Hoje é o aniversário do meu primeiro ídolo na Sétima Arte,
aquele que me fez ver ainda criança que eu não estava sozinho no mundo. Eu era
muito pequeno para entender plenamente suas obras, mas admirava sua história de
vida. Um francês que amava tanto o cinema, que decidiu dirigir obras
inesquecíveis além de escrever sobre o tema. François Truffaut não pensava como
a maioria dos realizadores de sua época, seus objetivos eram puramente
passionais e isso se reflete em sua obra.
Quando criança sentia-se rejeitado, pois não havia conhecido
seu pai e havia sido largado por sua mãe à própria sorte, tendo sido
criado por seus avós maternos. Sua revolta era latente e o garoto a
expressava através de atos de rebeldia e delinquência. Sua única felicidade era
o cinema e a fuga da realidade que o mesmo proporcionava. Nele tornava-se o
herói amado por todos, sensação que durava duas horas e era seguida pelo
regresso amargo ao mundo real ao acender das luzes. Nas frias madrugadas,
corria até os cinemas de rua e roubava as fotos e cartazes. Enquanto cometia
esses pequenos furtos e transgredia as regras exteriormente, sua paixão
interior o instruiu a organizar em sua adolescência um cineclube chamado “Cercle
Cinémane”, que competia diretamente com um projeto similar do renomado crítico
de cinema André Bazin. Com o tempo, o jovem foi vendo seu sonho se esvair, com
pouquíssimos recursos financeiros e seu projeto à beira da falência. O
experiente crítico ficou comovido pela paixão do jovem cinéfilo e tornou-se seu
tutor. A partir deste momento pivotal, Truffaut começou a aprender mais sobre o
tema, assistindo cerca de três filmes por dia e devorando três livros por
semana, com toda sua pouca verba indo diretamente para custear sua paixão
cinéfila. Seu pai adotivo, preocupado com o futuro instável que o jovem perseguia,
internou-o num reformatório juvenil. Novamente com a ajuda de Bazin, o garoto
saiu de lá e foi colocado em um emprego formal no cineclube do amigo, como seu
secretário pessoal. O crítico instruía o jovem com o melhor que o cinema
poderia oferecer, introduzindo-o em um seleto grupo de estudantes composto por
gênios como Orson Welles e Roberto Rossellini. Com o excelente “A Regra do
Jogo” de Jean Renoir, escreveu sua primeira crítica. Devido ao seu sucesso, foi
contratado como jornalista pela revista “Elle”, porém continuava a contribuir
com textos para outras publicações como freelancer.
Na década de cinquenta, com a criação da revista “Cahiers du
Cinéma” fundada por Bazin e outros colegas, o jovem começou a ser notado
por todos em seu meio após escrever um corajoso artigo polemizando sobre a
tradição de qualidade do cinema francês, o que ajudou para que a revista se
tornasse a melhor e mais respeitada entre os cinéfilos franceses. Para o jovem,
o filme era uma obra autoral, representando diretamente o pensamento de seu
diretor. Idolatrava Alfred Hitchcock, o que o ajudou a conduzir algumas
entrevistas com o próprio, normalmente avesso a esse tipo de confronto. Suas
ideias levaram ao nascimento da “Nouvelle Vague”, uma geração de cineastas
autorais que, com pouquíssima verba e muita criatividade, iriam conduzir o
cinema de seu país ao reconhecimento mundial, renovando nesse processo a
estética da Arte pelo mundo. Ele foi mais além e provou que um crítico de
cinema poderia criar uma obra autoral de grande qualidade, realizando em 1959
sua obra-prima “Os Incompreendidos” (Les Quatre Cents Coups), onde criava um
retrato autobiográfico sobre sua infância e pré-adolescência conturbada. O
filme lhe concedeu o prêmio de melhor diretor em Cannes e foi indicado à Palma
de Ouro. Seguiram-se vários sucessos, entre eles alguns de meus favoritos como
“Jules e Jim”, onde iniciou sua relação amorosa com a atriz principal Jeanne
Moreau (mesmo estando ambos casados), “A Noite Americana” (sua sensacional
declaração de amor ao cinema), “Fahrenheit 451”, baseado na obra do mestre da
ficção científica Ray Bradbury (narrando um futuro pouco promissor onde os
livros foram banidos em uma sociedade fria e totalitária) e o subestimado “O
Quarto Verde”, que considero sua obra mais sensível e arriscada. Na década de
setenta, recebeu um convite do fã americano Steven Spielberg e atuou em
“Contatos Imediatos de Terceiro Grau”. Alguns anos depois, descobriu ser vítima
de um câncer no cérebro e, antes de conseguir finalizar sua autobiografia,
faleceu em 21 de Outubro de 1984, legando para a maior paixão de sua vida um
futuro muito melhor do que quando ele havia iniciado.
Sua obra permanece viva e influente, pois nascia de um
interesse muito maior que o imediatista sucesso financeiro ou realização profissional. Seus
filmes eram extensões de seu trabalho como crítico, devotadas cartas de amor em
celuloide endereçadas à Sétima Arte.
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