sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

"Meanwhile", de Hal Hartley


Meanwhile (2011)
Dentre todos os jovens diretores independentes que foram impulsionados pelo reconhecimento no Festival de Sundance no início da década de noventa, nomes como Quentin Tarantino, Steven Soderbergh, Tom DiCillo, Anthony Drazan, Richard Linklater, Alexandre Rockwell, Todd Haynes, Gregg Araki, Allison Anders e Maggie Greenwald, não há criador mais curioso que Hal Hartley. Alguns de seus colegas moldaram seus estilos ao longo do tempo na direção de algo mais facilmente palatável para o público mainstream, decisão comercialmente inteligente, porém, moralmente semelhante ao literário pacto faustiano. Os chamados “filmes indie” populares hoje são, em grande parte, projetos que seguem uma cartilha estético-narrativa limitada, uma espécie de fábrica de cosplays de cineastas marginalizados que, por trás da fachada produzida, escondem os fios dos titereiros engravatados.

Hartley é o que a garotada hoje em dia chamaria de “indie de raiz”, tudo nele é genuíno. Com baixíssimo orçamento e apenas onze dias de filmagens ele firmou seus pés no delicioso “The Unbelievable Truth”, evoluiu o conceito em “Trust” e “Simple Men”, explorou os limites no excelente “Amateur”, alcançou maturidade em “Henry Fool” e, quando a regra do jogo dizia que havia chegado o momento de lucrar com sua imagem, abraçar o sistema e, de certa forma, aceitar ser domesticado criativamente pela indústria, o nova-iorquino atacou com sua obra tematicamente mais corajosa: “No Such Thing”. Esta conduta artisticamente íntegra se mantém clara em seus trabalhos recentes. Audacioso, ele financiou com a ajuda dos fãs em uma campanha no Kickstarter, “Meanwhile”, talvez seu esforço audiovisual mais radical, filmado com uma Canon 5D DSLR e idealizado para a tela pequena. Ao contrário dos anteriores, que essencialmente lidavam com a subversão de convenções de variados gêneros, desta feita ele estabelece linguagem própria, inserindo uma generosa dose de inspiração autobiográfica na figura do renomado escritor vivido por Stephen Ellis, que se encontra com o protagonista, o esforçado e azarado Joe (D.J. Mendel), em um bar de Manhattan para discutir as dificuldades de se lutar por um lugar ao sol na selva de pedra. O personagem, inspirado pelo Leopold Bloom, do “Ulisses” de James Joyce, simboliza a natureza múltipla e complexa do ser humano, as suas várias facetas são destrinchadas na estrutura narrativa em capítulos numerados.

Acompanhamos o desencantado homem de meia-idade em sua complicada jornada até o escritório da produtora “Possible Films”, esperto exercício metalinguístico, na tentativa de vender sua história e garantir mais algum tempo de sobrevivência financeira na área. Com sua conta bancária congelada por atraso no pagamento dos impostos, ele se agarra a alguns trocados e realiza todo tipo de bico, cruzando no caminho com figuras tão angustiadas quanto ele, como a melancólica mulher (Chelsea Crowe) que deseja pular de uma ponte para a morte certa, ou a jovem (Kanstance Frakes) que desabafa seus problemas perceptivelmente fragilizada e emoldurada pela melosa trilha sonora propositalmente manipuladora, bruscamente interrompida pela frieza de seu interlocutor que a abandona no meio do discurso sem cerimônia alguma. Há no ar uma opressiva sensação de desamparo, do triste rapaz esmolando na calçada com uma placa informando sua qualificação para trabalhar, passando pelo ilusório conforto profissional do irmão caçula (Scott Shepherd) de Joe, executivo preso em uma rotina que já não representa nada em sua vida, até uma amargurada ex-namorada (Christine Holt) que não conseguiu superar o fato de que foi trocada por uma garota muito mais jovem, parece que a sociedade cria regras com a intenção de desumanizar os indivíduos e conscientemente apressar uma suicida corrida rumo à extinção, como a freudiana pulsão de morte que estimula as diversas teorias de fim do mundo que pululam na mídia com incrível frequência.

Quando é questionado no bar sobre a razão que o leva a buscar diferentes atividades, ele defende inteligentemente que é mais difícil abater um alvo em movimento. O ato de evitar se focar em apenas uma linha de atuação, leitmotiv da obra, potencializa o contexto apocalíptico de extrema injustiça em que poucos privilegiados alcançam facilmente e, muitas das vezes, sem talento, os seus objetivos, restando as sobras para serem disputadas pela multidão de comuns. É quando o autor, alter ego do diretor, surpreende Joe ao afirmar que o sucesso afasta os riscos, elemento fundamental na equação desafiadora que todo artista deve se empenhar em resolver. A felicidade, apesar de ser difícil de acreditar, está exatamente no conflito, repousando entre espasmos de angústia. 


* Texto escrito para o catálogo da Mostra "O Cinema de Hal Hartley", com a curadoria de Leonardo Luiz Ferreira, que foi apresentada de 23 de janeiro a 04 de fevereiro de 2018, na CAIXA Cultural (RJ). 

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