quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

"Capitão Fantástico", de Matt Ross


Capitão Fantástico (Captain Fantastic - 2016)
Eu vi o filme no Festival do Rio e considerei um dos três destaques do evento, o único que sobreviveu em minha mente após semanas, o que é sempre um ótimo sinal. Viggo Mortensen é um dos melhores atores de sua geração, “Capitão Fantástico” é mais uma pérola em sua filmografia, prejudicada apenas pela mão pesada do roteirista/diretor Matt Ross, um problema que poderia ser amenizado com uma edição mais severa, o que reforçaria o impacto de algumas reflexões propostas. Viggo interpreta Ben, um pai que decidiu se isolar com seus seis filhos, uma vida idílica na floresta, ensinando a prática da caça e incentivando o hábito da leitura ativa, sempre questionadora, uma existência longe do consumismo e de dogmas religiosos e, por conseguinte, longe da cultura do medo e da culpa, campo fértil para que ele tente transmitir os valores que considera mais importantes, na tentativa de formar seres humanos melhores e mais conscientes de suas responsabilidades.

O processo já se iniciou na escolha dos nomes das crianças, Bodevan, Rellian, Kielyr, Vespyr, Zaja e Nai, verdadeiramente únicos no mundo. Após um evento traumático, a família é forçada a deixar essa zona de conforto e enfrentar a realidade urbana, gatilho que desperta questões existenciais relevantes, especialmente na figura paterna, ainda que falte sutileza na abordagem dessas transformações pessoais. O protecionismo que conduziu um dos filhos à dedicação extrema nos estudos também o tornou socialmente inseguro, o espectador é levado até mesmo a se revoltar com algumas atitudes do pai, mas a interpretação primorosa de Mortensen enriquece as várias camadas de sua construção, salientando que a força motriz de suas ações é genuína e amorosa. Uma cena plena em simbolismo, a família pratica alpinismo, um dos filhos machuca a mão e se desespera, o pai então diz sem levantar o tom de voz: “Mantenha a calma, ninguém vai aparecer para salvar você magicamente ao final”. A rejeição da milagrosa intervenção sobrenatural, o que o pai considera uma indústria do engano.

Os filhos não são poupados de verdades duras, algo que choca o casal de parentes na mesa de jantar. Os filhos do casal, garotos mais velhos, imersos na engrenagem convencional da sociedade, não podem falar palavrão, comparecem à sala de aula e tiram as notas necessárias, porém, ao serem desafiados, acabam se mostrando menos preparados intelectualmente que a menina mais nova de Ben. O aprendizado autodidata os tornou fluentes em seis línguas, inclusive esperanto, os treinos de sobrevivência tornaram seus corpos resistentes. Ao optar por deixar o sistema, a família se tornou uma ameaça, um reflexo distorcido no espelho dos robotizados escravos. Um momento particularmente bonito ocorre quando uma das filhas, já inserida na sociedade, descobre que as ovelhas da cidade desconhecem o perigo, elas não se movem quando prepara seu arco e flecha. Ela desiste da caça por compaixão. Assim como as ovelhas, o povo da cidade, gordo e preguiçoso intelectualmente, está despreparado para situações que exigem reações impulsivas, eles se tornam seres dignos de pena.

O elemento que move a ação é a ausência da mãe, que cometeu suicídio após enfrentar surtos de depressão. Como budista, ela deixou escrito que desejava ser cremada, as cinzas jogadas num vaso sanitário. A família dela desrespeita grosseiramente seu pedido e opta por uma cerimônia católica. Ben e os filhos partem então numa missão para honrar a sua memória. O roteiro aproveita o contexto para inserir uma reflexão profunda disfarçada de alívio cômico. Qual a razão de manter um ritual vazio, reduzindo a despedida de seu ente querido à uma mecânica repetição de textos religiosos sem qualquer relação com a experiência de vida da falecida, que é invariavelmente tratada, ainda que com delicadeza, como mais um número na estatística por um padre que sequer a conheceu? Não seria melhor caminharmos seguros na estrada da lucidez, aceitando sem bengalas a brevidade da vida e aproveitando melhor cada precioso segundo? O desfecho musical, que obviamente não irei revelar, promove uma catarse emocional necessária e altamente compensadora. 

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