O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la
Bourgeoisie – 1972)
A sociedade é controlada diariamente e não percebe que o
titereiro muitas vezes está mais próximo do que se imagina, normalmente
fazendo-se notado no reflexo de um espelho. Utilizando um exemplo muito
moderno, notemos a reclamação que é feita sobre a qualidade da programação
televisiva, do entretenimento que nos é oferecido: os programas de humor são
ruins, o jornalismo está sensacionalista e a música é simplista. Voltemos aos
anos quarenta, onde o rádio era a principal fonte de entretenimento. Nos
Estados Unidos, em 1949, uma menina de três anos chamada Kathy Fiscus caiu em
um poço descampado em um subúrbio de Los Angeles. Durante vários dias, os
boletins da rádio hipnotizavam o público americano, que acompanhava apreensivo
as tentativas de resgate (evento que inspirou o filme de Billy
Wilder: “A Montanha dos Sete Abutres”). Os noticiários jornalísticos da rádio
eram tão sensacionalistas quanto os programas policiais da TV moderna (enquanto
hoje a violência é visual, outrora vivia na imaginação dos ouvintes). Pegue
arquivos de programas de humor da época, sem o elemento passional da nostalgia, e perceberá que poucos eram realmente bons. Havia música de qualidade e músicas
tolas (como hoje), com letras simplistas e harmonias fracas. Porém tendemos
a sempre considerar o antigo melhor, mais refinado. Woody Allen trabalhou muito
bem com esta desconstrução da nostalgia em seu ótimo “Meia-Noite em Paris”. O
que leva o ser humano a agir assim?
O espanhol Luis Buñuel responde a esta importante questão em
várias obras de sua filmografia. Tomem como exemplo a subtrama do Monsenhor (vivido
por Julien Bertheau), que recebe excessiva atenção e zelo de seus anfitriões
quando está utilizando seu traje eclesiástico, porém é expulso como um cão
sarnento da casa, quando está com a simples vestimenta de um jardineiro. A
sociedade vive de “aparência”, do índio ao mais rico empresário, seguindo
rituais diários que criam uma falsa impressão de segurança e conforto. As
mesmas pessoas que reclamam da violência sensacionalista na televisão, são
aquelas que correm para suas janelas quando escutam o som de uma briga. Os
mesmos que, em público, passam uma imagem de corretos e reclamam da corrupção na
política, são aqueles que aproveitam na malandragem falhas técnicas em sites,
comprando “ouro” pelo valor de um “chumaço de algodão”, ainda se achando no
direito de esbravejar quando as compras são canceladas. Evitam assumir que
são, em essência, animalescos seres em evolução constante, perdendo horas
discutindo se irão beber vinho tinto ou seco no jantar. O mesmo Monsenhor
retorna mais tarde em outra cena que simboliza esta crítica do cineasta:
convocado por uma simples camponesa a conceder uma última confissão a um
moribundo, que descobre surpreso ter sido o homem que no passado havia
envenenado seus pais. O Monsenhor mantém o ritual, sem expressar qualquer
reação, concedendo a absolvição. Alguns segundos depois, com grande dignidade, pega um rifle que estava próximo e atira no homem, sem demonstrar remorso.
Atitudes naturais do ser humano, como a violência e o sexo (dois amantes que ao
descobrirem que seus convidados chegaram, fogem pela janela para realizarem o
ato no jardim), são mascarados por esses rituais.
Os personagens estão sempre caminhando em uma estrada, onde
assim como o jantar que nunca conseguem terminar (imprevistos cada vez mais
surreais os impedem), não parece ter um destino certo, como a própria vida. A jornada
é árdua e nada glamourosa (suor, cansaço físico, roupas amassadas, paradas para
amarrar os cadarços dos sapatos, cabelos desgrenhados ao vento etc.),
contrastando com os momentos assépticos vividos pelos personagens em seus
rituais diários. Sobram críticas eficientes à forma como os que vivem de
aparência segregam aqueles que não “sentam no colo do ventríloquo”, como quando
seis burgueses humilham secretamente um motorista particular, após perceberem
que ele não demonstra a mesma “elegância” ao tomar uma taça de vinho (tudo
havia sido um experimento planejado, como se quisessem apenas confirmar uma
teoria e houvessem utilizado o simplório homem como cobaia). A obra guarda
muitas outras surpresas, sonhos dentro de sonhos, e excelentes questionamentos, que
deixarei para o leitor descobrir por si só.
O controle está em todos os lugares, no “sentar e levantar”
das missas católicas (as religiões confortam exatamente por sua estabilidade
ritualística, que se traduz em segurança), na ordem de colheres a serem
utilizadas em um jantar refinado, no ato diário de procurar fazer parte de
algo, ser considerado “normal”. Tudo aquilo que é alvo de reclamação da
sociedade é apenas o grito assustado dela ao ver-se no reflexo do “espelho”.
Este é o discreto charme hipócrita da sociedade.
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