Mãe! (Mother! – 2017)
(O texto aborda detalhes da trama, então recomendo que seja
lido após a sessão)
Como sempre afirmo, a expectativa deve ser sempre evitada,
especialmente pelos profissionais da crítica. O indivíduo que paga ingresso e
busca ser mimado pela arte, pode sair revoltado de uma sessão e falar mal do
filme para todo mundo. Aquele que exercita a lucidez, mesmo não tendo
compreendido a proposta da obra, reconhece os méritos técnicos e busca
aprender. Acompanhando a repercussão nas redes sociais e sites especializados,
percebo que parcela considerável dos detratores sequer captou a metáfora mais
óbvia na trama, apenas uma das várias interpretações possíveis. Eu sinceramente
torço para que o diretor, ateu declarado, esteja conscientemente construindo
uma trilogia temática com viés crítico sobre religião, ele já exercitava isto
desde seu primeiro longa-metragem: “Pi”, mas foi com “Noé”, seu trabalho
anterior, que ele abraçou sem reservas o desafio. Ele agora segue explorando a necessidade
humana de se apoiar em crenças sobrenaturais, trazendo o criacionismo para o
terreno da realidade identificável, utilizando códigos do terror na estrutura
do roteiro, objetivando evidenciar o absurdo inerente ao conceito.
Deus/Criador (Javier Bardem) e a Mãe/Natureza (Jennifer
Lawrence) vivem no Paraíso, uma casa isolada e cercada de árvores, um terreno
que visivelmente nunca foi pisado, a fotografia de Matthew Libatique banha o
cenário com a antinatural luz da pureza, a perfeição, enquanto opta pela
claustrofobia nas filmagens internas, planos fechados apontando a solidão que
ambos sentiam. Para a surpresa dos dois, Adão (Ed Harris) aparece na porta com
um ferimento na costela, acompanhado de Eva (Michelle Pfeiffer). Ele, frágil e
passivo. Ela, coerente à sua imagem como causadora de todos os males no livro
sagrado católico, desrespeitosa, cínica, excessivamente sexualizada, provocadora
cruel. O casal invade a casa e, sem qualquer consideração com a dona, corrompe
cada ambiente, danificando a propriedade. Pouco tempo depois, sem aviso, seus
dois filhos, Caim e Abel (Domhnall Gleeson e Brian Gleeson) invadem também,
culminando em um assassinato brutal.
O símbolo do criador sendo representado como poeta escritor
é muito eficiente, criação artística e divina, há uma camada de interpretação
menos alegórica que permite identificar a trama como um tratado sobre as
dificuldades do processo criativo e o desejo narcisístico de ser reconhecido
pelo trabalho. O bebê que é entregue à massa de adoradores, o livro que
finalmente vai ser lido por outrem, o esforço do autor e o abandono do material
que agora será adotado por cada leitor. Mas o viés religioso é muito mais
instigante. O bebê Jesus, os seus ensinamentos, desvirtuados por vários
interesses baixos, o pastor que fala em nome do criador e faz fortuna vendendo
sua imagem. O mesmo povo que mata o bebê por negligência, no torpor da adoração
excessiva, divide ele em pedaços e ingere sua carne em ritual, a celebração da
falsa aparência, enquanto praticam o oposto do que ele pregou, destruindo a
casa em sua ruidosa passagem, literalmente estuprando a mãe Terra. A personagem
vivida por Kristen Wiig, a editora/apóstola, está pronta para utilizar os
escritos do autor e lucrar em seu nome, uma organização que busca apenas
conquistar o poder e manter-se relevante, injetando culpa, medo e penitência
como elementos de controle social e político. E, num gesto de incrível coragem,
Aronofsky mostra ela no terceiro ato sendo a fria líder armada em uma chacina,
as guerras santas, o dedo que aperta o gatilho, ou se omite quando é
conveniente.
Uma obra questionadora, que desafia o público e estabelece
tensão na medida certa para satisfazer até mesmo aqueles interessados apenas no
elemento do entretenimento. Ao ousar novamente em um produto mainstream, o
diretor prova que ainda há vida inteligente na indústria.
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