Criticar não é fácil. Faz-se necessário um domínio sobre o tema proposto, além de humildade perante o objeto de crítica. Por mais espetacular e bem escrita que seja uma resenha, nunca poderá ser equiparada à mais medíocre criação analisada. As reais intenções de um crítico de cinema devem ser complementares ao filme e não apenas um frio e técnico estudo sobre ele. Para isso é necessário um conhecimento aprofundado sobre os vários elementos que constroem um filme, conhecer métodos de atuação, entender sobre posicionamento de câmera (como saber se é revolucionário, se não sabe a diferença entre um plano médio, plongée e um plano de detalhe?) e tentar estar sempre atualizado quanto às inovações na área. Cada profissional possui uma maneira de abordar o que se propõe a criticar. Todas as maneiras são válidas, quando existe o embasamento. Desde aquele que analisa de forma excessivamente racional até o profissional que coloca as emoções à frente, ou aquele que facilmente transita por um meio termo, todos possuem um elemento em comum: Conhecimento.
O crítico possui basicamente duas maneiras de iniciar um
texto sobre um filme que o desagradou: Ele pode maquiavelicamente se empolgar
em destruí-lo, ou ficar triste com o potencial desperdiçado pelo cineasta. Como
muitos não são realmente apaixonados pelo tema (por vezes são designados por
seus superiores para a área cultural do veículo), a escolha mais fácil e divertida costuma ser pela
primeira opção, pela intensa variedade de emoções que ela suscita. O resultado: Textos saborosos em sua ironia, mas que não possuem uma linha sequer que
possa ser considerada construtiva. Aliem a isto o fato de que a cada ano que
passa, boa parte dos jornalistas da área se tornam cada vez mais interessados no lobby. Sites e
jornais que elogiam obras que de alguma forma os patrocinam, o crítico vira assessor de imprensa informal da distribuidora. Um
processo de prostituição criativa que se for analisado em longo prazo, leva a
apenas um caminho: O total descrédito desta profissão junto ao público.
Para uma grande parte dos leitores, o crítico é um chato que
vê defeito em tudo, sempre “do contra” e odiado por não ter visto qualidade
numa comédia escatológica de mau gosto. A pessoa se pergunta: “Como ele deu
nota zero para um filme tão espetacular, que me fez rir do começo ao fim?”. Da
mesma forma que uma pessoa que passa horas admirando uma pintura de Monet pode
parecer um louco aos olhos de alguém que se contenta com seu quadro de natureza
morta acima da mesa de jantar. Existem aqueles que preferem os textos que falam
contra o que pensam sobre a obra. Acabam descobrindo outros pontos de vista,
que enriquecem suas próprias análises. Estes possuem as qualidades de um cientista,
não a de um religioso. O cientista está sempre disposto a ter suas crenças
desafiadas, pô-las à prova e evoluir. Já o religioso, não aceita
opiniões contrárias e abomina o confronto de suas ideias com as de qualquer
pessoa que pense diferente. Os críticos e o público precisam andar de mãos
dadas, mesmo que suas opiniões se confrontem de tempos em tempos. O confronto saudável
e respeitoso de ideias é o que nos faz humanos.
A paixão do crítico deve ser sentida em cada linha, pois se
a pessoa que escreve não demonstra estar feliz em seu trabalho, muito menos o
fará aquele que dedica seu tempo na leitura (isso vale para qualquer tipo de
trabalho que uma pessoa vá exercer na vida). Texto sem amor, o leitor percebe. Texto pedante, o leitor percebe. Por essa razão, tão poucos profissionais desta área são lembrados pelo grande
público, pois com o passar dos anos o olhar distante e técnico tende a
sobrepujar o olhar apaixonado e os textos perdem emoção. O maior desafio para
um profissional dessa área é manter-se encantado, mesmo após várias possíveis
desilusões. Ver cada filme como se fosse o primeiro, continuar aplaudindo
uma mágica cujo truque ele já conhece. Meu principal objetivo neste texto é romper definitivamente
este muro que parece existir entre o público e os profissionais da crítica.
Mesmo que muitos críticos pareçam gostar deste status autoimposto de “donos da
verdade”, isto não ajuda em nada o real astro dessa história: A Sétima
Arte. Nossa função principal é fazer de cada leitor um potencial estudioso do
tema. Tive a inspiração após assistir um elucidativo (mas tedioso) vídeo de
um enólogo, intencionando explicar como faz a apreciação de um vinho.
Imaginem
a cena: O vídeo dura por volta de doze minutos, com uma introdução em tom sério
(uma garrafa de um lado, taça vazia do outro) seguida de uma extensa explicação
sobre como a bebida ativa todos os sentidos humanos. Nos cinco minutos finais,
o enólogo despeja o líquido no cálice e apanha uma folha de papel e uma caneta.
Muito compenetrado e sério, inclina o cálice cerca de quarenta e cinco graus e
franze a testa ao observar sua cor. Devolve o cálice à mesa e faz anotações na
folha. Novamente segura o cálice e agora o agita em movimentos circulares,
levando-o próximo às narinas (repetindo a mesma ação cinco vezes)
e depois volta a fazer anotações. Somente no minuto final o enólogo prova o
vinho, deixando o líquido passear por sua boca durante alguns segundos e o
engole. Anotações finais, um olhar sério para a câmera e uma afirmação: “Minha
nota para este vinho é 82,5”. Não sei a reação que vocês teriam ao assistir
este vídeo, mas garanto que eu não senti o menor desejo em beber vinho. Aquela
degustação não me tocou de nenhuma maneira. Mesmo percebendo que o profissional
dominava o assunto, não me senti motivado a conhecer mais sobre o mesmo. Mas quando assisti “Sideways – Entre Umas e Outras” (2004), senti algo
completamente diferente, estando imerso na trama e interessado na trajetória
dos protagonistas. Em uma curta cena específica, obtive algo que aqueles
tediosos doze minutos não conseguiram. A explicação que o personagem Miles (Paul
Giamatti) faz sobre a sua paixão pelos vinhos. Ele esclarece que a uva deve ser
plantada num lugar específico no mundo, num clima extremamente equilibrado, sem
muita chuva ou muito sol, que deve ser colhida na hora exata, recebendo do
proprietário da vinícola um cuidado muito especial, já que a casca desta
qualidade de uva é muito fina. Só assim, depois de muita dedicação (desde o
plantio da uva à fabricação do vinho) resultará em um produto de qualidade. O
roteiro brilhante faz com que o personagem faça uma alusão a si mesmo, que de
algum modo foi negligenciado pela esposa, já que não teve a afetividade
suficiente para manter o relacionamento duradouro. Enquanto eu estava sendo
entretido (lado emocional atuando), aprendi o suficiente sobre vinhos para me
interessar em ler mais sobre o assunto.
O crítico de cinema precisa prioritariamente despertar o interesse no público, com técnica suficiente para elucidar suas primeiras
dúvidas, mas nunca o bastante para que ele acredite já saber o suficiente e
se acomode. O objetivo é que nessa “sala de aula” que pode ser de mil “alunos”,
alguma parcela se apaixone pela matéria e queira buscar mais conhecimento autodidata. Não confundam “aula de cinema” com “aula de como ser crítico de cinema”.
O verdadeiro apreciador desta arte não se produz em cursos, apenas “clones”
inferiores de seu professor. Uma crítica longa e técnica demais servirá apenas
aos que já possuem o conhecimento técnico. Ambos então “piscarão” um para o
outro com cumplicidade, enquanto o resto do público que esboça um mínimo
interesse provavelmente se entediará ao longo do texto e, ao final, demonstrará
desinteresse. O cinema (assim como o vinho) deve trazer prazer intelectual. Os
melhores degustadores italianos se sentam em mesas velhas no campo, rasgando
pães com as mãos e dando fartas goladas. Se perguntá-los, confirmará que o
essencial é o prazer que o vinho lhes proporciona, não sua cientificidade. O
crítico está em processo eterno de aprendizado e refinamento, pois o cinema não
é uma arte imutável ou equação matemática.
Finalizando, gostaria de citar um exemplo verídico que acho
que define de maneira exemplar a função do crítico e sua importância. O
renomado crítico francês André Bazin espalhou aos quatro ventos sua admiração
pelo trabalho do diretor William Wyler no filme: “Pérfida” (The Little Foxes –
1941), ao demonstrar a excelência do diretor em criar uma cena onde a atriz
Bette Davis fica sentada, imóvel em primeiro plano, enquanto atrás dela, o
marido (vivido por Herbert Marshall) sobe uma escadaria e sofre um ataque
cardíaco. Ele implora por socorro, mas Bette permanece de costas para ele,
deixando-o morrer. Aos olhos do crítico, a imobilidade de Bette Davis filmada
em apenas uma tomada e com profundidade de foco, revelava seu caráter e
determinava a dramaticidade da cena. Anos depois, ao encontrar-se com o diretor
no Festival de Cannes, aproveitou para congratulá-lo pela cena magistral, no
que Wyler envergonhado lhe respondeu: “Não foi bem assim. Naquele dia, Bette
Davis havia torcido o pé e não houve outro recurso senão rodar toda a cena com
ela sentada num sofá.” O crítico então, com um sorriso no rosto, afirmou: “Mas
então, o meu filme é melhor que o seu”.
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