terça-feira, 3 de janeiro de 2017

"Os Caçadores da Arca Perdida", de Steven Spielberg


Os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark - 1981)
Quando se escreve sobre o filme, o senso comum é salientar a magnífica trilha sonora de John Williams, as empolgantes sequências de ação, a reverência à literatura pulp e aos seriados de aventura do cinema antigo, a presença carismática de Harrison Ford, ou a fantasia deliciosamente escapista da trama, mas o elemento que verdadeiramente me encanta é simples: o herói é um professor. A minha contraparte infantil, o menino sonhador que chegava da escola e colocava para rodar no videocassete o VHS da trilogia gravada da televisão em EP, nutria um profundo respeito por seus professores, imaginando as aventuras que eles deveriam viver quando não estavam sujando os dedos de giz na lousa. E, de fato, sobreviver com o salário de um professor no Brasil sempre foi tarefa para Indiana Jones.

Eu sonhava em ser professor, creio que meu amor por sebos também se originou nessas explorações arqueológicas cinematográficas, a valorização do livro, o interesse por adquirir cada vez mais cultura. Hoje os sonhos das crianças brasileiras são emoldurados pela lavagem de dinheiro que nutre a indústria musical de péssima qualidade com profissionais de barro, teologia da prosperidade com estelionatários da fé, galãs criados da noite para o dia por assessores de imprensa, todo um sistema de medíocres inseguros que se defendem comprando os aplausos, fingindo não enxergar os indivíduos que conquistam espaço por mérito, com real talento e respeito pela arte. Os bons morrem de fome, mas não foi sempre assim. E obras como “Os Caçadores da Arca Perdida” são importantes, não somente como entretenimento, mas também por simbolizarem esse necessário resgate de valores. O valente que salva o dia com seu chicote passa grande parte de seu tempo estudando livros antigos, a arqueologia é a paixão que move sua vida. Ele não tem superpoderes, desaba no chão ao levar um soco bem dado, mas é guiado por seu caráter a revidar. Ele tem medo de cobras, comete equívocos com frequência, mas o intuito é sempre genuinamente bom. Indiana Jones é honrado, justo e ético, ele se irrita com o destino que é dado à Arca da Aliança no desfecho, ele se revolta com a sujeira por trás da burocracia.

A ideia nasceu do interesse de Steven Spielberg dirigir um filme de James Bond. O amigo George Lucas, ainda surfando na onda de sucesso de “Star Wars”, disse que tinha um conceito muito mais interessante na gaveta. A franquia inglesa vivia o seu período mais absurdo, o espião de Ian Fleming havia se tornado praticamente um personagem de quadrinhos, então a possibilidade de um herói mais realista soou agradável para o jovem que precisava tirar o gosto amargo que “1941 – Uma Guerra Muito Louca” havia deixado, ele queria provar para a indústria que “Tubarão” e “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” não tinham sido golpes de sorte. A apresentação do protagonista é brilhante, envolto em sombras na selva, silencioso e ameaçador, enfrentando um pistoleiro traidor com um rápido movimento de seu chicote. Em seu primeiro grande momento ele erra, ativa a armadilha e seu rosto acusa o desespero. O charme reside em sua vulnerabilidade, ele não consegue cumprir a missão de recuperar o ídolo dourado. Marion, a bela Karen Allen, reencontra o herói em uma cena trabalhada romanticamente, o espectador enxerga apenas a silhueta dele na parede, tudo leva a crer que o beijo é questão de tempo, mas a jovem interrompe o discurso dele com um soco de mão fechada, o que evidencia seu pouco tato com mulheres. E ele não pensa duas vezes antes de finalizar um duelo com um simples apertar de gatilho, quando percebe o apreço do adversário espadachim pela teatralidade.

Ele é falho, desajeitado, intensamente humano, o roteiro de Lawrence Kasdan conquista rapidamente a empatia do espectador pela identificação com o personagem. A fantasia sobrenatural representada pelo McGuffin religioso encanta os olhos e instiga a imaginação, vibramos ao ver um professor aventureiro enfrentar até a cúpula nazista, mas o filme não seria relevante sem esse cuidado dedicado em estabelecer já na primeira meia-hora o caráter íntegro do protagonista. A chave do sucesso está na simples cena ambientada na sala escolar, a paixão do professor que tenta incutir nos alunos adolescentes o interesse por sua matéria.  

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