Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia - 1962)
Qual o problema de nosso sistema educacional? Os alunos são
condicionados ao estudo como mal necessário para se atingir as notas, o que
importa é o diploma, o reconhecimento de outrem, ainda que as matérias sejam
esquecidas no dia seguinte das provas. É por isso que o nível educacional de um
adulto com curso superior hoje é inferior ao nível educacional de um jovem
universitário da década de quarenta. Um diagnóstico que explica o panorama
desastroso que podemos enxergar no país em todos os setores. O importante é
“parecer ser”, já que o genuíno “ser” demanda dedicação diária e, mais
importante, o interesse prazeroso, intenso e sincero, pelo objeto da dedicação.
O que isso tem a ver com “Lawrence da Arábia”? Uma vez fui abordado por uma
professora que pedia sugestões de filmes para seus alunos sobre a temática da
importância de se seguir a real vocação profissional. Ela achou que eu ia citar
aquelas óbvias produções encorajadoras genéricas, mas sugeri apenas essa
obra-prima arrebatadora de David Lean. Creio que o efeito foi positivo, nem
mesmo a professora acreditava que seus alunos iriam prestar atenção em um filme
tão longo. O que me espantava era a constatação de que esses adolescentes não
conheciam o filme e a história do protagonista.
T.E. Lawrence, vivido brilhantemente por Peter O’Toole, um
homem que cansou de ser frequentemente limitado por ilusórias patentes, alguém
que ousou rejeitar a vida que a sociedade tentou impor a ele. Ele não atendia
sequer as especificações físicas para o alistamento. Ao ser enviado para a
Arábia como conselheiro militar, há um perceptível véu de descrédito por parte
de seus superiores, um convite irrecusável para que o jovem rapidamente sinta o
desejo de transgredir suas funções. Já no primeiro contato com o beduíno que o
conduz na longa viagem até a reunião diplomática com o príncipe Faisal (Alec
Guinness), Lawrence, o letrado obviamente despreparado organicamente para o
trajeto no deserto, faz questão de mostrar que só vai beber água após o guia
saciar a sede, uma declaração de caráter forte e tremendamente arriscada. Ao corajosamente
evidenciar na reunião que a estratégia que seu país sugere não é vantajosa para
os árabes, o jovem deixa claro que seus princípios falam mais alto, uma atitude
que revolta o seu superior e emociona o príncipe. Ele faz aliança com Faisal e
Ali (Omar Sharif), promovendo então o que parecia impossível, o resgate
nacionalista que uniu as tribos árabes contra o Império Otomano. Lawrence
conquista o respeito até mesmo de Auda Abu Tayi (Anthony Quinn), líder sem
escrúpulos que prestava serviços para os adversários. A razão de seus esforços
é a pura admiração pela causa, a vontade rebelde de transgredir, uma
necessidade irresistível de satisfazer sua egolatria, ou a união generosa desses
três elementos? O interesse do roteiro é explorar esse questionamento, buscando
inspiração no livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”, escrito por Lawrence.
Nos créditos iniciais, emoldurados pela maravilhosa trilha
sonora de Maurice Jarre, o espectador é apresentado a um homem franzino que,
lentamente, prepara sua motocicleta para um passeio despretensioso. O cuidado
reverente transmite a paixão dele por aquela máquina. A música sugere a
grandiosidade da aventura, inteligentemente contrastando com a pequenez do ato
mostrado. Um acidente tolo, minutos depois, tira a vida do homem que, nas
palavras de Winston Churchill, foi “um dos maiores indivíduos que viveram em
nossa época”. O escopo do Super Panavision 70 é épico, mas a abordagem é
intimista, o foco é a exploração do mito, a transição de sonhador teórico a
herói prático, de subjugado a assassino, de torturado humilhado a um selvagem
que intimida o mais bruto dos homens. A câmera de Lean potencializa a força
emocional de uma sequência como a do massacre de Tafas, ou o deslumbramento
empolgante da conquista de Aqaba e Damasco, mas também consegue extrair do
silêncio e da aparente tranquilidade a força preciosa da alegoria, o mítico
momento em que Lawrence, vestindo a túnica branca, encara seu reflexo na lâmina
da adaga e caminha orgulhoso pelo deserto consciente de que está fazendo
história, protagonizando a sua própria vida. Vale ressaltar que essa cena foi um improviso de O'Toole. Quem foi esse homem? O jornalista
questiona os presentes em seu funeral no início do filme, as respostas não
poderiam ser mais contraditórias, as informações dadas não resvalam na
superfície, a complexa natureza de Lawrence não é facilmente compreendida. Ele
foi um ponto fora da curva, um indivíduo que ousou desafiar as probabilidades. Ele decidiu ser exatamente quem ele desejava ser, ao invés de satisfazer os rituais sociais que escravizam outrem, frustrados que diariamente olham para seus diplomas, suas medalhas, aguardando o dia em que terão coragem de viver.
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