quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

"... E o Vento Levou", de Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood


... E o Vento Levou (Gone With the Wind - 1939)
Todos os grandes romances do cinema, aqueles que sobrevivem ao teste do tempo, entregam finais trágicos e/ou emocionalmente insatisfatórios, tudo dá errado, o amor não pode ser correspondido, alguém morre, em suma, entregam um espelho para que o espectador se enxergue no reflexo. Basta analisar a fraquíssima continuação literária “Scarlett”, escrita por Alexandra Ripley em 1991, cujo final feliz transforma o original em material de romances genéricos de banca de jornal. A experiência da vida não prima por resoluções satisfatórias, a felicidade só é verdadeiramente saboreada quando o indivíduo emocionalmente maduro compreende a qualidade etérea dessa condição. A indústria de Hollywood faz fortuna anualmente satisfazendo aqueles que não aceitam essa verdade, roteiros tolos e demagógicos com direito a reutilização excessiva dos clichês mais pueris. É cada vez mais raro, como crítico, encontrar bons filmes no gênero, mas houve uma época em que os projetos eram pensados por e para adultos. “... E o Vento Levou”, adaptado do livro escrito por Margaret Mitchell, simboliza magistralmente esse período de ouro.

O projeto do produtor David O. Selznick foi pensado para ser a experiência sensorialmente mais impressionante até aquele momento, você sente o cuidado extremo em cada frame, a inserção perfeita dos alívios cômicos, a maneira como a câmera se apaixona pelos personagens. Uma cena delicada, breve e que nunca é lembrada, reforça esse refinamento com sutileza elegante, uma repetição expressionista do leitmotiv visual que sintetiza a personalidade da jovem Scarlett O’Hara (Vivien Leigh), segurando a respiração para caber no apertado corpete, a beleza conquistada através do esforço da escrava Mammy (Hattie McDaniel) em suas costas puxando a amarração. Na primeira vez em que a vemos nessa situação, ela, mimada adolescente interiorana, utiliza a atração que exerce nos homens sem remorso algum, enxergando todos como joguetes, uma personalidade sem noção alguma de empatia. A segunda vez é tão sutil que poucos percebem. A guerra já começou, a jovem é forçada a ajudar como enfermeira, tarefa que descarta na primeira possibilidade que aparece. Mas, enquanto ajuda Melanie (Olivia de Havilland) com um ferido no leito, o leitmotiv é projetado na sombra das duas na parede, até a câmera se mover e desfazer a ilusão, revelando Scarlett metaforicamente no lugar da escrava, o trabalho duro que ela estava experimentando pela primeira vez na vida. A terceira vez ocorre após o nascimento da filha. Scarlett, já adulta, mas ainda emocionalmente imatura, amuada ao constatar que não tem mais a sua cintura fina de outrora. Ao se adaptar, no ímpeto desesperado da sobrevivência, ela não evolui, não amadurece, não demonstra força interna, apenas troca de máscaras. Até o último suspiro da melhor amiga, ela ainda cogita a hipótese de roubar seu marido. Ela jurou não passar fome novamente, perdeu tudo e reconquistou o status social ao se casar sem amor, mas ainda estava longe de ser considerada heroína. A nobreza está naquela responsável pela amarração que seguia sendo escrava. Os personagens mais genuinamente valorosos do filme, Melanie e Mammy, permanecem os mesmos, ainda que enfrentem nas mesmas condições todos os obstáculos, puras forças da natureza, caracteres íntegros, os alicerces que sustentam, direta ou indiretamente, a fazenda Tara.

Rhett Butler (Clark Gable), o único personagem que se iguala a Scarlett no nível de egoísmo, oportunismo e vaidade, acaba se tornando o remédio amargo eficiente. O roteiro enfrenta corajosamente a censura do Código Hays na cena em que, bêbado, ele a carrega violentamente para o quarto, o que alguns textos equivocadamente chamam de estupro marital. A reação hilária dela na manhã seguinte, feliz como nunca, a fera acalmada, o sexo como forma de expressão primitiva entre dois seres sem escrúpulos. Ele é o responsável pela redenção dela, algo que só ocorre nos últimos segundos do filme, quando ele afirma friamente que não dá a mínima importância para o que ela pensa sobre sua decisão de a abandonar. Scarlett, que sempre acreditou ser capaz de conquistar qualquer homem só com um movimento de seu belo rosto, aprendeu que terá que se esforçar muito para obter tudo o que deseja, enfim, fazer a amarração metafórica de seu próprio corpete. E, mais importante, ela conquistou a tardia maturidade emocional, sendo capaz de reconhecer de forma cristalina as suas prioridades. A destruição causada pela guerra, o fim da idílica vida aristocrática, um reflexo perfeito do estado psicológico da protagonista. "Amanhã será um outro dia". O recomeço, a reconstrução interna a partir do reconhecimento do valor da terra, o valor da essência que nos faz humanos, a sublimação da dor. A força do vento leva tudo, mas Scarlett aprende que o segredo está em resistir. 

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