Meanwhile (2011)
Dentre todos os jovens diretores independentes que foram
impulsionados pelo reconhecimento no Festival de Sundance no início da década
de noventa, nomes como Quentin Tarantino, Steven Soderbergh, Tom DiCillo,
Anthony Drazan, Richard Linklater, Alexandre Rockwell, Todd Haynes, Gregg
Araki, Allison Anders e Maggie Greenwald, não há criador mais curioso que Hal
Hartley. Alguns de seus colegas moldaram seus estilos ao longo do tempo na
direção de algo mais facilmente palatável para o público mainstream, decisão
comercialmente inteligente, porém, moralmente semelhante ao literário pacto
faustiano. Os chamados “filmes indie” populares hoje são, em grande parte,
projetos que seguem uma cartilha estético-narrativa limitada, uma espécie de
fábrica de cosplays de cineastas marginalizados que, por trás da fachada produzida,
escondem os fios dos titereiros engravatados.
Hartley é o que a garotada hoje em dia chamaria de “indie de
raiz”, tudo nele é genuíno. Com baixíssimo orçamento e apenas onze dias de
filmagens ele firmou seus pés no delicioso “The Unbelievable Truth”, evoluiu o
conceito em “Trust” e “Simple Men”, explorou os limites no excelente “Amateur”,
alcançou maturidade em “Henry Fool” e, quando a regra do jogo dizia que havia
chegado o momento de lucrar com sua imagem, abraçar o sistema e, de certa
forma, aceitar ser domesticado criativamente pela indústria, o nova-iorquino
atacou com sua obra tematicamente mais corajosa: “No Such Thing”. Esta conduta
artisticamente íntegra se mantém clara em seus trabalhos recentes. Audacioso,
ele financiou com a ajuda dos fãs em uma campanha no Kickstarter, “Meanwhile”, talvez
seu esforço audiovisual mais radical, filmado com uma Canon 5D DSLR e idealizado
para a tela pequena. Ao contrário dos anteriores, que essencialmente lidavam
com a subversão de convenções de variados gêneros, desta feita ele estabelece
linguagem própria, inserindo uma generosa dose de inspiração autobiográfica na
figura do renomado escritor vivido por Stephen Ellis, que se encontra com o protagonista,
o esforçado e azarado Joe (D.J. Mendel), em um bar de Manhattan para discutir
as dificuldades de se lutar por um lugar ao sol na selva de pedra. O
personagem, inspirado pelo Leopold Bloom, do “Ulisses” de James Joyce,
simboliza a natureza múltipla e complexa do ser humano, as suas várias facetas
são destrinchadas na estrutura narrativa em capítulos numerados.
Acompanhamos o desencantado homem de meia-idade em sua complicada
jornada até o escritório da produtora “Possible Films”, esperto exercício
metalinguístico, na tentativa de vender sua história e garantir mais algum
tempo de sobrevivência financeira na área. Com sua conta bancária congelada por
atraso no pagamento dos impostos, ele se agarra a alguns trocados e realiza
todo tipo de bico, cruzando no caminho com figuras tão angustiadas quanto ele,
como a melancólica mulher (Chelsea Crowe) que deseja pular de uma ponte para a
morte certa, ou a jovem (Kanstance Frakes) que desabafa seus problemas perceptivelmente
fragilizada e emoldurada pela melosa trilha sonora propositalmente manipuladora,
bruscamente interrompida pela frieza de seu interlocutor que a abandona no meio
do discurso sem cerimônia alguma. Há no ar uma opressiva sensação de desamparo,
do triste rapaz esmolando na calçada com uma placa informando sua qualificação
para trabalhar, passando pelo ilusório conforto profissional do irmão caçula (Scott
Shepherd) de Joe, executivo preso em uma rotina que já não representa nada em
sua vida, até uma amargurada ex-namorada (Christine Holt) que não conseguiu
superar o fato de que foi trocada por uma garota muito mais jovem, parece que a
sociedade cria regras com a intenção de desumanizar os indivíduos e
conscientemente apressar uma suicida corrida rumo à extinção, como a freudiana
pulsão de morte que estimula as diversas teorias de fim do mundo que pululam na
mídia com incrível frequência.
Quando é questionado no bar sobre a razão que o leva a
buscar diferentes atividades, ele defende inteligentemente que é mais difícil
abater um alvo em movimento. O ato de evitar se focar em apenas uma linha de
atuação, leitmotiv da obra, potencializa o contexto apocalíptico de extrema
injustiça em que poucos privilegiados alcançam facilmente e, muitas das vezes,
sem talento, os seus objetivos, restando as sobras para serem disputadas pela
multidão de comuns. É quando o autor, alter ego do diretor, surpreende Joe ao
afirmar que o sucesso afasta os riscos, elemento fundamental na equação
desafiadora que todo artista deve se empenhar em resolver. A felicidade, apesar
de ser difícil de acreditar, está exatamente no conflito, repousando entre
espasmos de angústia.
* Texto escrito para o catálogo da Mostra "O Cinema de Hal Hartley", com a curadoria de Leonardo Luiz Ferreira, que foi apresentada de 23 de janeiro a 04 de fevereiro de 2018, na CAIXA Cultural (RJ).
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