segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

"Lawrence da Arábia", de David Lean


Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia - 1962)
Qual o problema de nosso sistema educacional? Os alunos são condicionados ao estudo como mal necessário para se atingir as notas, o que importa é o diploma, o reconhecimento de outrem, ainda que as matérias sejam esquecidas no dia seguinte das provas. É por isso que o nível educacional de um adulto com curso superior hoje é inferior ao nível educacional de um jovem universitário da década de quarenta. Um diagnóstico que explica o panorama desastroso que podemos enxergar no país em todos os setores. O importante é “parecer ser”, já que o genuíno “ser” demanda dedicação diária e, mais importante, o interesse prazeroso, intenso e sincero, pelo objeto da dedicação. O que isso tem a ver com “Lawrence da Arábia”? Uma vez fui abordado por uma professora que pedia sugestões de filmes para seus alunos sobre a temática da importância de se seguir a real vocação profissional. Ela achou que eu ia citar aquelas óbvias produções encorajadoras genéricas, mas sugeri apenas essa obra-prima arrebatadora de David Lean. Creio que o efeito foi positivo, nem mesmo a professora acreditava que seus alunos iriam prestar atenção em um filme tão longo. O que me espantava era a constatação de que esses adolescentes não conheciam o filme e a história do protagonista.

T.E. Lawrence, vivido brilhantemente por Peter O’Toole, um homem que cansou de ser frequentemente limitado por ilusórias patentes, alguém que ousou rejeitar a vida que a sociedade tentou impor a ele. Ele não atendia sequer as especificações físicas para o alistamento. Ao ser enviado para a Arábia como conselheiro militar, há um perceptível véu de descrédito por parte de seus superiores, um convite irrecusável para que o jovem rapidamente sinta o desejo de transgredir suas funções. Já no primeiro contato com o beduíno que o conduz na longa viagem até a reunião diplomática com o príncipe Faisal (Alec Guinness), Lawrence, o letrado obviamente despreparado organicamente para o trajeto no deserto, faz questão de mostrar que só vai beber água após o guia saciar a sede, uma declaração de caráter forte e tremendamente arriscada. Ao corajosamente evidenciar na reunião que a estratégia que seu país sugere não é vantajosa para os árabes, o jovem deixa claro que seus princípios falam mais alto, uma atitude que revolta o seu superior e emociona o príncipe. Ele faz aliança com Faisal e Ali (Omar Sharif), promovendo então o que parecia impossível, o resgate nacionalista que uniu as tribos árabes contra o Império Otomano. Lawrence conquista o respeito até mesmo de Auda Abu Tayi (Anthony Quinn), líder sem escrúpulos que prestava serviços para os adversários. A razão de seus esforços é a pura admiração pela causa, a vontade rebelde de transgredir, uma necessidade irresistível de satisfazer sua egolatria, ou a união generosa desses três elementos? O interesse do roteiro é explorar esse questionamento, buscando inspiração no livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”, escrito por Lawrence.

Nos créditos iniciais, emoldurados pela maravilhosa trilha sonora de Maurice Jarre, o espectador é apresentado a um homem franzino que, lentamente, prepara sua motocicleta para um passeio despretensioso. O cuidado reverente transmite a paixão dele por aquela máquina. A música sugere a grandiosidade da aventura, inteligentemente contrastando com a pequenez do ato mostrado. Um acidente tolo, minutos depois, tira a vida do homem que, nas palavras de Winston Churchill, foi “um dos maiores indivíduos que viveram em nossa época”. O escopo do Super Panavision 70 é épico, mas a abordagem é intimista, o foco é a exploração do mito, a transição de sonhador teórico a herói prático, de subjugado a assassino, de torturado humilhado a um selvagem que intimida o mais bruto dos homens. A câmera de Lean potencializa a força emocional de uma sequência como a do massacre de Tafas, ou o deslumbramento empolgante da conquista de Aqaba e Damasco, mas também consegue extrair do silêncio e da aparente tranquilidade a força preciosa da alegoria, o mítico momento em que Lawrence, vestindo a túnica branca, encara seu reflexo na lâmina da adaga e caminha orgulhoso pelo deserto consciente de que está fazendo história, protagonizando a sua própria vida. Vale ressaltar que essa cena foi um improviso de O'Toole. Quem foi esse homem? O jornalista questiona os presentes em seu funeral no início do filme, as respostas não poderiam ser mais contraditórias, as informações dadas não resvalam na superfície, a complexa natureza de Lawrence não é facilmente compreendida. Ele foi um ponto fora da curva, um indivíduo que ousou desafiar as probabilidades. Ele decidiu ser exatamente quem ele desejava ser, ao invés de satisfazer os rituais sociais que escravizam outrem, frustrados que diariamente olham para seus diplomas, suas medalhas, aguardando o dia em que terão coragem de viver. 

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