quinta-feira, 3 de agosto de 2017

"Shirley Valentine", de Lewis Gilbert


Shirley Valentine (1989)
Filmes com temática feminina são normalmente vistos com preconceito por grande parte dos críticos, com certa razão, já que, na maioria das vezes, abusam dos clichês e apostam no melodrama folhetinesco, resultando em variações daqueles livros românticos de banca de jornal. Para cada comédia romântica verdadeiramente interessante, original e inteligente, existem dez genéricos imediatistas. “Shirley Valentine”, dirigida por Lewis Gilbert, em 1989, é uma dessas ótimas exceções.

O texto esbanja um senso de humor ácido, amparado por uma estrutura deliciosamente farsesca, com o constante uso da quebra da quarta parede. A protagonista, vivida competentemente por Pauline Collins, conversa com o público, uma troca de experiências, já que, em algumas cenas, a personagem parece seguir a resposta do público, como quando recoloca os óculos escuros ao perceber seu marido se aproximando, perto do desfecho. Quase podemos escutar o público feminino na plateia dizendo em tom orgulhoso: “Não desce do salto, Shirley”. E ela sinaliza imediatamente para a câmera que escutou o conselho. Esse diálogo franco com o público-alvo funciona porque é alicerçado em grandes verdades, algo que se estabelece logo na primeira cena, quando vemos a mulher confidenciando sua solidão para a parede de sua cozinha.

A química é irresistível, ficamos encantados com essa pessoa minimizada pelo acúmulo de decisões equivocadas, mas que, como a bonita música-tema cantada por Patti Austin evidencia, ainda busca reencontrar aquela garota que foi outrora, o pássaro que nasceu para voar, porém, desencantado com os sonhos desfeitos, acordou numa manhã e não se reconheceu no espelho de sua gaiola.

Hábitos simples, como dançar e sorrir em uma manhã chuvosa, substituídos implacavelmente no cotidiano por uma postura submissa ao marido, vivido por Bernard Hill, um estranho grosseiro cuja única conexão aparente é a aliança no dedo, fruto de uma antiga decisão inconsequente, um contrato assinado por mãos jovens e que não haviam sido ainda castigadas pela realidade da vida.

A simpatia dela contrasta violentamente com a insensibilidade dele, demonstrando no subtexto uma tremenda resiliência de Shirley. Qualquer mulher na mesma situação já teria se enclausurado na amargura profunda, sem traço de esperança visível no horizonte. O prato simples, ovos com batata frita, que ele agressivamente rejeita no início do filme, é o mesmo que ela oferece aos clientes do restaurante, no terceiro ato, quando já está avançando no processo de reinicialização do seu sistema pessoal, mostrando que sua autoconfiança, primeiro elemento que é dizimado numa relação fundamentada em ofensas gratuitas, não foi abalada por aquele evento. Ela viaja para a Grécia, realizando seu maior sonho, sem utilizar qualquer muleta psicológica, superando até mesmo a indiferença da amiga que a havia convidado.

“Você beijou minhas estrias!”

Shirley utiliza o silêncio como ambientação para refletir sobre suas decisões, aprendendo que deve buscar a satisfação sexual. Quando descobre que seu amante grego, vivido por Tom Conti, é, na realidade, um mulherengo, ela não se sente ofendida. O que importa para ela é que aquele homem a enxergou como a mulher interessante e bela que sempre foi. Como ela afirma assustada, após fazerem amor, ele havia beijado as suas estrias.

Ela chega a invejar a atitude gazeteira e libertária dele, aproveitando cada momento de sua existência. Talvez, Shirley tivesse se tornado uma conquistadora, abraçando as possibilidades apaixonantes da vida, caso não tivesse se prendido tão cedo em um ritual secular de hipocrisia. Essa identificação carinhosa, simbolizada na cena em que ela o flagra passando mais uma cantada em uma turista, é a constatação definitiva da sublimação de sua insegurança. 

“Eu não me apaixonei por ele. Eu estou me apaixonando pela ideia de viver”.

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