Shirley Valentine (1989)
Filmes com temática feminina são normalmente vistos com
preconceito por grande parte dos críticos, com certa razão, já que, na maioria
das vezes, abusam dos clichês e apostam no melodrama folhetinesco, resultando
em variações daqueles livros românticos de banca de jornal. Para cada comédia
romântica verdadeiramente interessante, original e inteligente, existem dez
genéricos imediatistas. “Shirley Valentine”, dirigida por Lewis Gilbert, em
1989, é uma dessas ótimas exceções.
O texto esbanja um senso de humor ácido, amparado por uma
estrutura deliciosamente farsesca, com o constante uso da quebra da quarta
parede. A protagonista, vivida competentemente por Pauline Collins, conversa
com o público, uma troca de experiências, já que, em algumas cenas, a
personagem parece seguir a resposta do público, como quando recoloca os óculos
escuros ao perceber seu marido se aproximando, perto do desfecho. Quase podemos
escutar o público feminino na plateia dizendo em tom orgulhoso: “Não desce do
salto, Shirley”. E ela sinaliza imediatamente para a câmera que escutou o
conselho. Esse diálogo franco com o público-alvo funciona porque é alicerçado
em grandes verdades, algo que se estabelece logo na primeira cena, quando vemos
a mulher confidenciando sua solidão para a parede de sua cozinha.
A química é irresistível, ficamos encantados com essa pessoa
minimizada pelo acúmulo de decisões equivocadas, mas que, como a bonita
música-tema cantada por Patti Austin evidencia, ainda busca reencontrar aquela
garota que foi outrora, o pássaro que nasceu para voar, porém, desencantado com
os sonhos desfeitos, acordou numa manhã e não se reconheceu no espelho de sua
gaiola.
Hábitos simples, como dançar e sorrir em uma manhã chuvosa,
substituídos implacavelmente no cotidiano por uma postura submissa ao marido,
vivido por Bernard Hill, um estranho grosseiro cuja única conexão aparente é a
aliança no dedo, fruto de uma antiga decisão inconsequente, um contrato
assinado por mãos jovens e que não haviam sido ainda castigadas pela realidade
da vida.
A simpatia dela contrasta violentamente com a
insensibilidade dele, demonstrando no subtexto uma tremenda resiliência de
Shirley. Qualquer mulher na mesma situação já teria se enclausurado na amargura
profunda, sem traço de esperança visível no horizonte. O prato simples, ovos
com batata frita, que ele agressivamente rejeita no início do filme, é o mesmo
que ela oferece aos clientes do restaurante, no terceiro ato, quando já está
avançando no processo de reinicialização do seu sistema pessoal, mostrando que
sua autoconfiança, primeiro elemento que é dizimado numa relação fundamentada
em ofensas gratuitas, não foi abalada por aquele evento. Ela viaja para a
Grécia, realizando seu maior sonho, sem utilizar qualquer muleta psicológica,
superando até mesmo a indiferença da amiga que a havia convidado.
“Você beijou minhas estrias!”
Shirley utiliza o silêncio como ambientação para refletir
sobre suas decisões, aprendendo que deve buscar a satisfação sexual. Quando
descobre que seu amante grego, vivido por Tom Conti, é, na realidade, um
mulherengo, ela não se sente ofendida. O que importa para ela é que aquele
homem a enxergou como a mulher interessante e bela que sempre foi. Como ela
afirma assustada, após fazerem amor, ele havia beijado as suas estrias.
Ela chega a invejar a atitude gazeteira e libertária dele,
aproveitando cada momento de sua existência. Talvez, Shirley tivesse se tornado
uma conquistadora, abraçando as possibilidades apaixonantes da vida, caso não
tivesse se prendido tão cedo em um ritual secular de hipocrisia. Essa
identificação carinhosa, simbolizada na cena em que ela o flagra passando mais
uma cantada em uma turista, é a constatação definitiva da sublimação de sua
insegurança.
“Eu não me apaixonei por ele. Eu estou me apaixonando pela
ideia de viver”.
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