Inverno de Sangue em Veneza (Don't Look Now – 1973)
Essa obra-prima é a vítima perfeita daqueles que buscam
saciar suas altas expectativas, após terem lido artigos que a exaltam em vários
aspectos. Estão fadados à frustração, já que o filme ignora qualquer clichê do
gênero, aqueles elementos que inconscientemente o público aguarda e sente
prazer em antecipar. É comum o espectador somente captar a essência da trama em
uma revisão. Você percebe estar inserido em um universo com regras novas, com
sua própria definição de tempo e espaço, um terreno inexplorado. E como tememos
tudo o que desconhecemos, não demora até que sintamos arrepios com tomadas
aparentemente inofensivas, como uma caminhada solitária pelos corredores
estreitos de Veneza. A direção refinada de Nicolas Roeg utiliza símbolos
visuais recorrentes como pistas de um enigma, formando um caleidoscópio onírico
que expande e enriquece o material original, um dos melhores contos de Daphne
Du Maurier.
“Como substituir a vida de uma amada criança perdida, por um
sonho?”
Esta frase, dita por um médico no conto, estabelece o tom
encontrado pelos roteiristas Allan Scott e Chris Bryant no trabalho de
adaptação. A meningite que tira a vida da pequena Christine, substituída
brilhantemente pelo afogamento, colocando um peso ainda maior nos ombros dos
pais, uma profunda culpa por terem deixado ela sozinha perto do lago. Não
existe redenção no ato de aguardar que um próximo nascimento, um sonho, trará
substituição àquele filho que morreu. O horror dessa culpa, que no conto se
dilui em um longo detalhamento da cidade, recebe total foco no roteiro. A ideia
por trás do título, ignorada pelo filme, simboliza o conceito de que nada é o
que parece ser. Ao começar o conto com uma despretensiosa brincadeira entre o
casal, imaginando possibilidades escapistas para duas senhoras sentadas em uma
mesa próxima no restaurante, Maurier fala diretamente ao leitor: “Não olhe
agora, mas aquelas senhoras...”; como se dissesse: não comece a leitura achando
que irá conseguir decifrar rapidamente o que quero contar. John (vivido por
Donald Sutherland) representa o leitor/espectador, com seu ceticismo no
sobrenatural sendo um microcosmo para a ingenuidade do ser humano perante a
maldade. A importante subtrama do serial killer é costurada no filme de forma
lúdica, inserindo no contexto a cor vermelha que conecta ambos, o assassino e
Christine (em flashback), que utilizam vestimenta similar. Ao perseguir a
figura baixa vestindo capa de chuva vermelha, somos levados a crer que John
esteja desesperadamente buscando o perdão da filha.
“Esse quarto é nosso por agora, mas não mais que isso.
Enquanto estamos aqui, trazemos vida ao lugar. Quando nós já tivermos ido, ele não
mais existirá, irá esvair-se no anonimato.”
Essas são as palavras de Laura (vivida por Julie Christie)
no conto, expressando outro leitmotiv que o roteiro eficientemente resgata. A
polêmica e longa cena de sexo, que toma apenas uma linha descrita por Maurier,
potencializa a cumplicidade do casal. Após semanas de pura angústia e dor, bastou
um breve encontro da esposa com a senhora médium que afirma saber que a menina
está bem no plano astral, para que ela reconquiste a vontade de viver. Não é
apenas uma cena de amor, mas a celebração resultante da constatação de que
existe esperança além da finitude da existência corpórea. Laura volta a sorrir
quando descobre que sua filha não se esvaiu no anonimato ao deixar o “quarto”. E
é após essa constatação espiritualmente confortante, que a trama entrega seu
plot twist mais genial, totalmente coerente com o conceito inicial...
(O parágrafo a seguir terá spoilers)
O próprio John passa a duvidar de suas verdades absolutas,
acreditando estar vendo o espírito de sua filha correndo pelos corredores de
Veneza. Ele persegue a figura enigmática e tenta estabelecer contato. Num dos
momentos mais arrepiantes da história do gênero, descobrimos que a figura vestida
com a capa de chuva vermelha era uma idosa anã, a serial killer que estava
tirando o sono dos policiais da cidade. A excelente frase que finaliza o conto,
dita pelo moribundo John ao finalmente chocar-se com a dura realidade da vida: “Essa
é uma forma bem estúpida de morrer”. E o filme traduz bem o humor negro contido
nesse desfecho.
(Fim dos spoilers)
Nada é o que parece. Por mais que haja conforto em ilusões,
a realidade sempre encontra uma forma de se mostrar presente. É interessante
perceber uma homenagem a um match cut clássico de “Os 39 Degraus”, de
Hitchcock, na cena em que a mãe vê a filha morta nos braços do pai. E, mais
sutilmente, podemos perceber influências filosóficas que passam por Jorge Luis
Borges (referência recorrente na filmografia de Roeg) e Marcel Proust (na
utilização do vermelho como símbolo do resgate de memórias, como em “Em Busca
do Tempo Perdido”). Um detalhe pode passar despercebido para quem não leu o
conto, o momento em que as duas senhoras se encaminham para o banheiro
masculino, refletindo uma das brincadeiras do casal, que chega a se referir a
elas no conto como “dois gêmeos travestidos” (no filme não são gêmeas). Outra
sutileza trabalhada no filme é a água como símbolo recorrente. Um casal que
perde sua filha afogada, indo buscar paz de espírito em uma cidade envolta pelo
elemento que causou a morte da menina. Tudo o que o casal não quer é enxergar a
menina no reflexo da água, encarando assim a brutal realidade da perda. O
roteiro modifica o conto, intensificando imageticamente ainda mais esse
processo interno de luto.
“Inverno de Sangue em Veneza” é uma obra que somente melhora
a cada revisão.