sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

"O Discreto Charme da Burguesia", de Luis Buñuel


O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie – 1972)
A sociedade é controlada diariamente e não percebe que o titereiro muitas vezes está mais próximo do que se imagina, normalmente fazendo-se notado no reflexo de um espelho. Utilizando um exemplo muito moderno, notemos a reclamação que é feita sobre a qualidade da programação televisiva, do entretenimento que nos é oferecido: os programas de humor são ruins, o jornalismo está sensacionalista e a música é simplista. Voltemos aos anos quarenta, onde o rádio era a principal fonte de entretenimento. Nos Estados Unidos, em 1949, uma menina de três anos chamada Kathy Fiscus caiu em um poço descampado em um subúrbio de Los Angeles. Durante vários dias, os boletins da rádio hipnotizavam o público americano, que acompanhava apreensivo as tentativas de resgate (evento que inspirou o filme de Billy Wilder: “A Montanha dos Sete Abutres”). Os noticiários jornalísticos da rádio eram tão sensacionalistas quanto os programas policiais da TV moderna (enquanto hoje a violência é visual, outrora vivia na imaginação dos ouvintes). Pegue arquivos de programas de humor da época, sem o elemento passional da nostalgia, e perceberá que poucos eram realmente bons. Havia música de qualidade e músicas tolas (como hoje), com letras simplistas e harmonias fracas. Porém tendemos a sempre considerar o antigo melhor, mais refinado. Woody Allen trabalhou muito bem com esta desconstrução da nostalgia em seu ótimo “Meia-Noite em Paris”. O que leva o ser humano a agir assim?

O espanhol Luis Buñuel responde a esta importante questão em várias obras de sua filmografia. Tomem como exemplo a subtrama do Monsenhor (vivido por Julien Bertheau), que recebe excessiva atenção e zelo de seus anfitriões quando está utilizando seu traje eclesiástico, porém é expulso como um cão sarnento da casa, quando está com a simples vestimenta de um jardineiro. A sociedade vive de “aparência”, do índio ao mais rico empresário, seguindo rituais diários que criam uma falsa impressão de segurança e conforto. As mesmas pessoas que reclamam da violência sensacionalista na televisão, são aquelas que correm para suas janelas quando escutam o som de uma briga. Os mesmos que, em público, passam uma imagem de corretos e reclamam da corrupção na política, são aqueles que aproveitam na malandragem falhas técnicas em sites, comprando “ouro” pelo valor de um “chumaço de algodão”, ainda se achando no direito de esbravejar quando as compras são canceladas. Evitam assumir que são, em essência, animalescos seres em evolução constante, perdendo horas discutindo se irão beber vinho tinto ou seco no jantar. O mesmo Monsenhor retorna mais tarde em outra cena que simboliza esta crítica do cineasta: convocado por uma simples camponesa a conceder uma última confissão a um moribundo, que descobre surpreso ter sido o homem que no passado havia envenenado seus pais. O Monsenhor mantém o ritual, sem expressar qualquer reação, concedendo a absolvição. Alguns segundos depois, com grande dignidade, pega um rifle que estava próximo e atira no homem, sem demonstrar remorso. Atitudes naturais do ser humano, como a violência e o sexo (dois amantes que ao descobrirem que seus convidados chegaram, fogem pela janela para realizarem o ato no jardim), são mascarados por esses rituais.

Os personagens estão sempre caminhando em uma estrada, onde assim como o jantar que nunca conseguem terminar (imprevistos cada vez mais surreais os impedem), não parece ter um destino certo, como a própria vida. A jornada é árdua e nada glamourosa (suor, cansaço físico, roupas amassadas, paradas para amarrar os cadarços dos sapatos, cabelos desgrenhados ao vento etc.), contrastando com os momentos assépticos vividos pelos personagens em seus rituais diários. Sobram críticas eficientes à forma como os que vivem de aparência segregam aqueles que não “sentam no colo do ventríloquo”, como quando seis burgueses humilham secretamente um motorista particular, após perceberem que ele não demonstra a mesma “elegância” ao tomar uma taça de vinho (tudo havia sido um experimento planejado, como se quisessem apenas confirmar uma teoria e houvessem utilizado o simplório homem como cobaia). A obra guarda muitas outras surpresas, sonhos dentro de sonhos, e excelentes questionamentos, que deixarei para o leitor descobrir por si só.

O controle está em todos os lugares, no “sentar e levantar” das missas católicas (as religiões confortam exatamente por sua estabilidade ritualística, que se traduz em segurança), na ordem de colheres a serem utilizadas em um jantar refinado, no ato diário de procurar fazer parte de algo, ser considerado “normal”. Tudo aquilo que é alvo de reclamação da sociedade é apenas o grito assustado dela ao ver-se no reflexo do “espelho”. Este é o discreto charme hipócrita da sociedade.

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