A Garota do Livro (The Girl in The Book - 2015)
É interessante constatar o efeito de manada que ocorre com a
recepção da crítica em certos projetos. Em produções mais modestas, como “A
Garota do Livro”, estreia da roteirista/diretora Marya Cohn, filme de baixo
orçamento, finalizado com uma campanha no kickstarter, esse tipo de análise
desinteressada pode prejudicar fatalmente a obra. Evito ao máximo ler textos de
colegas antes da primeira experiência, exatamente pra não correr o risco de já
conhecer a trama com qualquer rótulo definido. A expectativa, positiva ou
negativa, é a pior coisa que um crítico pode nutrir. Ao final da sessão, não
tive dúvida, inseri o título na minha lista dos melhores filmes vistos nesse
ano. Então fui ler algumas críticas e percebi que o filme está sendo massacrado
por grande parte dos meus colegas. Serei seu advogado de defesa.
O primeiro aspecto que saliento é a tremenda atuação do trio
principal, formado por Emily VanCamp, Michael Nyqvist e Ana Mulvoy-Ten. Emily,
uma das melhores atrizes de sua geração, consegue compor uma personalidade
frágil, sem cair nos vícios do coitadismo, com uma ternura que nem mesmo as
piores atitudes que comete, em sua espiral descendente, são capazes de abalar.
A sua Alice, tendo sofrido abuso sexual na adolescência, busca suprir lacunas
emocionais com o imediatismo de relações casuais com estranhos. Ao ser
psicologicamente agredida pelo seu mentor literário, a primeira pessoa em quem
ela confidenciou seu sonho de ser escritora, ela não se calou. O problema foi
que os pais estavam preocupados demais com os próprios umbigos e não
acreditaram em suas palavras.
O arco narrativo dela é fascinante, da inocência infantil,
passando pela fuga do carro (estabilidade) dos pais, até a redescoberta do amor
próprio após o problema com o novo namorado, evento que conduz ao necessário
confronto com seu abusador e o consequencial revide na arena literária do
pedófilo, cada passo é retratado com muita eficiência no roteiro
inteligentemente enxuto, que faz bom uso da estrutura de flashbacks. Vivendo o agressor,
Nyqvist impõe uma figura asquerosa que alterna momentos de covardia extrema com
demonstrações de arrogância intelectual, trabalhada como mecanismo de defesa,
uma máscara social que esconde a profunda insegurança artística de Milan, já
que seu único livro de sucesso foi todo alicerçado nas experiências que teve
com a jovem. Esse livro é o gatilho que faz com que Alice, quinze anos depois,
reviva seu trauma. Perceba a expressão no rosto de Ana, vivendo sua contraparte
adolescente, na cena em que ela descobre as reais intenções por trás da bondade
do adulto. Em questão de segundos, o olhar dela se torna a cristalização do
pavor, você enxerga a inocência sendo brutalmente extirpada da menina.
No terceiro ato, quebrando as expectativas, o roteiro
envereda brevemente por alguns recursos típicos de comédias românticas, acompanhando
o relacionamento da jovem com Emmet, que é vivido por David Call, uma decisão
ousadamente crítica que evidencia quão pueril costuma ser a visão da indústria
sobre a complexidade do amor entre duas pessoas. O namorado, um espírito
altruísta e puro que, como num reflexo do espelho da vida, permite a ela
enxergar no outro, agora de forma ativa, o mesmo estilhaçar de sonhos que viveu
outrora. Ao invés de se esgueirar em autopunição, como agiu com o abuso sofrido,
ela decide lutar pelo seu objetivo, reconquistar a confiança dele e, claro,
honrar seu próprio amadurecimento.
Outro ponto que agrega valor à obra é o desenvolvimento da
autoconfiança da protagonista. Alice é uma assistente editorial que já provou
diversas vezes ser competente, mas que é impedida de crescer profissionalmente
pelo seu superior, que, intimidado por seu talento, enxerga ela como uma
espécie de quebra-galho, a mulher do cafezinho. Até mesmo seu pai, bem-sucedido
agente literário, faz questão de decidir o que a filha irá comer no
restaurante. A baixa autoestima, consequência do trauma, impede que ela se
revolte contra esses absurdos, o que a faz adotar uma apatia constante,
aliviada apenas quando está na presença da única amiga que conquistou. Em sua
festa surpresa de aniversário, outro detalhe importante que pode passar
despercebido, mais da metade do grupo era formado por convidados que
desconheciam a jovem.
Com esse competente filme de estreia, eu estou curioso para
acompanhar a carreira de sua diretora.