Após um longo período sabático, em que cheguei a ficar
enjoado de tanto assistir o Lee Van Cleef atirando, retorno com o resultado do “Desafio
Cultural – Woody Allen”, esse inquestionável marco na história das redes sociais.
A ideia do desafio era criar algumas linhas (ou algo mais elaborado) cômicas utilizando
pelo menos dois personagens que eu havia criado para o especial, citando em
algum momento o nome do homenageado. Minha conta de e-mail não resistiu à
inundação de participantes, tive a constatação prática do quanto o brasileiro
realmente ama ser instigado a escrever. Foi um trabalho hercúleo decidir entre
o calhamaço de folhas impressas, mas o seleto júri composto apenas por mim
mesmo chegou a uma decisão...
E a vencedora foi: Adriana Garcia. Ela já recebeu em sua
casa, com todas as despesas pagas, o DVD de “Sonhos de Um Sedutor” (numa parceria com a distribuidora "Classicline") e meu livro “Devo
Tudo ao Cinema”. Irei reproduzir agora um trecho de seu texto:
“No texto do Octavio (em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa) não
há a descrição dos personagens. Sempre que leio, imagino como são. Minha Annie
Hall (ex-namorada) e meu Alvy Singer (escritor) seriam interpretados por Audrey
Hepburn e William Holden, repetindo a dupla de Quando Paris Alucina, mas com direção
de Woody Allen. Atemporal. Dia seguinte, no mesmo cenário que se repete todas
as noites, quarto do escritor desarrumado, mesa do computador com lixeira
repleta de papéis, cama não desfeita. O escritor levanta-se, olha desanimado para
a plateia, hoje nem seus pais estão presentes, aniversário de um primo
distante. Observa um senhor cochilando na última fila, um casal com cara de
tédio, mais três ou quatro pessoas.
Cansado daquilo tudo, de repente, como em um filme de Woody
Allen, o escritor deixa o palco, sai do teatro sob o olhar atônito dos poucos
espectadores, ganha as ruas. Não está em São Paulo, mas em Nova York, na
Broadway. Caminha pelas ruas, sente frio, está só de manga de camisa. Mexe nos
bolsos à procura de algum dinheiro. Personagem não carrega dinheiro. Acha umas
moedas que devem ser do ator, pensa. Precisa tomar alguma coisa, sente vontade
de fumar. Entra em um bar, tocam jazz. Joga as moedas no balcão. Agora são
dólares, não reais. Pede um brandy para se aquecer e um maço de cigarros. Fica
um pouco ali. Quem sabe aquela atmosfera não ajude a aumentar sua criatividade
como escritor. Olha para um canto e parece ver sua ex-namorada...”.
Querida Adriana, infelizmente, por razões orçamentárias, não
pude contratar o William Holden e a Audrey Hepburn, mas creio que ficará feliz
ao saber que conseguimos dois sósias fantásticos. Abrindo um parêntese, acho
fantástica a capacidade de emular fisicamente outra pessoa. Exatamente o que
fazia Leonard Zelig, mas sobre isso irei tratar mais adiante. Já estão até
emulando Machado de Assis, mas inexplicavelmente com um vocabulário muito
pobre. Fico imaginando um jovem folheando “Dom Casmurro” e tentando entender
qual o diferencial desse escritor entre tantos, já que a mágica estava
exatamente na elaborada construção de frases. Sósia é um negócio complicado,
quando modifica muito o trabalho do homenageado.
O escritor imaginado pela Adriana manda recado (psicografado
por mim) dizendo que está tremendamente feliz em Nova York, escutando Jazz e
contando dólares. A mulher que ele acreditava ser sua ex-namorada, na realidade,
se tratava de uma projeção holográfica. Essa moda está pegando, inclusive, até
mesmo o Vaticano já estaria mostrando interesse nesse recurso para organizar
uma nova aparição da Virgem, que se cansou de bater ponto em vidros de janelas
na América Latina. Como é usual, o evento irá ocorrer no interior profundo de
alguma vila inóspita esquecida pelo mundo. Qual seria a graça de surpreender o
povo da cidade grande? Mantendo-me no assunto, o Papa acaba de afirmar que o
celibato clerical não era pra ter sido levado tão a sério todo esse tempo. Num
futuro próximo, ele pretende aparecer de bermudas e cantando no videokê um
clássico de Guilherme Arantes. O mundo irá aplaudir cegamente, como sempre.
Eu estou terminando de gravar em estúdio meu próximo álbum sacro,
intitulado: “Dogmas, pra quê?”. Na faixa-título, um Hip-Hop, eu faço um dueto
bacana com o MC Cutuca, homem de Deus e aviãozinho do tráfico de drogas. Como
sacerdote moderninho, eu não posso perder o timing dessas revoluções que o Papa
está conduzindo na igreja. Quero aproveitar e elogiar o escriba pelo retorno ao
especial, pois estava sentindo falta de divulgar meu trabalho.
ASS: PADRE CARMELITO,
O BONDOSO.
Zelig (1983)
Em sua genialidade, Woody Allen estrutura esse filme como um
documentário (repetindo o estilo de “Um Assaltante bem Trapalhão”) sobre
Leonard Zelig, um (literalmente) camaleão social da década de vinte. Sem nenhum
esforço, ele é capaz de adotar características físicas e mentais de qualquer
pessoa com quem se relacionar. Ao lado de franceses, ele conversa fluentemente
em francês, com direito até ao clássico bigodinho fino. Mas o que realmente
fascina no roteiro é a forma como o personagem se adapta socialmente, como
quando discute jargões de medicina ao lado de doutores, com total conhecimento
sobre a área.
A crítica é certeira, mostrando como as pessoas se moldam,
até o caráter, no intuito de agradar e serem aceitas. E, claro, dignitários com
os mais diversos interesses passam a utilizar suas palavras como alegoria para
suas atividades. Zelig acaba se tornando na sociedade uma espécie de “Chance”,
o jardineiro interpretado por Peter Sellers em “Muito Além do Jardim”. Mia
Farrow vive uma doce doutora que acredita que o fenômeno seja psicológico, uma
manifestação de alguém que não consegue se expressar, levando o roteiro a
abordar também o machismo da época, mostrando a reação agressiva dos médicos a
essa nova hipótese. O processo de tratamento é tão eficiente, que ele passa a
conseguir até discordar de outras opiniões, algo impensável em sua realidade de
outrora. Quantas pessoas assim você conhece em sua vida?