quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

"Um Dia Muito Especial", de Ettore Scola


Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare – 1977)
Meu primeiro contato com a obra do diretor italiano Ettore Scola foi com o ótimo “A Viagem do Capitão Tornado”, seguindo uma indicação da professora no curso de teatro, em 2002. Mas a paixão e a necessidade de explorar todos os trabalhos dele viriam mesmo no ano seguinte, quando vi pela primeira vez “Um Dia Muito Especial”. Sendo um fervoroso defensor dos roteiros que restringem o espaço cênico, o chamado “filme de câmara”, eu fiquei emocionado com a leveza na abordagem do relacionamento entre os personagens vividos por Sophia Loren e Marcello Mastroianni, que compartilham uma tarde existencialmente libertadora para ambos, exatamente no dia em que Hitler se encontrava pela primeira vez com Mussolini. Essa libertação ocorrendo enquanto os dois líderes políticos objetivavam o aprisionamento e a guerra. A fuga do pássaro da dona de casa para a janela da frente, evento simbólico que representa o desejo da dona, conduz a mulher ao apartamento do vizinho.

Antonietta, mãe de seis crianças, esposa de um estúpido insensível que planeja engravidá-la novamente e que enxerga o seu vestido como pano pra limpar suas mãos, já esqueceu que algum dia chegou a utilizar maquiagem, o seu rosto é o retrato perfeito da conformidade. Sem estudo, insegura, tenta manter a dignidade que se esvai pelo buraco no sapato velho, procurando reconhecer no espelho os olhos da jovem divertida que outrora foi. Quando toda a família decide sair de casa para vivenciar as celebrações pela visita de Hitler, ela, incapaz de decidir algo, simplesmente permanece esquecida em sua gaiola para realizar suas tarefas diárias, consciente de que não há possibilidade de qualquer surpresa naquela monocórdia mesmice em que se acostumou a viver. Na janela da frente, Gabriele, um enigmático jornalista, cogita a hipótese de tirar a própria vida com um revólver, a solução imediatista equivocada, uma forma de se libertar dos preconceitos da sociedade com a sua homossexualidade. O toque da campainha impede o ato. Ela consegue, com ajuda do vizinho, resgatar o pássaro que havia se alojado próximo à janela dele. É impossível não se lembrar do belo “Desencanto”, de David Lean, ao acompanharmos a terna interação do casal, o crescente fascínio da mulher pela gentileza de um homem inteligente, o que ativa novamente o esquecido entusiasmo pelas coisas mais simples. O marido encorajava seu desinteresse cultural, já que dependia disso para exercer com facilidade seu domínio psicológico. Gabriele a presenteia com um livro. E, num gesto de profundo carinho, permite que ela satisfaça nele o seu desejo sexual, adormecido após vários anos de subserviência.

A opção por iniciar com uma longa sequência de cenas de arquivo reais da visita de Hitler, realçadas pela frequente inserção de transmissões de rádio como pano de fundo, ajudam a estabelecer o clima de opressão que se reflete no microcosmo representado pelo casal dentro do apartamento. Ao final, a mulher que é devolvida à rotina diária não parece estar disposta a se deixar escravizar, Antonietta, agora com um livro nas mãos, aprendeu a revidar. Esse é o legado de Gabriele.

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