1 - Divida de Honra (The Homesman), de Tommy Lee Jones
“... Ela é uma mulher madura que sobrevive sozinha no Velho Oeste, enfrentando o preconceito da sociedade machista, rejeitando a subserviência ao provar competência em seu trabalho, porém, como uma alma sensível, capaz de aliviar as angústias diárias tocando imaginariamente as teclas de um piano bordadas em tecido, ela deseja ser verdadeiramente amada. O cenário rude, desolado, reflete metaforicamente a negação da sensibilidade, um berço de homens estúpidos que cospem suas mulheres de suas vidas, ao primeiro sinal de problema, figuras vistas como minimamente humanas, dispensáveis. Ao se dispor à difícil tarefa de conduzir três mulheres que perderam a sanidade, por conseguinte, impiedosamente despejadas por seus maridos, até uma cidade onde irão receber tratamento, Mary ousa vestir o manto de sacrifício por uma causa cujo escopo sequer poderia compreender. A alegoria é potencializada pela brutalidade que Tommy Lee Jones, enquanto diretor, não se intimida de mostrar. Ela, por outro lado, havia demonstrado na cena em que consegue estabelecer conexão emocional com uma das vítimas, após gentilmente abraçar a ilusão que a mantém viva, a disposição libertária para a mudança de pensamento. Ela, a mulher na sociedade, está aberta à discussão, mais preparada que qualquer homem. Ele, o machista impotente, segue surdo aos pedidos de respeito e igualdade. O faroeste é utilizado então como veículo estético para uma trama que nos conduz à gradual percepção desse homem, o Adão desencantado, que aprende a conviver com o feminino...”
2 - Divertida Mente (Inside Out), de Pete Docter e Ronnie Del Carmen
“... Quando a mãe prende o cabelo, atitude que representa o resgate da diversão, o pai interrompe para atender ao telefone, a negação da pureza, o abraço no capitalismo, a ambição por ascender no emprego, o gradativo afastamento da família. O momento, comum em nossa existência, onde os pais passam a deixar a responsabilidade da criação dos filhos para a televisão, babás, o elemento externo. A menina não compreende nada disso, ela apenas sente falta, sofre em silêncio. A mente, representada pelos agentes de cada sentimento, começa a entender que a felicidade, as esferas douradas, vão minguando. A mensagem mais bonita, aquela que ficará na memória semanas após a sessão, fala diretamente a um dos problemas mais sérios na sociedade moderna, ocasionado pela imaturidade emocional: a incapacidade de lidar com os altos e baixos da vida. A obsessão equivocada pela imagem vencedora, uma falsa felicidade meticulosamente trabalhada para impressionar outrem nas redes sociais, mascarando a natureza humana com um verniz frágil. E essa recusa em lidar com a imprevisibilidade das ondas desse oceano acaba ocasionando o extremo oposto, a mais profunda depressão. A dor, a derrota, tem papel fundamental, uma função importante, como na cena em que a Tristeza resolve um problema apenas por ter escutado o desabafo melancólico do amigo imaginário. A Alegria, por si só, não consegue se colocar na pele de quem sofre, ela foge, vira a cara. A maturidade emocional só é alcançada quando a pessoa aprende a equilibrar esses impulsos naturais...”
3 - Birdman, de Alejandro González Iñárritu
“... O roteiro inteligentemente critica
a indústria, apontando o dedo para algo que estamos presenciando, atores
veteranos que estão evitando o risco, retornando aos seus papéis populares
clássicos, ao invés de estarem experimentando novas emoções, reinventando-se
sem a preocupação com o aplauso do público, o que é essencial para um
ator. Como é explicitado nos intertítulos que iniciam a obra, tudo se
resume à necessidade de se sentir querido. Esse é o real vilão da trama, o
Coringa do Birdman: o desejo de se sentir amado, não somente pelo público, mas
também pela filha problemática, vivida por Emma Stone, alguém cujo
relacionamento foi prejudicado pela rotina profissional que ele escolheu. A
busca pelo carinho dos outros, o reconhecimento artístico, que acabou
afastando-o daqueles mais próximos. A crítica à sociedade, um ambiente que o protagonista não consegue
aceitar, pode ser simbolizada na excelente cena que acompanha sua corrida,
trajando apenas uma cueca, em plena Broadway. O evento bizarramente onírico, o
que realça o contexto metafórico, conduz o personagem a descobrir que ele pode
se esforçar em sua Arte por toda sua vida, arriscar nas mais diversas
interpretações, que nada disso irá se igualar ao sucesso popular obtido pelos
incríveis acessos nas redes sociais advindos de uma tolice qualquer. Vivemos em
um período onde a vergonha alheia recebe atenção no horário nobre da televisão,
enquanto os verdadeiros artistas morrem esquecidos. Essa melancólica
constatação potencializa ainda mais o conflito interno do protagonista...”
4 - O Abutre (Nightcrawler), de Dan Gilroy
“... A melhor sequência, dentre várias que poderia destacar,
representa a esperteza do roteiro em inserir o espectador na pungente crítica
que direciona ao jornalismo baixo e imediatista que é realizado nos dias de
hoje. Como eu sempre digo: a sociedade não cria os abutres, ela os alimenta. O momento mais inteligente ocorre quando
ele adentra o quarto do bebê. Nós não sabemos absolutamente nada sobre aquela
família, apenas visualizamos um quarto decorado de forma infantil, com um berço
posicionado no centro. É quando o roteiro implacavelmente nos insere na
crítica. O personagem se aproxima lentamente do berço, fazendo com que nós
compartilhemos o mesmo frenesi daqueles que perdem vários minutos na frente da
televisão acompanhando uma perseguição de carro ou um sequestro em tempo real.
Nós, os abutres que somos alimentados por esse jornalismo cretino. Nós que não
conseguimos desviar os olhos, numa mistura de sentimentos humanamente ambíguos,
por um lado, desejando que o bandido seja preso logo, por outro, desejando que
ele consiga driblar a polícia por mais tempo, para que aquela emoção da caçada
nos tire de nosso cotidiano apático. A intenção é nos
estimular a repulsa por algo que não vimos. O espectador comenta com sua
companhia na sessão: “Nossa, ele filmou até o bebê morto, que monstro
insensível”. Alguns minutos depois, como que com um sorriso sarcástico de quem
provou sua tese com louvor, o filme revela que não havia bebê algum no berço,
aquele quarto, provavelmente, estava sendo preparado para uma criança que ainda
não nasceu. E, mais além, descobrimos que a mansão era de traficantes de
drogas. Todo o investimento emocional do espectador, tanto o real, quanto o do
noticiário na obra, foi manipulado pela irresponsável estação de televisão,
que, numa atitude coerente à podridão de todos os atos anteriores, decide se
negar a evidenciar essa conclusão. O mais importante para um jornalismo
imediatista é que o público, resumido a números numa conta bancária, se
mantenha na frente da televisão, ou folheando as páginas do jornal, pelo maior
tempo possível. Contar a eles que a pobre família vítima dos assassinos era, na
realidade, um bando de criminosos, iria afastar o público. Quando o jornalismo
perde o senso de moral, ele se torna uma busca desesperada por manchetes
sensacionalistas, simplificando qualquer discurso a imagens de impacto, visando
o choque, nunca a reflexão...”
5 - Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road), de George Miller
“... O toque mais interessante foi transformar o Max de Tom Hardy em um coadjuvante de luxo, inteligentemente subvertendo, em tom claro de crítica, as funções usuais dos personagens em uma obra do gênero. Ao quebrar as expectativas do público, reservando para o herói todos os clichês narrativos que são normalmente relegados às mulheres, que podem ser resumidos na cena em que o ombro de Max serve de apoio para a mira da protagonista, vivida por Charlize Theron, Miller evidencia o desleixo da indústria na criação de heroínas fortes. As sequências longas de ação entorpecem os sentidos, não dão trégua, é uma aula de eficiência, sem o artifício comum de confundir o público, como forma de mascarar a pouca habilidade daquele que está no comando. A câmera aqui age como se estivesse filmando as danças de Fred Astaire, ela apenas capta o desenvolvimento natural dos conflitos, deixando para a montagem o trabalho de impor o ritmo e o tom. Nos aspectos técnicos, o filme é impecável. A fotografia de John Seale, coerente à ousadia narrativa já citada, uma atitude que respeita o cinema de guerrilha que foi o clássico australiano, rejeita a paleta visual óbvia de poucas cores, moldura de dez entre dez filmes ambientados em cenários pós-apocalípticos. Ao final, o que se mantém na mente de quem assiste é a postura desafiadora, soco no estômago, típica de filme B, um charme raro dentre tantas obras formulaicas do gênero que a indústria despeja anualmente. Não reinventa a roda, e nem precisaria, mas, sem dúvida, o septuagenário diretor deixou muito cineasta garotão, esses que são fabricados pelo hype de Hollywood, com inveja...”
6 - Capital Humano (Il Capitale Humano), de Paolo Virzì
“... A trama, com sua impecável estrutura em quatro
capítulos, incita uma reflexão sobre a queda do império humano, partindo de um
evento simples, o atropelamento fatal de um ciclista que não recebeu socorro.
Ao costurar as narrativas de seus personagens envolvidos de alguma forma no
acidente, o roteiro provoca questionamentos essenciais, críticas severas a um
modo de vida cada vez mais egoísta, onde a capacidade de empatia se curva
perante a necessidade de se obter vantagens. No primeiro capítulo
observamos a rotina de Dino, uma espécie de variação do Kringelein de “Grande
Hotel”, alguém disposto a tudo para viver “a vida real” na alta sociedade, um
verme que vibra por saber que foi convidado para uma mesa elegante em uma
festa, já que anseia por aquele refinamento ilusório, ainda que, como é
evidenciado em uma cena breve, não entenda a diferença entre diversas grifes de
água. O texto é claro, a crítica se esconde por trás da gag. Coloque um tecido
simples em uma vitrine de uma loja de grife respeitada, que, sem pestanejar, a
clientela irá gastar o triplo do valor real do produto, apenas para garantir
seu conforto existencial, a satisfação de um status tolo que mascara, por pouco
tempo, o complexo de inferioridade...”
7 - O Conto da Princesa Kaguya (Kaguya-hime no Monogatari), de Isao Takahata
“... A beleza não reside na trama, sem novidade alguma para aqueles que já conhecem a história, mas, sim, na forma como ela é contada, utilizando uma técnica de animação que prima pela simplicidade, inspirada na pintura japonesa feita com tinta de caligrafia, o Sumi-ê, que leva em consideração o sentimento do artista em sua execução, tentando deixar transparecer a alma e a harmonia interna, elementos mais importantes do que o tema que o artista está trabalhando. Como forma de perceber a riqueza desse estilo, analise como o traço é classicamente bonito e suave, por exemplo, nas cenas em que vemos a bebê adorável aprendendo a andar, contrastando brutalmente com o traço borrado nas cenas em que a protagonista está emocionalmente perturbada. E, inserido no contexto da narrativa, vale destacar a crítica que é feita à submissão feminina na sociedade, a pressão que a jovem sofre dos pais, que entendem o ritual do casamento como a óbvia definição da felicidade, quando, na realidade, ela quer apenas conviver com seus amigos de infância, correndo descalça pelo campo, sorrindo e chorando sempre que esses sentimentos brotarem espontaneamente. As regras dizem que, no intuito de conquistar seus ricos pretendentes, ela deve aprender a conter todos os rompantes de emoção. Quando alguém aprende a andar imitando os movimentos das rãs, tendo a natureza, com sua maravilhosa imprevisibilidade, como modelo na vida, acaba se tornando impossível a aceitação conformista de qualquer ritual criado e imposto pelos humanos...”
8 - La Sapienza, de Eugène Green
“... A trama aborda um arquiteto de meia-idade, vivido por Fabrizio Rongione, que se descobre intensamente frustrado ao perceber que desperdiçava seu talento em construções padronizadas, edificações que serviam apenas a uma funcionalidade que não dependia de qualquer traço de personalidade do seu criador. Ele decide então embarcar em uma longa jornada para reviver os passos de seu ídolo na profissão, um mestre barroco romano do século dezessete. A bela alegoria trata verdadeiramente da erudita viagem interna de alguém que deseja se reencontrar com sua paixão inicial pelo trabalho que realiza, implacavelmente se desintoxicando da medíocre geografia urbana globalizada. O segundo ato ganha pontos com a entrada do jovem estudante, vivido por Ludovico Succio, completamente apaixonado pelo tema, muito esforçado, mas sem o aprendizado técnico, um reflexo do arquiteto de outrora no espelho da vida. Inicialmente pouco disposto a servir de tutor, mas eventualmente cativado pelo amor do discípulo pela arquitetura, o homem terá uma chance perfeita de recuperar o entusiasmo perdido, descobrindo ao constatar no horizonte crepuscular de sua vida que a real sabedoria, leitmotiv expresso já no título, reside na dedicada preparação para esse utópico e subjetivo conceito. O sonho que motiva o esforço, elemento que nunca deve se perder nas curvas frustrantes da vida...”
9 - O Julgamento de Viviane Amsalem (Gett), de Ronit e Shlomi
Elkabetz
“... Como roteirista, eu sempre acreditei que o melhor
caminho criativo é a restrição do ambiente em que ocorrem os conflitos dos
personagens. E o trunfo dessa produção israelense reside na subversão do
cenário usual dos dramas de tribunais, trabalhando com eficiência a claustrofobia
de forma interna, palpável no desespero da esposa, já que o elemento externo, a
sala dos juízes rabinos, iluminada e em tons brancos, não poderia aparentar ser
mais confortável e harmoniosa. Os alívios cômicos brotam de forma
inteligente no roteiro, com a função de salientar o absurdo da situação, a
estupidez do machismo dominante em quase todas as ideologias religiosas. Em uma
das cenas, o próprio irmão da personagem, ao testemunhar em sua defesa, inicia
dizendo que, por mais que a ame, o marido dela canta tão bonito na sinagoga,
parece até um pássaro, um homem perfeito. Ele complementa, para o choque dela,
que já está vivenciando esse pesadelo burocrático há anos: “Uma mulher precisa
ter limites”. As leis são criadas pelos homens, que se protegem em sua
estupidez e insegurança. O marido, uma amarga incógnita, não se preocupa em
fornecer sequer um argumento para sua insistência no matrimônio, chegando ao
ponto de, numa demonstração de total consciência do favoritismo da justiça,
simplesmente se ausentar dos apontamentos no julgamento. Esse julgamento
patriarcal que abusa de conveniências, o que se escora no subjetivo elemento
divino, é um dos alvos da trama, que expõe o ritual desumano de divórcio
naquela sociedade, encabeçado por aqueles que acreditam deter uma autoridade
superior, sempre posicionando a mulher abaixo de um mínimo nível de dignidade,
precisando do consentimento do marido para obter a liberdade. Um dos muitos
acertos da produção é nunca questionar esses procedimentos, estimulando a visão
crítica que nasce da simples constatação, às claras, da tremendamente injusta
escalada de absurdos inerentes ao fundamentalismo religioso...”
10 - A Festa de Despedida (Mita Tova), de Tal Granit e Sharon
Maymon
“... O que não me sai da cabeça após a sessão, dentre todas
as emoções despertadas por esse lindo filme israelense, é a ideia de um homem
que se predispõe a aliviar o sofrimento de estranhos, enquanto parece ignorar a
gradativa perda da sanidade de sua amada esposa. O conceito de que ele,
confrontando as leis naturais com sua máquina de eutanásia, está operando uma
fuga da sua própria realidade, reveste a trama com uma camada extra de
complexidade psicológica. Os diretores Tal Granit e Sharon Maymon, com
tremenda sensibilidade, comandam uma aula de construção de personagens, sem
caricaturas, elementos que agem de forma orgânica e inesperada, num equilíbrio
perfeito de humor e drama, vale salientar, em doses muito corajosas. O roteiro,
ao compor arcos de personagens essencialmente inconstantes, realistas, entrega
para o público uma grande variação de argumentos divergentes. O foco não é a
morte, ou como devemos lidar com o sofrimento, mas, sim, com a importância de
saber viver com qualidade o pouco tempo que compartilhamos nessa incrível
experiência. Cenas como a da reunião nudista, reforçam o valor do
companheirismo entre soldados cansados da longa batalha em uma trincheira que
será invadida, em breve, pelo exército inimigo. Uma resposta inteligente e
adulta para outros projetos mais celebrados, como “Para Sempre Alice”, que
disfarçam o tom exploitation da miséria, o que seria o Datena para o
jornalismo, com uma abordagem que se leva a sério demais, o que desumaniza os
personagens. É, com sua humanidade tocante, um dos filmes mais lindos do ano...”
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