Eu creio que a melhor maneira de se conhecer alguém é
analisando o indivíduo pela ótica daquela pessoa com quem estabeleceu uma
parceria amorosa plena. Você pode enxergar o lado mais sombrio, o mais doce, os
conflitos existenciais e os gestos altruístas, com a particularidade de uma
abordagem bastante intimista, nunca rasa, sempre surpreendente. Familiares e
amigos, por mais próximos que sejam, lidam apenas com o envoltório envernizado
socialmente, aquela couraça que busca ser aceita e querida por seus
semelhantes, temida por seus desafetos, respeitada profissionalmente, em suma,
a incógnita. A verdade não é tão facilmente conduzida à luz, já que rejeita
rótulos, apenas se revela com a convivência duradoura na fase adulta, dividindo
o mesmo quarto, consolando e sendo consolado, aplaudindo e sendo aplaudido, admirando
e sendo admirado. É por esta razão que tantos inconscientemente fogem desta
rotina, ou se frustram após o espocar das rolhas de champanhe nos rituais
festivos, o medo de que o outro realmente o encare sem máscara. E também é
exatamente por esta razão que Agnès Varda e Jacques Demy, a exploradora do
tangível mundano e o contador romântico de ilusões utópicas, autodidatas incrivelmente
dedicados e despidos de vaidade profissional em uma área tomada por ególatras, estabeleceram
um vínculo afetivo que vai muito além de qualquer definição, subverte qualquer
clichê.
Varda inicia seu documentário “O Universo de Jacques Demy”,
de 1995, afirmando que irá manter uma postura discreta em sua tentativa de
fazer com que o público, os apreciadores dos frutos da criatividade dele,
conheça um pouco mais sobre o homem por trás do nome famoso, a realidade por
trás da mitificação que o cinema, como ferramenta de sonhos, naturalmente
produz. Seria compreensível que o ponto de partida convencional fosse uma
narrativa de como ele começou a se interessar pela arte, mas a primeira
informação importante citada já ressalta a qualidade mais nobre em uma parceria
amorosa, o respeito profundo pelo processo do outro, apesar de exercerem a
mesma função e com o mesmo nível de excelência. Ela revela sorridente que os
dois costumavam visitar as locações de filmagem um do outro com total
discrição, um ponto aparentemente irrelevante, mas que diz muito. Em outro
momento, após o sucesso mundial de “Les parapluies de Cherbourg”, tendo sido
avisada por Demy que não era para repassar a ele qualquer ligação telefônica de
produtores de Hollywood, Varda, sabendo que a atitude dele ingenuamente tentava
esconder o medo de abraçar o sonho de infância com o frágil ímpeto orgulhoso,
atravessa a camada superficial da caricatura de autor íntegro e reforça quase
que maternalmente a importância de não evitar a oportunidade. O casal nunca
trabalhou junto, mas é claramente perceptível que o sentimento genuíno nos
bastidores garantia a paz de espírito que se transmutava na aura poeticamente
sensível de seus filhos cinematográficos.
Os dois se conheceram no Festival Internacional de
Curta-Metragem de Tours, em 1958. Ele defendia “Le bel indifférent”; ela, “Du
côté de la côte”. No ano seguinte já estavam morando juntos. Demy, num gesto de
grandeza, adotou Rosalie, filha que Varda havia tido em seu relacionamento
anterior com o comediante Antoine Bourseiller. Tomado de inspiração, ele ganha
confiança e se aventura no primeiro longa-metragem, o excelente “Lola, a Flor
Proibida”, protagonizado por Anouk Aimée, e com uma canção cuja letra foi
composta por Varda. Logo depois os dois se casam, em 1962, o mesmo ano em que o
mundo conheceria a obra-prima dela: “Cléo das 5 às 7”. É fascinante constatar
que, apesar de já lutarem na área há anos, experimentando com a câmera e as
possibilidades estéticas e narrativas, o desabrochar definitivo, o
amadurecimento artístico dos dois ocorre em paralelo com a feliz reunião. O
filho dos dois, Mathieu, nasce em 1972, dezesseis anos depois ele estrearia
como ator no ótimo “Le petit amour”, sendo dirigido pela mãe, vivendo o
adolescente gamer que conquista o coração de uma mulher mais velha,
interpretada por uma inspirada Jane Birkin. Nos momentos difíceis, os dois se
bastavam. Enquanto Varda recebia elogios dos colegas cineastas franceses, Demy começou
a ser atacado após alcançar reconhecimento popular, os jovens turcos da
nouvelle vague, como Godard, consideravam que ele havia se vendido ao
entretenimento frívolo e politicamente vazio da indústria americana, uma
campanha baixa e movida pela inveja profissional que prejudicou sua carreira,
dificultando o processo de conseguir financiamento, abalando sua autoestima. Se
hoje, Demy é considerado de forma justa um gênio do cinema, devemos isto aos
esforços incansáveis de sua esposa.
Em seu documentário: “Le demoiselles out eu 25 ans”, registrando
a repercussão da obra de Demy vinte e cinco anos depois das filmagens de “Les
demoiselles de Rochefort”, Varda, apenas três anos depois do falecimento dele,
escolhe mostrar como aquela peça de ficção modificou as vidas de várias pessoas
que não estavam diretamente ligadas à produção, o poder agregador do cinema, a
alegria que a arte daquele grupo de profissionais trouxe para os moradores e
para a cidade como um todo. Ruas foram nomeadas em homenagem ao filme, pessoas
de todas as idades cantam e dançam o orgulho que sentem, eles até se vestem
como os personagens! Como mensurar o valor de algo que se recusa a perder
relevância com o tempo? Não é apenas um entretenimento casual que pode ser
facilmente substituído por uma partida de gamão, cinema é um veículo mágico que
une pessoas de diferentes credos, raças e ideologias políticas. E aquele que
consegue operar esta mágica merece todas as homenagens.
Quando Varda aborda o tema da infidelidade conjugal no
excelente “Le bonheur”, de 1965, faz com a coragem de uma mulher que celebra a
liberdade e questiona sem reservas a antinaturalidade da monogamia, apontando
para o conceito discutível do ritual do casamento como contrato, instrumento de
controle social, inserindo nas pulsões naturais a pecha do pecado, a cultura da
culpa e da remissão pela aceitação do cabresto. Demy, apesar de extremamente
discreto em sua vida pessoal, viveu plenamente sua bissexualidade, ele marchava
no ritmo de seu próprio tambor ideológico. O amor não é algo que pode ser
facilmente sintetizado, embalado para presente, ele não se adequa às pressões
da sociedade, sempre encontra uma rota de fuga, ele não é o destino, mas, sim,
o ponto de partida. No funeral dele, ela tirou duas cópias de “Les parapluies
de Cherbourg”, dividiu a trágica cena de despedida em frames individuais e os
deixou em uma pilha na saída, para que as pessoas decidissem, ao final da
cerimônia, qual momento eles manteriam na memória afetiva como lembrança do
artista. Até mesmo em seu tempo de luto, que tremendo ser humano, ela se
preocupou em destacar o trabalho dele.
Acho válido salientar que Varda, mesmo tendo seu nome
usualmente ligado ao movimento feminista, inteligentemente reconhecia que o
pensamento lúcido caminha sempre no centro da estrada, nunca nos extremos. Ela dedicou
grande parte de sua vida a fazer de tudo para que o conjunto de obra do homem
que lutou ao seu lado não se perdesse nas páginas da história, zelosa guardiã
de seu legado artístico e, acima de tudo, difusora apaixonada de seu valor
humano. Ela foi a maestra que regeu a sinfonia de sua memória, potencializando
emoção ao marcar o compasso das grandes conquistas pessoais e sabendo extrair e
generosamente compartilhar com o público o aprendizado residual obtido nos eventos
convencionalmente classificados como de menor importância, por exemplo, a
visita terapêutica frequente à sala de cinema na adolescência, o encanto
avassalador pelo potencial crítico da teatralidade antinatural no gênero
musical, ou o lúdico apreço na infância por marionetes, com a plena consciência
de que a essência de todo indivíduo não reside em suas convicções, mas, sim, no
limiar de seus questionamentos, na madura aceitação do poder libertador da
dúvida.
Como no monumental “Jacquot de Nantes”, ao traçar no
cotidiano do menino os rastros das angústias que o levaram a buscar na
irrealidade cinematográfica doses medicinais de conforto, a força que o manteve
feliz mesmo inserido em um cenário de guerra, ela, como arqueóloga patrocinada
pela gratidão, evocando o garimpo natural de carinhosa documentarista, encontra
nas escavações psicológicas os impulsos que forjaram o caráter do homem de sua
vida. E, em um gesto de despedida muito emocionante, transforma a jornada dele
em filme, eternizando a relação na arte. Não há declaração de amor mais bela na
vida real, muito menos na ficção.
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