quarta-feira, 14 de setembro de 2016

"Mãe Só Há Uma", de Anna Muylaert


Mãe Só Há Uma (2016)
Quando fiz a crítica de “Que Horas Ela Volta?”, projeto anterior da Anna Muylaert, eu salientei diversos aspectos negativos que encontrei no roteiro (link para o texto: http://www.devotudoaocinema.com.br/2015/09/que-horas-ela-volta-de-anna-muylaert.html), mas afirmei que ele era emocionalmente eficiente. Com “Mãe Só Há Uma”, ela demonstra maior competência ao evitar os simplismos rasteiros na construção dos personagens, equilibrando melhor o refinamento autoral com as demandas mercadológicas, em suma, o melhor filme nacional do ano até o momento. 

Todos os holofotes da mídia estão direcionados para a polêmica marqueteira de “Aquarius”, um bom filme com sérios problemas, enquanto essa pérola verdadeiramente preciosa, impecável em tudo que se propõe a alcançar, segue pouco celebrada. A despretensão muito bem-vinda com que aborda os temas, sem medo de utilizar o humor como elemento crítico, a objetividade da edição que apara arestas e favorece o ritmo dinâmico, ajuda a potencializar o impacto da bela cena final, que irei comentar mais pra frente. A impressão que fica é que cada sequência, cada diálogo, evolui a narrativa e constrói uma teia de alegorias, nada é gratuito. Da mesma forma que “O Lobo Atrás da Porta” , outra pérola do cinema nacional contemporâneo, buscava inspiração em um chocante caso real para elaborar uma ficção, Muylaert encontrou no “caso Pedrinho”, o menino que foi roubado de uma maternidade em Brasília nos anos oitenta, a fonte para injetar um poderoso tratado sobre o conceito elástico de família.

O jovem Pierre (Naomi Nero) vive uma relação de respeito e companheirismo com a mãe e a pequena irmã em uma humilde casa. A câmera enfatiza o carinho com que a mulher o aperta junto ao peito, a omelete dividida pelos irmãos na simples e minúscula mesa da cozinha. O espectador se torna cúmplice de seu segredo, o conforto que ele sente ao se trancar sozinho no banheiro e se identificar no reflexo do espelho como mulher. Ao evidenciar sua pluralidade sexual, demonstrando vívido interesse em homens e mulheres, o roteiro rejeita o discurso panfletário do vitimismo social, quase sempre atrelado a produções similares, Pierre não abaixa a cabeça para as convenções, ele as desafia por ter a consciência de que a real liberdade não pode ser etiquetada por interesses partidários, não pode ser padronizada. O indivíduo livre pode carregar em si anseios antagônicos, ele, tal qual na frase famosa de Groucho Marx, “nunca faria parte de um clube que o aceitasse como sócio”.

Quando uma assistente social invade sua vida informando que ele foi roubado na maternidade, quando o sistema rudemente o avisa que ele estava vivendo uma mentira, o espectador é levado a constatar a hipocrisia que rege o “mundo real”, o jovem passa a ser chamado por outro nome e perde o convívio com a adorada e doce irmã. Os pais verdadeiros da menina, que também havia sido roubada, insensíveis endinheirados, tentam comprar a atenção dela com a promessa de uma viagem para a Disneyland. Os pais verdadeiros do rapaz, vividos por Matheus Nachtergaele e Daniela Nefussi, que num toque de genialidade, também interpreta a mãe de criação, são endinheirados e calorosos, o espectador é levado a sentir compaixão pela difícil situação, mas logo fica claro que representam todo o patético conformismo do conservadorismo extremista, quase sempre sintomático de indivíduos altamente incoerentes e reprimidos de diversas formas. A mãe criminosa, pobre e de vida nada regrada, acaba sendo o único elemento genuíno de amor familiar que o filme apresenta, em contraste com os casais “legítimos” que se mostram mais interessados em suprir suas necessidades emocionais, tratando os filhos biológicos como atração de circo, posando com eles em fotos para exibir nas redes sociais. 

O filho pré-adolescente do casal é mostrado praticando judô, mas o roteiro salienta seu desconforto, seu desinteresse ao alongar sua pausa para água no meio do treino. Ao ser paquerado pela coleguinha de classe introvertida, ele se sente constrangido, ele se afasta com medo do que os outros irão pensar dele, um ato de imaturidade compreensível pela pouca idade. Essa preocupação é o reflexo do comportamento repressor dos pais, adultos apavorados com a opinião dos outros, tão imaturos quanto o menino, como é mostrado na sequência em que Pierre revela preferir se vestir como mulher. O arco narrativo se encerra brilhantemente ao focar no menino e no irmão mais velho que descobriu ter, uma relação conturbada a princípio, mas que é abraçada pela ternura quando a rebeldia social de Pierre conquista o respeito de um garoto que nunca tinha conhecido força de resistência tão pacífica e gentil. É uma das cenas mais bonitas da história do cinema nacional. 
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