, culminando no retrato triste de um homem existencialmente cansado, cínico, angustiado e agressivo. É impactante o momento, capturado em inteligente plano longo e sem cortes, em que vemos sua explosão pra cima de seus colegas, após assistir eles conversando tranquilamente com o mafioso que havia conduzido para ser devidamente punido. Esse trabalho de construção de personagem é auxiliado pela decisão do diretor de fotografia Arthur J. Ornitz, que, em diversas cenas, utiliza lentes que achatam a imagem, criando a ilusão de que o cenário se impõe sobre o protagonista, oprimindo-o cada vez mais em sua jornada inescapável rumo à descrença total na honestidade em sua função.

* O filme está sendo lançado, em versão recentemente restaurada, pela distribuidora "Versátil".

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Entrevista com o diretor Monte Hellman


Pode ser que você não saiba quem é Monte Hellman, mas existem dois ídolos seus que você provavelmente não conheceria hoje caso ele não tivesse apostado em seus talentos. Jack Nicholson e Quentin Tarantino. O americano que vive à margem de Hollywood iniciou sob o manto protetor criativo do genial Roger Corman, em “A Besta da Caverna Assombrada”, de 1959, um típico produto exibido nos Drive-Ins da época. Nele se nota algumas das características do estilo do diretor, mas o elemento mais importante consiste na mescla consciente de dois gêneros, o filme de assalto e o terror, uma prática que Tarantino, que deve a realização de “Cães de Aluguel” à essencial ajuda de Hellman, acabaria adotando em sua carreira.

Em “Guerrilheiros do Pacífico”, de 1964, trabalhando com um jovem Nicholson, ele novamente investe no cinema de gênero, no caso o de guerra, como forma de propor discussões mais profundas. Como autor ele ainda não está maduro, o desfecho insere, por exigência do estúdio, um discurso panfletário que simplesmente não combina com o que havia sido estabelecido até o momento. É interessante descobrir que, por causa do baixo orçamento, ele teve que usar bicicletas e cadeiras de rodas como os improvisados trilhos para a câmera, provando que a necessidade potencializa a inspiração criativa.


("Para Octavio Caruso e seus leitores. Monte Hellman")
O diretor gentilmente concedeu uma entrevista para o "Devo Tudo ao Cinema", que compartilho agora com meus queridos leitores: 

O - Monte, você começou experimentando sua técnica em filmes de gênero, com baixo orçamento. Sempre digo que a dificuldade é um terreno fértil para a criatividade, não é um empecilho, mas uma bênção. Como você definiria a relação entre o baixo orçamento e a criatividade especificamente nos filmes de gênero? Você poderia compartilhar com meus leitores algum exemplo de situação onde você teve que se forçar além dos limites financeiros, improvisando, como forma de finalizar uma cena? Você acredita que o terror/sci-fi pode se beneficiar de orçamentos baixos, o que possibilita ao cineasta a chance de correr riscos com ideias inesperadas, ousando encontrar novas possibilidades? 

M - Ótima pergunta. De forma geral, quanto menor for o orçamento, maior liberdade você tem. Dessa forma, com o roteiro sendo aprovado, há menos chances de ter alguém vigiando seu trabalho, espiando por trás do seu ombro em cada filmagem. Claro, contanto que você se mantenha no cronograma, já que, caso contrário, tudo pode acontecer, você perde o controle. Eu não tinha conscientemente a experimentação como objetivo, nunca pensava nisso. Em "A Besta da Caverna Assombrada", tudo de que me lembro era da dificuldade de se terminar cada dia. Ao longo de treze dias, com as câmeras constantemente congelando numa temperatura de dez graus abaixo de zero, aquilo era a única coisa que poderíamos pensar. Eu suponho que em "Disparo para Matar" e "A Vingança do Pistoleiro", os roteiros pediam mais do que o parâmetro de um típico filme de baixo orçamento. Corman percebeu isso e chegou a pensar em cancelar as produções. Ele só reconsiderou quando descobriu que o cancelamento provavelmente iria custar mais para ele do que avançar com as produções.  

O - Como você define a importância de Roger Corman em sua carreira? Há espaço na indústria atualmente para empreendedores como ele?

M - Eu provavelmente não teria uma carreira sem o Roger. Sempre há espaço para produtores dispostos ao risco de apostar em novos talentos. Só não há muitos como ele, que possuem a habilidade de reconhecer esses potenciais talentos.  

O - Quais eram suas influências artísticas quando decidiu se tornar um cineasta? Você se recorda dos filmes que assistiu quando criança, aqueles que te iniciaram nesse mundo de sonhos, captando sua imaginação? 

M - Minha maior referência artística foi Stanislavsky, cujo trabalho incitou em mim a ambição vaidosa de me tornar um artista. Os filmes que me inspiraram, quando criança e pré-adolescente, foram: os treze episódios do seriado para cinema de "O Cavaleiro Solitário", "Tarzan", "Fúria no Céu" (1941), "O Retrato de Jennie" (1948), "Duelo ao Sol", "O Segredo das Jóias" (1950), "Um Lugar ao Sol" e "O Pária das Ilhas" (1951).  

O - Eu imagino se você conhece o filme brasileiro "Filme Demência", dirigido por Carlos Reichenbach, em 1986, onde ele faz uma homenagem a você, dando seu nome a uma marca de cigarros especialmente fortes. Você consegue mensurar sua importância para jovens cineastas de todas as nações? O impacto de seu trabalho em culturas diferentes. O que você pode dizer sobre a relação entre os críticos e o público, no tocante ao seu trabalho? 

M - Eu nunca assisti esse filme, mas alguém uma vez me enviou um maço vazio dos cigarros usados na filmagem. É difícil mensurar, já que a indústria americana nunca teve espaço para o meu trabalho, tive que trabalhar fora dela. Eu só fui nomeado para a Academia há sete anos. Mas te digo que me sinto muito honrado quando jovens cineastas afirmam que meu trabalho os inspirou. Os críticos estrangeiros, como você, me descobriram primeiro, mas agora eu sinto que sou respeitado igualmente pelos críticos americanos. Os críticos sempre gostaram mais dos meus filmes que o público. Basta você comparar as opiniões sobre "Caminho para o Nada" no Rotten Tomatoes e no IMDB. 

O - É fácil enxergar sua marca, as características visuais em seus filmes, um estilo único de edição, uma rara qualidade.  Existem detalhes específicos que você deixa claro para seu diretor de fotografia ao iniciar uma filmagem? O que você procura em uma tomada? 

M - Eu demoro bastante tempo até encontrar um diretor de fotografia que enxergue da mesma forma que eu, mas, assim que encontro, continuo trabalhando com ele o máximo possível. Fiz quatro filmes com Gregory Sandor, até agora fiz três com Josep Civit. Falamos muito pouco na elaboração das cenas. É uma questão de confiança. Quando ele me passa sua visão para a cena e percebo que ele captou a essência do que quero, não há nada mais a ser dito.  



O - Você teve a sensibilidade de enxergar em Warren Oates um potencial alcance de emoções, em uma época em que ele estava sendo estereotipado, com seu talento limitado pelos roteiros que recebia. Como em "Galo de Briga", que acredito ser o melhor momento dele em cena, quando foi desafiado com o silêncio. Você pode abordar essa química que existia entre vocês, como se iniciou? E, dentre todos os filmes dele, qual a cena que você considera especialmente brilhante? 

M - Tudo se inicia com a descoberta do ator. "Casting", como o personagem Mitchell Haven gosta de dizer em "Caminho para o Nada".  Depois disso, assim como com o diretor de fotografia, poucas palavras precisam ser ditas. A única direção que dei para Warren em "Disparo para Matar" foi para que ele falasse mais alto em uma das cenas. Não por discordar de sua interpretação, mas porque nosso limitado equipamento não estava conseguindo gravar sua voz no nível que ele preferia. Uma das minhas cenas favoritas dele está em "Corrida Sem Fim", quando seu personagem diz que se ele não fosse segurado no chão, ele iria entrar em órbita. 

O - Eu gosto muito da forma como você argumenta sua recusa em utilizar o recurso do zoom, explicando que o olho humano não é capaz de fazer o mesmo. Você pode explicar melhor esse conceito? Quando você, conscientemente, integrou isso em suas rotinas de filmagem?

Às vezes usava o zoom em cenas como um trilho de pobre. Sempre soube disso inconscientemente, mas apenas comecei a utilizar a teoria como argumento quando passei a ensinar. Eu certamente sabia do poder do zoom como ótimo efeito cômico.  


O - Eu já assisti "Disparo para Matar" mais vezes do que consigo me lembrar. Eu adoro a aura onírica que você conseguiu nesse filme. Sobre o desfecho, com a experimentação no tempo, diminuindo/congelando os frames, acredito ser a melhor versão imagética para aqueles segundos que antecedem o despertar de um sonho, ou, no caso do protagonista, um pesadelo existencialista Nietzschiano. O personagem de Oates encara a si próprio em seu abismo interior. Como você lida com as diferentes interpretações dos espectadores e críticos sobre suas obras?

M - O efeito onírico que menciona foi sugerido pela transmissão televisiva do assassinato de Lee Harvey Oswald. Eu não costumo pensar nas interpretações quando faço meus filmes. Sendo os temas realísticos ou surreais, minha abordagem é sempre literal. Kracauer chama de "redenção da realidade física". O público é meu colaborador final. Eu abraço cada interpretação individual de braços e coração abertos. Todas são igualmente válidas. 

O - Como foi retornar para a indústria após vinte anos, com novas tecnologias e diferentes formas de distribuição e disseminação? Você acompanhou de perto as transformações no cinema através dos anos. Como essas mudanças influenciaram seu trabalho como professor em suas masterclasses? 

M - Eu sempre achei que aprendi mais com meus alunos do que eles comigo. Mais importante, eles continuam me desafiando e me forçando a testar minhas teorias. Eu sempre me adaptei rápido às mudanças, então me sinto orgulhoso de que "Caminho para o Nada" tenha sido o primeiro projeto filmado com uma câmera DSLR. 

O - Como você vê o futuro do cinema? Quais são os filmes recentes que você recomendaria? 

M - Sou muito esperançoso com o futuro dessa Arte. Tem muito diretor que escolhe o caminho inverso da preguiça do cinemão mainstream. Gosto de muitos cineastas jovens, mas posso citar alguns filmes que vi recentemente e gostei bastante: "A Separação", de Asghar Farhadi, "The Delay", filme uruguaio de 2012, "Putty Hill", de 2010, e "Três Macacos", filme turco de 2008. 

O - Finalizando o nosso papo, você poderia deixar uma mensagem especial para meus leitores?

M - Agradeço o interesse em meu trabalho, Caruso. E, para seus leitores: Acreditem sempre em vocês mesmos, não deem atenção às opiniões dos outros. 


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

"Tempo de Guerra", de Jean-Luc Godard


Tempo de Guerra (Les Carabiniers – 1963)
Num país imaginário, o rei declarou guerra a um país vizinho. Uma família humilde, composto pela mãe, uma filha e dois filhos, recebe uma intimação para que os rapazes comecem a lutar por seu país, com a garantia de voltarão ricos graças aos saques. A oferta é tentadora e eles partem  para o front, dispostos a cometer qualquer atrocidade  pelas riquezas.


Um filme pouco lembrado de Godard, conduzido de forma direta, sem muitas experimentações, com um humor anárquico que potencializa o absurdo do tema abordado, a mentira da guerra. Costumo indicar esse trabalho da fase inicial do diretor para todos aqueles que demonstram interesse em entender o mito que o envolve.

Nele podemos enxergar o cineasta embrionário, ainda movido pelo equilíbrio entre a razão e a emoção, algo que foi perdendo ao longo de uma carreira dedicada à desconstrução crítica da linguagem. Ao escolher localizar o conflito em uma nação inexistente, evita a necessidade de recriar e contextualizar o cenário, podendo direcionar sua verve ironicamente brutal exclusivamente na imbecilização que aflora no ser humano, quando ele se encontra diante dos horrores de uma guerra. A maldade ingênua, infantil, dos soldados que se aproveitam da situação de superioridade, levantando as saias das mulheres. A ignorância daquele que acata ordens sem compreender absolutamente nada do que motivou sua convocação, movido pela ilusão fabricada por aqueles mais interessados, que sempre assistem a tudo do alto, confortáveis em suas posições de destaque, tão ilusórias quanto, sendo representadas por medalhas de latão.

Quando os dois soldados paspalhões se empolgam com a falsa notícia do fim do confronto, Godard habilmente nos mostra o negativo de uma celebração com fogos de artifício, retirando qualquer verniz de beleza na cena, ela se torna deprimente. O diretor, com esse gesto, mostra que esse não é apenas um filme antiguerra, mas, numa ousadia corajosa, uma crítica aos próprios filmes antiguerra, que, servindo ao propósito teórico de apontar os absurdos, acabam reutilizando as mesmas fórmulas imagéticas, a espetacularização do combate, que caracterizam aqueles produtos industriais que celebram o militarismo. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Nos Embalos do Rei do Rock - "Ama-me com Ternura"

Link para a entrevista com Ginger Alden, última namorada de Elvis:


Poucos sabem disso, mas o grande sonho de Elvis era se tornar um astro do cinema. Ele trabalhou como lanterninha durante um bom tempo, memorizava os diálogos dos filmes, idolatrava James Dean, gostava de imitar seu personagem em “Juventude Transviada”, como uma forma de disfarçar sua introversão. Quando começou a lucrar com seus discos, pediu ao seu empresário, o Coronel Parker, uma chance em Hollywood. Como cantor, ele decidia tudo nos estúdios de gravação, mas como ator, ele achava fascinante estar submetido aos ensinamentos de seus diretores e colegas em cena, levando tremendamente a sério essa função. Dedicado, ele memorizava o roteiro completo, até mesmo as cenas em que seu personagem não aparecia. Foi assim, pelo menos, em seus primeiros projetos, antes de começar a se desinteressar pela forma com que a máquina industrial o conduzia inexoravelmente a repetir a mesma fórmula de sucesso.

O diretor Don Siegel, que trabalhou com ele em “Estrela de Fogo”, chegou a lamentar publicamente as escolhas do empresário de Elvis, já que percebeu no cantor um tremendo potencial. O Coronel Parker simplesmente não acreditava no talento de seu protegido como ator, sentimento que explica sua atitude de sempre priorizar os números, ao invés dos papeis nos filmes. O jovem queria ser desafiado como ator, mas acabou desiludido com a profissão, somente retomando o desejo em meados da década de setenta, quando investiu em um longa-metragem sobre artes marciais, sua paixão na época. O projeto nunca saiu do papel. Ele já estava passando por sérios problemas de saúde, não havia mais tempo para realizar sonhos. Mas, voltemos ao início, encontrando um jovem obstinado, que acabou promovendo uma revolução cultural.


Ama-me com Ternura (Love me Tender – 1956)
A trama é ambientada na época da Guerra da Secessão dos EUA. Tendo recebido a notícia que seu irmão mais velho (Richard Egan) havia morrido em combate, um jovem fazendeiro do Texas (Presley) casa-se com a amada de seu irmão (Debra Paget). Mas o inesperado regresso do irmão detona uma amarga rivalidade fraterna e trágicos confrontos com os soldados da União.


Era comum nos faroestes posteriores a utilização de um jovem rebelde, quase sempre cantor, como forma de atrair um público que não prestigiava a indústria. O clássico “Onde Começa o Inferno”, de John Ford, teve Ricky Nelson. Isso só foi possível graças ao arrebatador sucesso de “Ama-me com Ternura”. A sorte de Elvis foi que a Paramount estava precisando desesperadamente de algum fenômeno que preenchesse o vazio deixado pela separação de Jerry Lewis e Dean Martin. O produtor Hal Wallis queria algum artista que fosse atraente para os jovens, o que encontrou ao assistir uma apresentação do cantor na televisão americana. A ideia era colocar ele na tela grande, cantando o maior número possível de temas, em locações exóticas. Emprestado para a Fox, leu o roteiro de “The Reno Brothers”, ficando empolgado ao constatar que seria um papel dramático, sem canções. Pressionado pelo empresário, que o fez acreditar que não fariam dinheiro daquela forma, Elvis aceitou a inclusão de quatro temas, incluindo aquele que passaria a ser o título do filme, que seria dirigido pelo inexpressivo Robert D. Webb. Essa atitude submissa acabaria afastando participações de destaque em obras importantes, como “Amor, Sublime Amor”, “A Lei da Montanha” e, anos mais tarde, em “Nasce uma Estrela”, onde foi substituído por Kris Kristofferson.

Enquanto filmava, o rapaz chocou os pais de família no horário nobre, com seu rebolado em “Hound Dog”, no tradicional “Ed Sullivan Show”, fazendo com que o estúdio acreditasse ainda mais no potencial financeiro daquele artista que seria, inicialmente, apenas um coadjuvante sem muita importância. Aumentaram suas cenas e deram maior destaque nas canções. No roteiro, seu personagem morre ao final de um tiroteio, mas os executivos sabiam que não poderiam deixar o público jovem sair da sessão num clima sombrio que o afastasse da hipótese de assistir novamente. Após várias reuniões, ficou decidido que o personagem morreria num ato de bravura e redenção, sendo visto no desfecho como um espírito de luz que continua a olhar por sua família, entoando uma versão mais melancólica da canção-tema, garantindo as lágrimas das meninas e o lucro na bilheteria. A Paramount viu o sucesso com a garotada, mas prestou mais atenção na indiferença do público adulto, nos cinemas mais tradicionais e respeitados, então decidiu não correr os mesmos riscos da empresa rival, fazendo com que Elvis interpretasse, nos três filmes seguintes, com mínimas variações, um cantor profissional.

Elvis fez três faroestes em sua carreira, sendo esse o menos interessante, ainda que apresente o jovem em seu estado bruto. Quando seu personagem sobe no palco e emenda: “Let Me” e “Poor Boy”, nós podemos ver o rebelde que escandalizou a nação, não o rapaz comportado que a indústria moldaria ao longo da década de sessenta.

A Seguir: “A Mulher Que eu Amo” (Loving You)