sexta-feira, 30 de setembro de 2016

"Stonewall - Onde o Orgulho Começou", de Roland Emmerich


Stonewall - Onde o Orgulho Começou (Stonewall - 2015)
A crítica norte-americana destruiu o filme em textos rasos, o que sinceramente vejo como preguiça profissional, talvez motivada pelo fato do diretor Roland Emmerich ter construído uma persona pública como um especialista em produções tolas sobre o fim do mundo, fracos roteiros dependentes do excesso de computação gráfica, obras indefensáveis como “O Dia Depois de Amanhã”, “2012” e o inofensivamente divertido “Independence Day”. Mas essa constatação injustamente ignora alguns de seus bons momentos, como “Soldado Universal”, “Stargate”, “O Patriota” e a pérola sci-fi pouco lembrada: “Estação 44 – O Refúgio dos Exterminadores”.

No caso de “Stonewall”, a direção é correta, o roteiro de Jon Robin Baitz é simples e honesto, as atuações são muito boas, com destaque pra Jonny Beauchamp, que se equilibra com desenvoltura numa linha tênue que poderia pender para a caricatura, a execução funciona como recorte histórico de um evento importante e pouco discutido, sem cair na armadilha do didatismo careta, ou apelar para o melodrama, resultando, ao levar em conta o risco fora da zona de conforto criativa, no projeto mais interessante na filmografia do cineasta.

Se alguns alívios cômicos podem soar óbvios, o texto atinge o nervo em cenas como a do ensinamento das ruas, quando o jovem interiorano, vivido por Jeremy Irvine, tem sua ideologia abalada pela realidade na cidade grande, “nunca vi um sonho se realizar nessa rua”, direto ao ponto, sem firulas para agradar pseudointelectuais, dá o recado sem maiores pretensões. E essa despretensão é um dos méritos do filme, que não tenta se vender como uma espécie de documentário grandioso (já existe um excelente no tema: “Stonewall Uprising”, de 2010), o foco está no relacionamento entre os personagens, na sensação de solidão, no amor não correspondido, na angústia que precede a tempestade social no terceiro ato, aspectos abordados com franqueza enriquecida com toques de bom humor. Até mesmo a apatia do protagonista, alguém em processo de autoaceitação homossexual, vai gradualmente ganhando contornos tridimensionais, quando ele percebe que a raiva é um caminho válido para explorar seus sentimentos e, com sorte, encontrar nesse garimpo existencial um indivíduo que orgulhosamente se imponha sem medo perante seus iguais.

Ao estabelecer personalidades carismáticas que conquistam o investimento emocional do espectador, cenas como a do simbólico ato do tijolo arremessado, a fagulha que inicia o incêndio da revolta pelos direitos LGBT, ganham ainda mais peso dramático. Vale destacar a analogia entre o falecimento de Judy Garland, dias antes dos protestos explodirem, com o arco narrativo do rapaz do Kansas, descobrindo um mundo novo e perigoso, em essência, um conto de amadurecimento, elemento lúdico que é trabalhado pela fotografia de Markus Förderer, propositalmente artificial nas cenas externas.

Um bom filme que merece ser prestigiado por aquilo que se propõe a entregar.

"Heróis Esquecidos", de Raoul Walsh


Heróis Esquecidos (The Roaring Twenties - 1939)
Eddie Bartlett (James Cagney) é um veterano de guerra desempregado que se torna contrabandista de bebidas, trocando as batalhas por garrafas. Enquanto cresce seu império, Eddie enfrenta ameaças externas e internas, confrontos de gangues e traições.

Lançado em uma época onde a censura do Código Hays afetava tremendamente qualquer projeto sobre o tema dos gângsteres, “Heróis Esquecidos” teve sua história original, escrita por Mark Hellinger, transformada pelo brilhante diretor Raoul Walsh em um épico de contornos românticos que, devido à utilização frequente de jornais cinematográficos como recurso narrativo, servia também como recorte histórico de uma conturbada década, um início espetacular em sua parceria com os estúdios Warner. O herói de guerra que retorna para uma nação que o rejeita e se vê forçado a fazer dinheiro ilícito no submundo, até ter seu reinado interrompido brutalmente pela crise de 1929, uma visão romanceada do gângster como vítima do sistema, algo mais palatável para os censores. A sua ruína começa ao traçar como meta o amor de uma adolescente que sonha em ser cantora, vivida por Priscilla Lane, a satisfação de um capricho que vai conduzir ele ao trágico desfecho nos degraus da igreja. 

James Cagney, que somente voltaria ao tipo em “Fúria Sanguinária”, dez anos depois, ajudou no roteiro que era retrabalhado por Walsh, os diálogos eram modificados nos dias de filmagem, tamanha a cumplicidade que se formou entre os dois profissionais. O relacionamento estabelecido na sequência inicial entre os personagens de Cagney, Humphrey Bogart e Jeffrey Lynn, três soldados atirando contra um inimigo que o espectador não enxerga, ferramenta que propositalmente nega a empatia e reforça a estupidez do conflito, remete ao clássico de guerra: “O Grande Desfile”, de 1925, em um extremo oposto no tratamento da morte do inimigo. É interessante comparar o incendiário final de “Fúria Sanguinária”, onde o personagem de Cagney se mantém orgulhoso em sua ilusão de grandeza diante da morte certa, com o melancólico final de Bartlett, lutando pra se manter de pé após o tiro nas costas, com a expressão no rosto de quem percebeu tardiamente que o crime não compensa, com sua figura no enquadramento remetendo à Pietà, de Michelangelo, amparado pela devoção materna de uma dona de bar, seres em extinção na nova sociedade que se principia no horizonte. O mesmo diretor, o mesmo ator, dez anos de diferença. 

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Cine Bueller - "Elvira, A Rainha das Trevas"

Link para os textos anteriores do especial:


Elvira, A Rainha das Trevas (Elvira, Mistress of The Dark - 1988)
Elvira (Cassandra Peterson) é a anfitriã de um programa de baixo orçamento sobre filmes de terror, mas tudo pode mudar quando ela herda da tia uma velha mansão em Fallwell, Massachusetts, uma pequena cidade com apenas 1313 habitantes. Ela sonha em vender a casa e ir para Las Vegas, mas encontra dois sérios problemas: o primeiro são os adultos da cidade, que ficam espantados com o modo como ela se veste e se comporta. Liderados por Castidade (Edie McClurg), eles fazem forte oposição à presença de Elvira na localidade. O segundo problema é Vincent Talbot (W. Morgan Sheppard), um tio de Elvira que não herdou nada, mas deseja obter de qualquer maneira um “livro de receitas” que também foi herdado por ela, que dará a ele imensos poderes para fazer diversos tipos de bruxarias.

A musa inesquecível de toda uma geração de adolescentes, o decote generoso que fazia a gente esquecer as preocupações com as provas, a “Sessão da Tarde” que era mais aguardada pelos rapazes, “Elvira” foi uma das opções mais exóticas que os programadores pensaram para o horário. Criada pela bela Cassandra Peterson na década de oitenta como anfitriã em exibições de filmes de terror na televisão, exatamente como o nosso Zé do Caixão fez no “Cine Trash”, a personagem ganhou vida própria e segue ainda hoje realizando shows, com a atriz participando de convenções de fãs e esbanjando simpatia. Como o nome da personagem pode insinuar, ela deve sua carreira ao conselho que recebeu de Elvis Presley, com quem teve um breve caso na década de setenta, sugerindo que a jovem dançarina largasse a rotina dos palcos de Las Vegas e tentasse ser respeitada como atriz em outra cidade. Cassandra viajou pra Europa, chegou a fazer uma ponta em “Roma”, de Fellini, mas foi com sua rainha das trevas que conquistou a atenção da imprensa.

Em uma entrevista no Tonight Show, ela disse que gostaria de protagonizar um filme que fosse uma mistura de “Pink Flamingos” e “The Rocky Horror Picture Show”. A obra comandada por James Signorelli, reconhecido por seu trabalho no programa Saturday Night Live, com roteiro da própria atriz, pode até ser fiel ao tom do musical de Richard O’Brien, mas está longe de ser audacioso como o controverso projeto de John Waters, o que não é um demérito. A personalidade encantadora da protagonista, que transmite sensualidade e segurança, com a leveza de uma adolescente, compensa qualquer tropeço de ritmo. Uma pessoa capaz de soltar frases como: “Eu preciso tanto desse emprego quanto um leproso precisa de um espelho de três vias”, com o charme de quem está recitando Neruda. A subtrama da personagem Castidade, que conduz à cena em que o grupo conservador da cidade tenta queimar Elvira numa fogueira em praça pública, segue atual em um mundo cada vez mais obscurantista. É um filme delicioso que ganha pontos em revisão, perfeito para uma noite de Halloween. 

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline", com a opção da dublagem clássica dos estúdios Maga.

Tesouros da Sétima Arte - "Uma Dupla Desajustada", de Herbert Ross


Uma Dupla Desajustada (The Sunshine Boys - 1975)
Lewis (George Burns) e Clark (Walter Matthau) eram comediantes famosos durante a era do teatro de vaudeville. Fora do palco, no entanto, eles não se suportavam. Tanto que, passada a fase de sucesso, ficaram sem falar durante mais de 20 anos. Até que Ben (Richard Benjamin), sobrinho de Clark, tornou-se produtor de teatro e decidiu produzir uma montagem especial estrelada pela famosa dupla. O problema será convencer ambos a deixar as diferenças de lado para subir ao palco e protagonizar uma histórica volta ao show.

Adaptado da peça de Neil Simon, que havia estreado com muito sucesso na Broadway três anos antes, o roteiro, escrito pelo próprio autor, mantém a estrutura teatral sem arroubos de criatividade, com foco no texto defendido por Walter Matthau e George Burns, que estava afastado das telas por mais de três décadas. A ausência de trilha sonora reforça a atenção do público nos diálogos sempre espirituosos. Woody Allen, grande fã da peça, interpretou Lewis numa adaptação televisiva na década de noventa. Um dos aspectos mais interessantes da trama é que ela nos faz querer ver os dois astros do vaudeville em ação, o que ocorre no terceiro ato, apenas para constatar que eles são muito mais interessantes fora dos palcos, as suas personalidades turronas garantem risadas mais gostosas do que as brincadeiras roteirizadas de seus espetáculos. O silencioso ensaio para a cena do consultório médico é hilário, com os dois tentando ajustar a posição da mobília, um timing cômico impecável.

Burns recebeu o prêmio de Ator Coadjuvante da Academia e foi redescoberto por uma nova geração, trabalhando em pérolas divertidas como “Alguém Lá em Cima Gosta de Mim” e sua sequência “A Menina Que Viu Deus”. A realidade do vaudeville é uma incógnita para grande parte dos brasileiros, duplas como Smith e Dale, ou Gallagher e Shean, fontes de onde Simon bebeu para criar sua peça, tiveram grande importância na época áurea da comédia, assim como o próprio George Burns, que se apresentava com sua esposa Gracie Allen, Abbott e Costello, “Fatty” Arbuckle, Stan Laurel, Oliver Hardy e os Irmãos Marx, artistas que ficaram mais famosos por terem conquistado também as telas do cinema. Esse tesouro resgatado pela Classicline pode servir como uma excelente desculpa para que os cinéfilos busquem conhecer mais sobre esse período fascinante.

* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Classicline".

domingo, 25 de setembro de 2016

Trailer do curta "NOCEBO"

É um prazer compartilhar com vocês, amigos leitores, queridas leitoras, o trailer do curta "NOCEBO", que agora inicia a etapa de tentativas em festivais.


Trailer: https://vimeo.com/184065663

Uma viúva sofre com o ódio que nasceu entre suas duas filhas, uma ferida exposta que as afastou do seio familiar, o que conduzirá a um confronto entre duas forças da natureza no campo de batalha que outrora foi um lar harmonioso.

Com: Nadia Lippi, Paola Castilho, Virginia Maria, Tereza Filardy, Deborah Cintra e Mário PC

História/Roteiro e Direção: Octavio Caruso

Direção de Fotografia: Alex Teix

Direção de Arte: Cristina Caruso

Edição/Montagem: Sihan Felix

Trilha Sonora: Mário Pimentel De Castro Filho

Som Direto: Eric Brandão

Edição e Mixagem de Som:
Mário Pimentel De Castro Filho

Finalização: Alex Teix

Cartazes: Laísa Roberta Trojaike

Produção: Dacine Filmes

Página do filme no IMDb: http://www.imdb.com/title/tt6041236/

"Matrimônio à Italiana", de Vittorio De Sica


Matrimônio à Italiana (Matrimonio All'italiana - 1964)
Ao adaptar a peça “Filumena Marturano”, de Eduardo De Filippo, o diretor Vittorio De Sica apostou em uma das parcerias mais encantadoras da história do cinema: Sophia Loren e Marcello Mastroianni, logo após a pérola do trio: “Ontem, Hoje e Amanhã”. 

A protagonista, uma prostituta espevitada e de bom coração, poderia se transformar em um pastiche tolo nas mãos de qualquer atriz menos talentosa, mas Loren trabalha ao longo das passagens de tempo da trama, da insegurança de adolescente a fortaleza da meia-idade, uma riqueza de nuances dramáticas que engrandece os esforços de Mastroianni, salientando na nobreza de seus gestos a imaturidade psicológica do patético tipo vivido por ele, um bon vivant filhinho de mamãe que extravasa sua insegurança potencializando seus esforços galanteadores em jovens simplórias da região. Ela vive afastada dos três filhos, que ignoram a existência da mãe e dos irmãos, um fardo que a bela mulher tenta disfarçar com um sorriso largo, maquiagem amarga para esconder a ausência de lágrimas, uma espécie de sequidão existencial, elemento que engrandece o impacto emocional do pranto redentor no desfecho emoldurado pela cálida trilha sonora de Armando Trovajoli. 

O roteiro parte de um artifício cômico rasgado, a farsa da morte iminente dela como subterfúgio para forçar o matrimônio, fazendo uso inteligente do recurso do flashback, mas ganha contornos melodramáticos elegantes no segundo ato, quando o foco é desviado das pueris aventuras do casal exótico para a nobreza impressionante da mãe que busca merecer o respeito dos filhos, ganhando confiança para se impor na sociedade, gradativamente encontrando ressonância no homem egoísta e irresponsável que, levado a pensar que um dos rapazes é seu filho, encontra algum sentido em seu errático estilo de vida, descobrindo a importância do legado. É nesse momento que percebemos o coração do cineasta falando mais alto. 

Uma deliciosa comédia que, apesar do sucesso que fez na época, não costuma ser lembrada pelo público moderno, o que considero uma tremenda injustiça. 

sábado, 24 de setembro de 2016

Sobre o cinema ser matéria curricular em escolas primárias da Argentina

A Argentina é um dos primeiros países no mundo, após a França, a incluir cinema como matéria curricular em escolas primárias. Uma nação que valoriza a cultura e se preocupa realmente com a educação de suas crianças. Quando li a notícia, pensei que era brincadeira do "Sensacionalista", vivemos desesperançados em nossa lastimável situação social/política, não fomos condicionados ao respeito governamental por valores éticos. Essa iniciativa não apenas irá ajudar a formar um público, elemento fundamental em longo prazo, como também irá fortalecer a própria indústria de cinema argentina.

Eu devo tudo ao cinema, todo o aprendizado que verdadeiramente forjou o adulto que sou hoje, a resiliência que me faz ainda enxergar luz no fim desse lamacento túnel nacional, veio do meu amor pelo garimpo intelectual cinematográfico desde criança. Muitos discutem reformas educacionais que pedem mais tempo dos alunos na escola, o que não considero eficiente, um adolescente pode aprender muito mais fora das carteiras escolares. Com o cinema eu me interessei em conhecer o universo da filosofia, matéria que nunca foi abordada pelos meus professores de primário e ginásio. A melhor forma de aprender uma língua estrangeira é retirando a obrigatoriedade curricular da equação, o real interesse deve ser estimulado, eu sou fluente em inglês, dei aulas particulares por alguns anos de minha juventude, uma matéria que absorvi desde a infância através de filmes, música e videogames, aprendi sem perceber que estava aprendendo. Já escrevi vários textos abordando a importância do cinema como recurso educacional, escrevi um livro sobre o tema, sonho com essa iniciativa se tornando uma realidade possível no Brasil. É difícil, tarefa praticamente impossível. O cinema ainda é utilizado aqui como joguete político, como capricho de ególatras que produzem obras umbilicais, ou como parque de diversões caro para a satisfação imediatista de artistas de diversas áreas, de youtubers teens até dançarinas de axé, em suma, filmes com prazo de validade curto.

Enquanto nós somos Curupiras correndo em direção à Idade Média, a Argentina dá uma aula valiosa para o mundo.

sábado, 17 de setembro de 2016

Faces do Medo - Serial Killers


Confissões de Um Necrófilo (Deranged - 1974)
Um homem que vive na parte rural de Wisconsin cuida de sua mãe que é muito dominadora e ensina que todas as mulheres são más. Depois que ela morre, ele sente muita a falta dela. A partir da morte dela, ele começa a fazer as coisas mais escabrosas que se pode imaginar. Estreitamente baseado na história verídica de Ed Gein.

Ao contrário de “O Massacre da Serra Elétrica”, o irmão mais famoso lançado posteriormente no mesmo ano, “Deranged”, dirigido por Jeff Gillen e Alan Ormsby, opta por uma abordagem mais documental sobre Ed Gein, com as frequentes interrupções de um personagem repórter falando diretamente para o público, um recurso que prejudica a imersão e a construção do suspense, aquele clima de pesadelo que a obra de Tobe Hooper dominou com perfeição. Mas a atuação de Roberts Blossom, rica em maneirismos repetitivos perturbadores, compensa qualquer problema. Ele consegue transmitir um misto de insegurança quase infantilizada e doentia loucura. Os efeitos de Tom Savini, estreando no cinema, já demonstram a competência que o mundo iria aplaudir alguns anos mais tarde, com destaque para uma impressionante cena envolvendo uma colher e um cérebro exposto em um crânio aberto. Não creio que a indústria hoje tenha coragem de detalhar o macabro de forma tão direta, a utilização do humor em certos momentos deixa o que é bizarro ainda mais repulsivo. Você termina a sessão e sente vontade de tomar banho, o que é um tremendo mérito em uma obra do gênero.


Henry - Retrato de Um Assassino (Henry: Portrait of a Serial Killer - 1986)
Henry é um rapaz que vive com seu ex-colega de prisão e sofre de distúrbio que o leva a matar pessoas de formas bárbaras. Quando o colega e sua irmã, que também sofrem de perturbações psicológicas, descobrem seus feitos, são atraídos pela violência, mas ao mesmo tempo se tornam vítimas em potencial.

Já citei o “Guia de Vídeo - Terror”, lançado pela Editora Escala no início dos anos noventa, escrito pelo Guilherme de Martino, em alguns textos sobre meus anos de garimpo adolescente nas locadoras de vídeo. “Henry”, dirigido por John McNaughton, era uma das pérolas indicadas pelo livro que eu não conseguia encontrar em lugar algum, para um apaixonado por terror aquele filme parecia ser praticamente o Necronomicon aberto, relia milhões de vezes o trecho sobre ele, eu cheguei a sonhar com sequências imaginárias, mas o VHS eu nunca vi, somente fui entrar em contato com o filme no início da era da internet. Alguns anos mais tarde li sobre a vida do verdadeiro Henry Lee Lucas, eu fiquei sem dormir, recomendo que assistam ao ótimo documentário que vem na caixa, não há horror na literatura e no cinema que supere a vida real. O roteiro não chega nem perto de retratar os aspectos mais grotescos de seus assassinatos, mas, ainda assim, perturba o espectador pela crueza com que aborda o cotidiano do protagonista, um relato realista quase documental, elemento realçado pela fotografia suja, com o orçamento irrisório ajudando a compor uma pegada snuff altamente coerente com o tema. Michael Rooker, vivendo Henry, está possuído pelo capiroto, os seus olhares arrepiam mais do que as cenas que mostram as consequências de seus atos. A ausência de qualquer personagem moralmente correto estabelece um tom depressivo raras vezes alcançado em produções do gênero. Lançado em um período onde a indústria norte-americana estava dominada pelos slashers, McNaughton insere um subtexto de crítica à violência como entretenimento. 


Lua de Mel de Assassinos (The Honeymoon Killers - 1969)
Baseado na história verídica de Raymond Fernandez e Martha Beck, que se encontram por correspondência. Ray é invasor, selvagem e não confiável​​; Martha é enorme, compulsiva e necessitada. Juntos, começam a atrair mulheres para roubá-las e matá-las.

O diretor/roteirista Leonard Kastle, que também era compositor de ópera, fez apenas um filme em sua carreira, substituindo Scorsese, com dinheiro de pinga e sérios problemas técnicos, mas esse único projeto foi muito elogiado por François Truffaut, que chegou a afirmar que era o seu filme norte-americano favorito, sem falar que serviu como óbvia inspiração tonal e temática nos trabalhos iniciais de John Waters e Brian De Palma, então eu creio que ele cumpriu com louvor sua missão na sétima arte. Sem se debruçar na violência gráfica, a câmera adota enquadramentos desconcertantes nas cenas de assassinato, o que não é visto se torna mais terrível na mente do público, o olhar da vítima que percebe que será atacada pode ser mais apavorante que a encenação do ataque, com o preto e branco reforçando a antinaturalidade na abordagem inteligentemente inconsequente.


O Estrangulador de Rillington Place (10 Rillington Place - 1971)
Londres, 1949. John Christie é um despretensioso homem de meia idade que, juntamente com sua esposa Ethel, administra o prédio de apartamentos em 10 Rillington Place. Seu despretensioso comportamento oculta o fato de ser um serial killer. Usa da sua formação médica, para atrair mulheres inocentes para seu apartamento com o pretexto de curá-las de alguma doença, então estrangula suas vítimas antes de enterrá-las em seu quintal.

Poucos filmes funcionam tão bem como crítica à pena de morte, o caso real foi o motivador da abolição ocorrida no Reino Unido em 1965. Dirigido por Richard Fleischer no início da década de setenta, construindo um suspense matador sem apelar para violência gráfica, protagonizado pelo sempre competente John Hurt e um impecável Richard Attenborough, transmitindo um senso de perigo apavorante em sua atuação contida, auxiliada pela utilização constante de claustrofóbicos ambientes fracamente iluminados. O fato do roteiro não se importar em examinar as motivações psicológicas do assassino potencializa a ameaça, somos colocados na mesma posição de ignorância das vítimas, diante da frieza banal de sua incompreensível maldade. O tom sóbrio dominante favorece a eventual exibição de violência, surpreendendo o espectador e provocando imediato desconforto. O foco está na forma como esse monstro consegue manipular todos ao seu redor para que não enxerguem o óbvio. Uma obra que merece maior reconhecimento.


O Maníaco (Maniac - 1980)
Frank Zito é um desequilibrado mental que mata inúmeras garotas brutalmente e guarda seus escalpos para adornar os inúmeros manequins que lhe fazem companhia. Até o dia em que uma mulher tira uma fotografia sua no Central Park. Trata-se da fotógrafa Anna D'Antoni, por quem Zito acaba se apaixonando. Mas será que o relacionamento conseguirá vencer sua sede de sangue?

Joe Spinell, o canastrão agiota dos dois primeiros filmes da franquia “Rocky”, roteirizou e protagonizou essa pérola do slasher embrionário, com um nível de violência acima do que seria normal no subgênero, lembrada mais pelo trabalho impecável de Tom Savini nos efeitos de maquiagem. O roteiro é simplório, a estética é amadora, a direção do fraco William Lustig é sem brilho, mas o grande mérito está no foco dado ao mundo interno de um psicopata, não há antagonista, não há pretensão alguma, apenas o interesse em entregar o maior número possível de sequências de assassinato, um terreno fértil para Savini esbanjar seu talento. A belíssima inglesa Caroline Munro, que havia sido uma Bondgirl em “007 – O Espião Que Me Amava”, três anos antes, entra na trama no segundo ato como interesse romântico do maníaco, o que não ajuda a tornar o todo mais verossímil.


* Os filmes estão sendo lançados em DVD com excelente material extra, pela distribuidora "Obras-Primas do Cinema", no digistack "Serial Killers".

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Woody Allen - "Café Society"

Link para os textos anteriores desse especial que se leva tão a sério quanto o próprio Woody:

“Mais honesto que eu no Brasil, só Jesus Cristo”.

Essas foram as últimas palavras de Chico Tatu antes de ser preso pela polícia federal. O pobre homem do sertão que, sem ter lido um livro na vida, chegou a ocupar o cargo mais importante em um país, apenas para confirmar com suas ações desastrosas que o analfabetismo não é motivo de orgulho. Assim como seu ídolo, o Pinguim do filme “Batman – O Retorno”, ele teve a ajuda de um marqueteiro sem princípios em sua jornada política, abrandou seu discurso, sorriu mais, passou a tomar banho e se vestir com roupas melhores. Mas, após ser incriminado em um dos processos mais sujos e escandalosos da história política nacional, rasgou animalescamente suas roupas elegantes, voltou a vociferar e virou seu guarda-chuva vermelho explosivo na direção daqueles que cansaram de sua teatralidade rasteira.

Muitos intelectuais afirmam hoje que isso era uma tragédia anunciada. É o caso de Torquato Neto, professor de latim na Universidade de Madureira:

- “Para todo trabalho é preciso preparo, não um mínimo de preparo, preparo sério, o cozinheiro do restaurante não pode ter tido aulas em seu ofício vendo programa de culinária na televisão, ele tem que estudar, ele tem que ler. Creio que pra ser presidente de uma nação funcione da mesma forma”.

Sábio professor, que precisa dar aulas em quatro escolas e se prostituir à noite, para conseguir sobreviver. Como é triste ser intelectual nessa nação. Enquanto isso, Chico Tatu segue arregimentando fiéis para sua seita mesmo atrás das grades. E o citado Jesus Cristo promete voltar para processar ele por utilização indevida de seu nome. Em comunicado obtido em mesa espírita na tarde de ontem:

- “Já não bastava ter essa corja de pastores neopentecostais fazendo fortuna com meu nome? Agora o negócio foi longe demais...”


Café Society (2016)
Bobby é um jovem aspirante a escritor que resolve se mudar de Nova York para Los Angeles. Lá, ele deseja ingressar na indústria cinematográfica com a ajuda de seu tio Phil, um produtor que conhece a elite da sétima arte. Após um bom período de espera, Bobby consegue o emprego de entregador de mensagens dentro da empresa de Phil. Enquanto aguarda uma oportunidade melhor, ele se envolve com Vonnie, a secretária particular de seu tio. Só que ela, por mais que goste de Bobby, mantém um relacionamento secreto.


Quando soube que o mestre Vittorio Storaro iniciaria uma parceria como o diretor de fotografia de Woody, em uma trama ambientada na década de trinta, agradeci aos deuses do cinema por possibilitarem crepúsculo profissional tão belo para esse incansável artista. Em uma indústria cada vez mais escrava da grandiloquência, o baixinho de voz mansa segue entregando anualmente os textos mais inteligentes do mercado, com pouco orçamento e disciplinadamente encaixando a duração final por volta de noventa minutos, exercitando sua incrível capacidade de síntese narrativa. Ele abraça pela primeira vez a filmagem digital, mas continua marchando no ritmo de seus próprios tambores criativos, o roteiro toca em temas essenciais em sua filmografia, como a discussão existencialista sobre a morte, a ironia do amor não correspondido e a desconstrução ácida da melancolia nostálgica, com a mesma vitalidade de seus primeiros trabalhos. Nesse contexto, a bonita homenagem que ele presta à cena mais famosa de sua carreira, a ponte Queensboro de Manhattan, ganha contornos ainda mais simbólicos. E até mesmo a narração em off, recurso desgastado e usualmente prejudicial, potencializa o investimento emocional do espectador sendo defendida pela voz simpática do diretor.

É hilária a forma como o roteiro expõe a prepotência dos membros da alta sociedade de Hollywood. Na cena da festa na casa do agente, um jornalista brinca com Bobby (Jesse Eisenberg), “amor não correspondido mata mais que tuberculose”, no que o jovem ri e ironicamente responde que acredita na afirmação. O jornalista então fica sem jeito e faz questão de deixar claro que era apenas uma piada, como se o rapaz não fosse inteligente o suficiente pra entender uma simples brincadeira. Eisenberg compreende perfeitamente o humor de Woody, equilibrando em seus maneirismos a insegurança e a coragem dos tolos. Ao optar pela utilização do soft focus ao emoldurar o rosto da personagem de Kristen Stewart, enxergamos sua beleza através dos olhos do rapaz que a idealiza como um sonho inalcançável, a secretária simplória que ele descobriu ser a personalidade mais gloriosamente genuína naquela terra de ilusão. Assim como a sequência que mostra o tio judeu mudando de religião apenas para nutrir esperança em uma vida após a morte, o leitmotiv da teatralidade conveniente se faz presente na transição da jovem, de alguém que desprezava as atitudes das mulheres da alta sociedade, para uma legítima “esposa troféu”, mantendo um relacionamento vazio apenas pelo status que conquistou. 

Ao final, os dois apaixonados, em locais diferentes e estabelecidos em relações frágeis, olhares distantes e melancólicos, como que buscando a luz verde do farol do Gatsby literário, de Fitzgerald. E, ousado, Woody insinua no sorriso suave da mulher a possibilidade de que o amor verdadeiro ainda terá chance de superar a insegurança social. Poético desfecho para um dos melhores filmes em sua filmografia.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

"Mãe Só Há Uma", de Anna Muylaert


Mãe Só Há Uma (2016)
Quando fiz a crítica de “Que Horas Ela Volta?”, projeto anterior da Anna Muylaert, eu salientei diversos aspectos negativos que encontrei no roteiro (link para o texto: http://www.devotudoaocinema.com.br/2015/09/que-horas-ela-volta-de-anna-muylaert.html), mas afirmei que ele era emocionalmente eficiente. Com “Mãe Só Há Uma”, ela demonstra maior competência ao evitar os simplismos rasteiros na construção dos personagens, equilibrando melhor o refinamento autoral com as demandas mercadológicas, em suma, o melhor filme nacional do ano até o momento. 

Todos os holofotes da mídia estão direcionados para a polêmica marqueteira de “Aquarius”, um bom filme com sérios problemas, enquanto essa pérola verdadeiramente preciosa, impecável em tudo que se propõe a alcançar, segue pouco celebrada. A despretensão muito bem-vinda com que aborda os temas, sem medo de utilizar o humor como elemento crítico, a objetividade da edição que apara arestas e favorece o ritmo dinâmico, ajuda a potencializar o impacto da bela cena final, que irei comentar mais pra frente. A impressão que fica é que cada sequência, cada diálogo, evolui a narrativa e constrói uma teia de alegorias, nada é gratuito. Da mesma forma que “O Lobo Atrás da Porta” , outra pérola do cinema nacional contemporâneo, buscava inspiração em um chocante caso real para elaborar uma ficção, Muylaert encontrou no “caso Pedrinho”, o menino que foi roubado de uma maternidade em Brasília nos anos oitenta, a fonte para injetar um poderoso tratado sobre o conceito elástico de família.

O jovem Pierre (Naomi Nero) vive uma relação de respeito e companheirismo com a mãe e a pequena irmã em uma humilde casa. A câmera enfatiza o carinho com que a mulher o aperta junto ao peito, a omelete dividida pelos irmãos na simples e minúscula mesa da cozinha. O espectador se torna cúmplice de seu segredo, o conforto que ele sente ao se trancar sozinho no banheiro e se identificar no reflexo do espelho como mulher. Ao evidenciar sua pluralidade sexual, demonstrando vívido interesse em homens e mulheres, o roteiro rejeita o discurso panfletário do vitimismo social, quase sempre atrelado a produções similares, Pierre não abaixa a cabeça para as convenções, ele as desafia por ter a consciência de que a real liberdade não pode ser etiquetada por interesses partidários, não pode ser padronizada. O indivíduo livre pode carregar em si anseios antagônicos, ele, tal qual na frase famosa de Groucho Marx, “nunca faria parte de um clube que o aceitasse como sócio”.

Quando uma assistente social invade sua vida informando que ele foi roubado na maternidade, quando o sistema rudemente o avisa que ele estava vivendo uma mentira, o espectador é levado a constatar a hipocrisia que rege o “mundo real”, o jovem passa a ser chamado por outro nome e perde o convívio com a adorada e doce irmã. Os pais verdadeiros da menina, que também havia sido roubada, insensíveis endinheirados, tentam comprar a atenção dela com a promessa de uma viagem para a Disneyland. Os pais verdadeiros do rapaz, vividos por Matheus Nachtergaele e Daniela Nefussi, que num toque de genialidade, também interpreta a mãe de criação, são endinheirados e calorosos, o espectador é levado a sentir compaixão pela difícil situação, mas logo fica claro que representam todo o patético conformismo do conservadorismo extremista, quase sempre sintomático de indivíduos altamente incoerentes e reprimidos de diversas formas. A mãe criminosa, pobre e de vida nada regrada, acaba sendo o único elemento genuíno de amor familiar que o filme apresenta, em contraste com os casais “legítimos” que se mostram mais interessados em suprir suas necessidades emocionais, tratando os filhos biológicos como atração de circo, posando com eles em fotos para exibir nas redes sociais. 

O filho pré-adolescente do casal é mostrado praticando judô, mas o roteiro salienta seu desconforto, seu desinteresse ao alongar sua pausa para água no meio do treino. Ao ser paquerado pela coleguinha de classe introvertida, ele se sente constrangido, ele se afasta com medo do que os outros irão pensar dele, um ato de imaturidade compreensível pela pouca idade. Essa preocupação é o reflexo do comportamento repressor dos pais, adultos apavorados com a opinião dos outros, tão imaturos quanto o menino, como é mostrado na sequência em que Pierre revela preferir se vestir como mulher. O arco narrativo se encerra brilhantemente ao focar no menino e no irmão mais velho que descobriu ter, uma relação conturbada a princípio, mas que é abraçada pela ternura quando a rebeldia social de Pierre conquista o respeito de um garoto que nunca tinha conhecido força de resistência tão pacífica e gentil. É uma das cenas mais bonitas da história do cinema nacional. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Faces do Medo - "O Homem nas Trevas", de Fede Alvarez


O Homem nas Trevas (Don't Breathe - 2016)
O ano está sendo generoso com os apreciadores do terror, no que me incluo, com pelo menos uma obra-prima, “A Bruxa”, e pérolas como esse “O Homem nas Trevas”, do uruguaio Fede Alvarez. O preciosismo técnico na composição das imagens, desde a impecável sequência inicial, e o timing certeiro, fugindo da preferência usual medíocre pelos imediatistas jump scares, evidenciam a compreensão de que o medo só pode ser verdadeiramente eficiente quando é a resposta natural para a tensão alcançada em um suspense bem elaborado. 

A ideia da trama não é extremamente original, o recente “Intruders” trabalha estrutura similar, mas a esperta execução é o elemento que surpreende o espectador, com a ajuda da fotografia refinada de Pedro Luque. Quem viu a refilmagem de “A Morte do Demônio”, o projeto anterior do diretor, sabe que o horror psicológico não é o forte dele, a atenção está voltada para o choque sádico, uma pegada menos pretensiosa artisticamente e altamente funcional. Mas há espaço para alegorias, como a cegueira do veterano de guerra vivido por Stephen Lang, a resistência solitária de um conservador perante a invasão promovida por um grupo de jovens ladrões em sua residência, a única que se manteve viva em um bairro abandonado, algo que pode ser lido em uma camada de interpretação menos óbvia como uma analogia à participação dos soldados norte-americanos em guerras, onde o interesse é puramente financeiro, sobrando espaço também para uma sutil crítica à triste validação da violência urbana como forma justificável de protesto. 

Como era de se esperar em um filme cujo leitmotiv é a claustrofobia social, o foco está em potencializar os sentidos, a movimentação da câmera faz da casa um personagem, o único unidimensional em um roteiro que prima por estabelecer motivações tridimensionais nas personalidades de cada jovem, nada de estereótipos simplórios, o que já é um valioso mérito. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Sobre a polêmica da seleção do filme nacional a lutar pela vaga no Oscar

Quem acompanha meu trabalho sabe quantos textos já escrevi sobre a irrelevância do Oscar como parâmetro de qualidade. É um show televisivo fracamente roteirizado que vive de lobby e precisa de bons índices de audiência. O cinema não é uma corrida de cavalos, o jogo movimenta a indústria, mas diz muito pouco sobre a arte.

Com relação à escolha nacional da comissão para concorrer à vaga na premiação, "Pequeno Segredo", do diretor David Schurmann, não posso opinar sobre seus méritos, conheço apenas o livro original, a história é linda, espero que tenha sido adaptada com esmero. A decisão causou rebuliço nas redes sociais, com direito a muita agressividade nos comentários da página oficial da produção. Algo me diz que os defensores de "Aquarius" estariam se revoltando publicamente com a mesma intensidade caso o escolhido fosse qualquer um dos outros 15 trabalhos inscritos. Qualquer obra escolhida validaria o discurso equivocado de "golpe". Não considero uma postura elegante, por mais que o debate seja sempre louvável, acho grosseiro diminuir o esforço da equipe do filme selecionado e desrespeitar o critério utilizado pelos profissionais que fazem parte da comissão. Na mente dos defensores, somente os diretores que retiraram os filmes são corretos. Analisando de forma lógica, o mais correto, seguindo essa linha de raciocínio torta, seria o próprio "Aquarius" ter se retirado da competição, já que mostraria que não compactuam com o que eles consideram que seja um "golpe" da comissão. Não, eles ficaram e elogiaram os concorrentes que saíram. Isso não faz sentido algum. Caso a esquerda fosse minimamente coerente, não estaria se importando com qualquer notícia relacionada ao que os seus militantes chamariam de "festa autocelebratória do capitalismo", mas não se deve pedir coerência à fanáticos praticantes da dissonância cognitiva.

Ainda não escrevi sobre "Aquarius", farei em breve, mas já posso adiantar que encontrei pontos positivos valiosos, especialmente a atuação irretocável de Sônia Braga, mas também muitos pontos negativos no roteiro, o esqueleto de um filme. O fato é que, retirando da equação a passionalidade dos defensores, eu achei o todo inferior a "O Som ao Redor", trabalho anterior do diretor Kleber Mendonça Filho, que era menos pretensioso e funcionava melhor. Ainda que a defesa apaixonada esteja afirmando que é uma "obra-prima", "o melhor filme nacional de todos os tempos", já li até comparações absurdas com o fantástico "Terra em Transe", de Glauber Rocha, eu tenho certeza que o tempo irá abraçar o projeto com o manto da lucidez. É um bom filme, mas está longe de ser merecedor de toda essa atenção.

Da mesma forma que me posicionei contrário ao boicote que muitos organizaram contra "Aquarius", por ter a convicção de que o filme não poderia ser prejudicado pela opinião política de sua equipe, não posso deixar de afirmar meu repúdio à atitude deselegante dos que estão desmerecendo o esforço de todos os envolvidos na obra selecionada pela comissão.

sábado, 10 de setembro de 2016

"Águia Solitária", de Billy Wilder


Águia Solitária (The Spirit of St. Louis – 1957)
Charles Lindbergh é uma figura controversa nas páginas da história mundial, ele se encantou com a revitalização nacional alemã sob o regime nazista e chegou a ser condecorado por Göring, líder do partido, mas isso não arranha sua importância como pioneiro na aviação, tendo sido o primeiro a realizar um solitário voo transatlântico sem escalas em 1927, lutando contra o sono e utilizando como guia: bússola, estrelas quando as nuvens não atrapalhavam, e um mapa desdobrável. O filme dirigido pelo mestre Billy Wilder consegue equilibrar a reverência respeitosa com toques de humor, deixando um pouco de lado a ironia autoral típica em seus trabalhos para potencializar uma visão didática sobre o protagonista, enriquecido pela atuação terna de um James Stewart perceptivelmente honrado de poder viver esse papel. Como ele passa praticamente o tempo todo dentro da pequena cabine, com a constante narração representando seu inconsciente, o maior desafio era expressar em seu rosto todos os conflitos internos, o medo de não sofrer o terrível destino dos que tentaram antes dele, a imprevisibilidade que desafia sua experiência. 

O roteiro é estruturado em flashbacks que evocam a dedicação do jovem, não há timidez na forma como ele é retratado como um herói da classe trabalhadora, até mesmo em situações simples, como quando interage pacientemente com uma fã momentos antes de partir em sua viagem. O Lindbergh real vinha de uma família privilegiada, mas é compreensível que o roteiro tenha adotado essa visão dele como o bom moço humilde de classe média, alguém com quem todos os norte-americanos poderiam se identificar. A maior dimensão do Cinemascope, formato que começou a usar no anterior “O Pecado Mora ao Lado”, é inteligentemente explorada nos enquadramentos, com a edição demonstrando maior senso de dinamismo e ousadia do que era usual em seus filmes, fica evidente que Wilder estava disposto a coerentemente seguir o apreço do homenageado pelo desafio, algo verdadeiramente louvável para um cineasta que já não precisava provar nada a ninguém. “Águia Solitária” é uma pérola injustamente pouco lembrada em sua filmografia.






* O filme está sendo lançado em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre competente de Fernando Brito.


Faces do Medo - J-Horror


Audição (Ôdishon – 1999)
Após a morte da esposa, um executivo é convidado pelo amigo cineasta a participar da escolha de uma atriz. O viúvo se interessa por uma bela e misteriosa candidata.

Sem estragar a experiência de quem ainda não viu o filme, qualquer revelação nesse caso é prejudicial, afirmo que o terceiro ato perturba o espectador em um nível poucas vezes atingido pela indústria, creio que pode ser comparado a obras como “Violência Gratuita”, de Haneke, ou “Possessão”, de Zulawski. O impacto é grande porque o roteiro subverte a expectativa levantada durante o primeiro ato, esse é o toque de genialidade, somos conduzidos inicialmente pelas convenções de uma comédia romântica, que logo ganha tons melodramáticos, depois o diretor Takashi Miike flerta com o suspense e desorienta a percepção abandonando o conceito da linearidade, até encaminhar a trama para um desfecho extremamente repulsivo que parece saído diretamente dos arquivos da deep web. O leitmotiv da solidão na multidão da selva de pedra eleva a qualidade do discurso e dá contornos poéticos para a violência, a desesperança inevitável ao constatar que nenhum escritor de literatura fantástica será capaz de criar um monstro tão cruel quanto o próprio ser humano.  


Hausu (1977)
Garota briga com o pai e decide passar umas férias na casa de sua tia com suas amigas, porém a casa é mal assombrada pelo fantasma da tia.

Um dos meus pecados cinematográficos era não ter visto “Hausu”, já havia lido muito sobre ele, mas a fita nunca foi lançada em VHS, ou DVD, e na época do auge do garimpo na internet eu não encontrei uma boa cópia dele com legendas em inglês. Graças ao trabalho maravilhoso da “Versátil”, a curadoria altamente competente do Fernando Brito, consegui saciar essa curiosidade. E devo confessar que estou completamente apaixonado pelo filme. Vi duas vezes na mesma noite. Não dá pra descrever a trama sem desvalorizar a força estética dessa pérola do diretor Nobuhiko Obayashi, o importante é você entrar no clima proposto e se preparar para ser surpreendido a cada sequência. A trilha sonora de Asei Kobayashi e Mickie Yoshino capta perfeitamente o tom da história, um conto de casa mal assombrada que se descortina através do imaginário de uma criança, a ideia partiu da filha pequena do diretor. Os variados efeitos utilizados, cenas que ultrapassam os limites da imaginação, são propositalmente cartunescos e pensados para enfatizar a irrealidade nas situações, quase como se fossem o resultado de um trabalho artesanal infantil. Basta dar uma olhada em algumas tiradas bizarras de Sam Raimi em "Evil Dead 2" para perceber que ele bebeu dessa fonte. As sete meninas, cada uma simbolizando estereótipos de diferentes aspectos de personalidade, são cativantes. Obayashi ousou ir contra a tradição dos respeitados mestres do cinema japonês, não se levou a sério como os contemporâneos da “nova onda” da década de sessenta, por conseguinte, criou uma peça única, ousada e rebelde, que seguirá radicalmente irreverente até mesmo se for exibida para um grupo de jovens descolados em 2100. 


A Cura (Kyua - 1997)
Um policial complexado investiga uma série de crimes violentos praticados por pessoas que não se lembram do que fizeram.

O filme de Kyioshi Kurosawa, que não tem qualquer parentesco com o mestre Akira, é a superior resposta japonesa para o norte-americano “Se7en”, que havia tomado o mundo de assalto dois anos antes, uma experiência lenta, atmosférica e revisionista no subgênero serial killer, com maior interesse no desenvolvimento calculado do suspense, reforçado por personagens tridimensionais cujas atitudes são verdadeiramente imprevisíveis, do que em explorar criativamente os elementos de terror. O resultado é classudo e perturbador, com o gore reservado para poucos e bons momentos. A grande sacada do roteiro é incitar o espectador a questionar a sanidade de seu cotidiano considerado “normal”, forçando a identificação dele com os assassinos comuns apresentados, que exercem funções básicas na sociedade, uma visão que distorce a percepção da realidade e traz desconforto a cada revelação do detetive vivido por Koji Yakusho.


Inferno (Jigoku - 1960)
Um grupo de pecadores envolvidos em casos interligados de assassinato, vingança e adultério encontram-se nos Portões do Inferno.

A obra-prima do diretor Nobuo Nakagawa, filmada quase que inteiramente com recursos próprios, trabalha o conceito religioso do inferno pelo viés budista que o divide em oito categorias, estabelecido inicialmente de forma didática na sequência que mostra o professor Yajima lecionando na faculdade de teologia. A primeira hora do filme é dedicada às razões que conduziram os personagens ao pecado, até que no terceiro ato o roteiro se entrega ao simbolismo apavorante de cenas verdadeiramente repugnantes, sadismo insano no Naraka (purgatório budista), o horror como ninguém na indústria havia realizado até aquele momento. É o nascimento do gore pelas mãos do estúdio Shintoho, que abriu falência após o lançamento. O chamado "ero guro nansensu" (erótico grotesco nonsense) voltaria a ser o fio condutor de filmes como "Audição" e "Battle Royale". Sete anos depois, o brasileiro José Mojica Marins evocaria sua visão do inferno colorido em “Esta Noite Encarnarei em Teu Cadáver”. 


Onibaba - A Mulher Demônio (Onibaba - 1964)
Japão, século XIV. Duas mulheres vivem de matar samurais e vender seus pertences. Porém, um dia uma delas encontra um misterioso samurai com uma máscara bizarra.

Kaneto Shindo, cuja filmografia sinaliza o interesse nos efeitos psicológicos da destruição atômica nos sobreviventes, faz com “Onibaba” uma menos óbvia alegoria do trauma de Hiroshima, algo que vai além da maquiagem do rosto desfigurado após a retirada da máscara demoníaca, visual que foi trabalhado pela equipe técnica com base em fotos de pessoas afetadas pela explosão. O sucesso de “Godzilla”, lançado dez anos antes, indicava a preferência do espectador japonês por lidar com a ameaça de monstros fantásticos alegóricos, ao invés de analisar o evento por um microscópio realista. O samurai mascarado representa o agente da guerra, ele se vangloria de sua beleza desconcertante, a mentira no discurso que arregimenta jovens idealistas em um sistema podre, mas esconde cicatrizes horrendas por trás da máscara. O conflito defendido pelo samurai foi o responsável por deixar a mãe em estado de pobreza extrema, sem possibilidade de trabalhar, foi o causador indireto da morte do filho. Ela sobrevive de pilhar outros como ele, mas precisa da força bruta da jovem nora. Quando a garota insinua querer largar aquela realidade e fugir com um amante, a mãe se desespera. A máquina da guerra, o verdadeiro “demônio” a ser combatido, encontra identificação na mãe, que não teria meios de sobreviver no ambiente sem a utilização da mão de obra jovem. 


O Gato Preto (Yabu no Naka no Kuroneko - 1968)
No Japão medieval, um espírito vingativo mata samurais em um vilarejo. Enviado para enfrentar a força invisível, um famoso guerreiro terá que enfrentar seus demônios. 

Assim como em “Onibaba”, o roteirista/diretor Kaneto Shindo ambienta a trama no conturbado período Sengoku, com o horror sendo despertado diretamente do sofrimento do povo com a guerra civil, mas, ao contrário do já citado, deixa de lado as influências do neo-realismo italiano e estabelece desde o início seus alicerces oníricos, abraçando com menos timidez os elementos do gênero. O clima de pesadelo é construído com a ajuda de técnicas de iluminação e interpretação utilizadas no teatro Nô, numa combinação perfeita com uma edição nada convencional, resultando em algo que desorienta os sentidos do espectador. Vale ressaltar a mensagem crítica contra o paternalismo na sociedade japonesa, simbolizada pela vingança das mulheres, uma resposta feminista para o cinema samurai da época. 


* Os filmes, com excelente material extra, estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre competente de Fernando Brito, no digistack "Obras-Primas do Terror 5", em venda exclusiva com a Livraria Saraiva.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

"Jornada nas Estrelas - O Filme", de Robert Wise


Jornada nas Estrelas - O Filme (Star Trek: The Motion Picture - 1979)
Celebrando o aniversário de cinquenta anos de “Star Trek”, revi o DVD com a Versão do Diretor, que considero a definitiva, a melhor forma de apreciar essa obra. O fenômeno “Star Wars” foi o responsável pelo interesse dos produtores em resgatar a série clássica de Gene Roddenberry para sua primeira aventura cinematográfica, mas a história de Alan Dean Foster presta reverência à grandeza reflexiva da obra-prima: “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, com o uso frequente de longas tomadas de apreciação do universo em que a equipe de heróis está inserida, reforçadas pela competência nos efeitos de Douglas Trumbull, que também foi responsável pelo clássico de Kubrick. O que muitos enxergam como um andamento arrastado, na realidade traz intrínseco nos questionamentos que propõe um peso intelectual adulto que faz as novas produções na franquia parecerem divertidos livros infantis. É fiel ao espírito dos episódios, trata com respeito os personagens principais, entrega boas tiradas de humor e esporádicas sequências de ação, com a ousadia de não se debruçar em vilões caricatos, estratégia que seria impensável na indústria de hoje.

O ritmo lento trabalha a favor da narrativa, por exemplo, após uma demorada exibição da nave Enterprise, emoldurada pela linda trilha sonora de Jerry Goldsmith, o veterano capitão Kirk adentra uma caótica ponte de comando tomada pelos barulhentos jovens tripulantes, uma nova geração que é representada pela figura de Decker, que fica indignado ao descobrir que será substituído por aquele coroa. O caso é que William Shatner, visivelmente orgulhoso de retornar ao personagem, entra no jogo de Stephen Collins, elevando consideravelmente a qualidade dos diálogos nesse conflito com olhares e gestos sutis, coisa de quem conhece plenamente as motivações emocionais que fogem às páginas do roteiro. A preocupação em jogar luz em cada cantinho da nave, detalhando situações comuns com o olhar de um pesquisador, nada mais é que uma evolução necessária das limitações técnicas da série televisiva. A nave se transforma praticamente em um personagem vivo, você se importa com o carinho que a tripulação sente por aquele patrimônio, o que faz cada ameaça ao seu funcionamento ser mais eficiente, possibilitando a força emocional da cena de sua destruição no desfecho da terceira produção.

A direção do grande Robert Wise potencializa a elegância épica da trama, a direção de arte austera, os uniformes da tripulação são perceptivelmente desconfortáveis, ao contrário das camisetas simples da década de sessenta, quase como armaduras em seu corte, o que exigia que o elenco se mantivesse num estado de alerta constante, figuras míticas imponentes, algo que se perdeu já no filme seguinte, que funciona melhor como entretenimento, mas não tem a mesma relevância. “Jornada nas Estrelas – O Filme” é uma boa graphic novel, enquanto “A Ira de Khan” é um excelente gibizinho mensal. A ideia da procura pelo criador, algo que seria retrabalhado de forma inferior no quinto filme, ganha contornos filosóficos surpreendentes ao ser compreendida pelo único membro plenamente lógico e racional: Spock, o saudoso Leonard Nimoy. Ele chora por V’Ger, ele se identifica com o desespero causado pelo vazio existencial. Somente a racionalidade e o conhecimento não bastam para que fiquemos satisfeitos, precisamos de algo mais, o mistério nos motiva a seguir caminhando inexoravelmente em direção ao fim de tudo, a sensação de fazer parte de algo maior nos conforta e alivia o fardo.  

Kung-Fu Fighting - "Operação Condor - Um Kickboxer Muito Louco"

Link para os textos do especial:


Operação Condor – Um Kickboxer Muito Louco (Fei ying gai wak – 1991)
Agente do governo é enviado a Europa e ao norte da África, para recuperar tesouro escondido pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, ele e suas três auxiliares terão que enfrentar bandidos mercenários e cumprir a missão.

Com o justo reconhecimento que terá na próxima premiação da Academia, Jackie Chan provavelmente será celebrado pelos críticos que usualmente torcem o nariz pra filmes de artes marciais. Eu sou um fervoroso apreciador do gênero, comecei esse especial em 2013 exatamente com um dos projetos mais conhecidos do ator, “Rumble in the Bronx”, e pretendo abordar diversos trabalhos dele das décadas de setenta e oitenta. Quando penso em “Um Kickboxer Muito Louco”, dirigido pelo próprio Jackie, a nostalgia me conduz às sessões televisivas frequentes no SBT, o dominical “Sessão das Dez” e o vespertino “Cinema em Casa”, com a dublagem impecável do Carlos Takeshi, eterno “Jaspion”, símbolo da minha infância. 

A sequência inicial já dá o tom de perfeito equilíbrio entre ação e humor, o aventureiro caçador de tesouros se surpreende com a generosidade dos membros da tribo selvagem, que parecem incentivar o roubo de suas pedras preciosas, até que o pobre rapaz decide matar a sede com a água sagrada do povo. Qual o castigo? A morte? Não, o casamento com a índia mais feia do local. O resultado? O herói desce uma montanha íngreme dentro de uma bola inflável, um momento que me remete à clássica corrida de Buster Keaton em “Seven Chances”. Apenas cinco minutos são suficientes para que o protagonista conquiste a empatia do espectador. É uma espécie de refilmagem superior de “Armour of God”, de 1986, que é mais lembrado como sendo o filme que quase matou o astro, em uma cena que o fez despencar do alto de uma árvore, direto para a ambulância, o que resultou em uma complicada cirurgia cerebral. 

Misturando Indiana Jones e James Bond, o roteiro cria oportunidades incríveis para sequências inacreditáveis, como aquela em que Jackie, numa motocicleta, foge de seis carros pelas estreitas ruas da Espanha, com direito a salvamento de bebê, peripécia que contou com a ajuda da equipe de dublês de Rémy Julienne, responsável por alguns dos melhores momentos na franquia do agente secreto britânico. O senso de ritmo que evidencia a segurança do diretor, aliado ao carisma do mesmo diante da câmera, garante ao filme um charme irresistível. A presença da bela Carol Cheng, vivendo a ajudante desastrada, ajuda bastante, entregando situações que parecem saídas das fitas dos Três Patetas. A cena mais lembrada é a do voo no túnel de vento, que permite ao ator uma exibição acrobática espetacular, explorando várias possibilidades cômicas. 

Sobre debates políticos televisivos

Quando escrevemos sobre filmes, livros, música, arte em geral, adentramos em um universo de pura beleza regido pelas plenas potencialidades da inteligência, tentando extrair reflexões lúdicas e que inspirem o ser humano no constante aprimoramento. Escrever sobre política no Brasil em tempo de eleição é, infelizmente, nada estimulante. Esse jogo de assessores engravatados, que envolve agressões, difamações públicas, mentiras, um sistema falido que se mantém apenas pela obrigatoriedade do voto, uma verdadeira aberração em uma nação que se diz democrática. Até mesmo alguém que não sabe sequer argumentar algo que se assemelhe a um raciocínio lógico, com a máquina política atuando, pode se tornar o candidato mais votado à presidência. Nós acabamos de ver o final dessa história. E, por incrível que pareça, aquele que sabe se expressar e possui estofo político e cultural, pode aparecer em último nas pesquisas. E, completando essa esquisita equação, a urna eletrônica não é segura, tendo sido rejeitada em mais de sessenta países. Holanda e Alemanha, por exemplo, consideram essas urnas “criminosas”. O eleitor consciente é obrigado a escolher o candidato que é menos terrível, já que as rasas opções refletem o trambique que rege esse sistema, que nutre esse círculo vicioso de corrupção.

Numa realidade mais séria e lúcida, o voto consciente seria conquistado pelo político que tivesse conseguido argumentar os motivos que o tornam, por meritocracia, o candidato certo. Ao invés de programas televisivos melodramáticos maquiados no horário eleitoral, com um roteiro pobre já desgastado, jingles e figurantes em cenas constrangedoras, os políticos agiriam sem roteiros analisados previamente pelos assessores, debatendo temas importantes com profundidade e coerência ideológica, não apenas alguns poucos segundos de réplicas e tréplicas. E nem irei comentar sobre os alívios cômicos, vergonha alheia suprema, que, de tão bizarros, chego a pensar que estou sob o efeito de alguma substância lisérgica. Os debates que ocorrem nas emissoras de televisão, por melhor conduzidos que sejam, apresentam caricaturas que parecem não saber pensar e cruzar os braços ao mesmo tempo. Quando algum começa a falar por impulso, agindo sem o roteiro memorizado, o tempo acaba. Os políticos precisam falar bastante, pois eles irão, caso eleitos, receber uma fortuna, além dos maravilhosos benefícios do cargo, pelo trabalho que intencionam realizar. Mais argumentos e coragem de questionar temas polêmicos, menos agressões, jogo sujo e consumo populista de pastéis oleosos da padaria do subúrbio, uma realidade que só visitam em época de eleição.

As pesquisas de intenção de voto, que mais parecem ferramentas de indução de voto, acabam surtindo efeito desastroso numa grande parcela da população analfabeta funcional, que decide o voto como se escolhesse o cavalo vencedor na corrida. “Ah, não vou votar no político X, ele não tem chance de ganhar”. Ganhar? Conceito equivocado. Eleição não se ganha, não é loteria ou luta de boxe. O tolo teme votar naquele que a pesquisa diz que irá receber menos votos, pois se sentiria como se tivesse apostado no cavalo errado. Sua escolha não é ditada pelo estudo das propostas e da argumentação do candidato. Analisando filosoficamente, como um sistema tão falho como esse, em uma nação carente de educação e princípios, pode resultar em algo minimamente válido? É humanamente impossível.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

"A Comunidade", de Thomas Vinterberg


A Comunidade (Kollektivet - 2016)
O cineasta mais competente saído do movimento Dogma 95, Thomas Vinterberg, após o irregular “Longe Deste Insensato Mundo”, repete a excelência demonstrada em “A Caça” com o profundamente emocionante “A Comunidade”, buscando inspiração em suas experiências pessoais de adolescente na conturbada década de setenta, época em que seus pais viveram em uma comuna. Ele parte de uma ideia simples, um casal de meia-idade, um arquiteto e uma apresentadora de telejornal, com uma filha adolescente, herdam uma mansão e decidem poupar despesas transformando o local em uma comunidade. Para Anna, interpretação brilhante de Tryne Dyrholm, aquela seria uma possibilidade interessante de injetar ânimo na relação conjugal que já estava desgastada. Mas o elemento do caos é inserido na equação quando o seu marido, vivido por Ulrich Thomsen, revela estar apaixonado por uma aluna mais jovem, Helene Reingaard Neumann emulando visualmente a Camille, de “O Desprezo”. Ao contrário da personagem de Brigitte Bardot no clássico de Godard, que via seu relacionamento conjugal desmoronar, essa femme fatale tem papel ativo na desconstrução familiar, e, por conseguinte, na constatação de que a utopia do coletivismo socialista é frágil. O marido, ao primeiro sinal de discordância do grupo com relação à entrada da namorada, perde totalmente o controle emocional e reivindica de forma arrogante a sua condição prévia de dono da casa.

O espírito libertário do período, pouco antes da Guerra do Vietnã destruir a inocência do mundo, fala diretamente aos valores que o cineasta procurou resgatar, uma camaradagem que sobrevive às desilusões e perdas naturais na vida de qualquer um, a capacidade de sorrir quando se decide aliviar o fardo dividindo-o com alguém. O desabafo tátil, o poder psicológico do toque, expressado simbolicamente na história contada à mesa sobre o experimento terrível de um rei, algo cada vez mais desvalorizado em um mundo dominado por pessoas escravas das telas de seus smartphones, é um leitmotiv que potencializa a emoção em diversos momentos, como quando as mãos da filha acalmam o desespero da mãe, ou até mesmo agindo como apelo silencioso na mesa de jantar, a mulher ferida também busca alento após a exteriorização da raiva no contato com as mãos daquela que foi responsável por seu sofrimento. Ao acordar com o som da relação sexual no quarto ao lado, acende um cigarro, visualmente compondo a noção de que ela, ainda dependente do outro, busca complementar automaticamente a satisfação de um prazer que não usufruiu. Até mesmo na consumação sexual da filha ela se torna coadjuvante indireta, com a câmera deslizando da cama ao aparelho de televisão, mostrando seu rosto na tela.

Outro tema importante trabalhado é o conceito elástico de família. A absurda desumanidade de um atendente de hospital que se recusa a dar informações ao telefone sobre um paciente para quem não é de sua família nuclear. E vale ressaltar a beleza da metáfora representada por um menino que vive a fase do amor pleno, sendo inserido no microcosmo que representa a cruel realidade do mundo adulto. Como a criança de “O Mágico de Oz”, descobrindo em tom poético que o caminho de tijolos amarelos precisa desaparecer para que a maturidade se imponha, conduzindo a um momento belíssimo ao som de “Goodbye Yellow Brick Road”, de Elton John. É impossível revelar mais sobre essa sequência sem prejudicar a experiência do espectador, mas garanto que é inesquecível. 

sábado, 3 de setembro de 2016

Buñuel, Uma Jovem e Valiosa Peça de Resistência


O surrealismo é uma atitude revolucionária diante do ordinário cotidiano, mais do que um curioso movimento artístico a ser estudado, uma convocação para que se ative o instinto inconsciente e se desligue os impulsos racionais, em suma, um instrumento crítico sociopolítico transformador altamente perigoso nas mãos certas. Luis Buñuel, até então um dedicado cronista de cinema para a Gazeta Literária de Ernesto Giménez Caballero, fascinado pelo viés poético daquela ferramenta, foi aplaudido pela burguesia francesa por sua implacável estreia como cineasta em “Um Cão Andaluz”, em 1929, uma colagem ousada de imagens impactantes sem qualquer elo lógico, a resposta agressiva de um jovem desencantado com o materialismo deturpado dessa mesma classe social que, ignorando o reflexo doentio no espelho iluminado pela lanterna mágica da arte, incorporou rapidamente o curta em suas longas e vazias conversas enaltecendo o próprio umbigo.

Com a ajuda dos colegas de elegante rebeldia, o pintor Salvador Dalí e, como fonte de provocadora inspiração, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca, fortes amizades forjadas nas salas esfumaçadas da Residência de Estudantes de Madri, o rapaz havia assinado uma declaração corajosa de caráter que praticamente incitava o revide, um panorama trepidante que obviamente não foi amenizado com a realização de “A Idade do Ouro”, no ano seguinte, um proposital insulto direcionado ao hipócrita sistema religioso, seu berço enquanto estudante na adolescência, com direito a uma sequência final que traçava uma espécie de paralelo visual entre as orgias escritas por Marquês de Sade e a figura tradicionalmente identificável como sendo Jesus Cristo, simbolizando a supressão histórica da representabilidade do feminino pela instituição. Ao expor suas chagas psicológicas em seu ataque às práticas da igreja católica ele escutou o clamor de ódio dos intransigentes escandalizados, teve seu filme banido e seu nome difamado, na tentativa de que sua voz fosse devidamente silenciada pela eternidade, tal qual Giordano Bruno, Galileu e tantos outros livres pensadores de diversas áreas. Em 1932, após um frustrante exílio criativo de seis meses nos Estados Unidos, com todas as despesas pagas pelos executivos da Metro-Goldwyn-Mayer, onde percebeu que o modo de produção da indústria norte-americana favorecia um convencionalismo preguiçoso que não o interessava, Buñuel decidiu voltar para a Espanha, financeiramente quebrado, em um momento especialmente complicado para a nação.

Após sete anos da ditadura do general Miguel Primo de Rivera, substituída conturbadamente, em 1931, por um segundo governo republicano com promessas de profundas mudanças sociais, a nação passava por um momento de atraso em todos os setores, com cerca de trinta por cento da população em estado de analfabetismo. O desemprego atingia níveis vergonhosos, a degradação lancinante destruía o espírito, enquanto a fome fustigava impiedosamente o corpo. A comarca de Las Hurdes era a representação mais evidente dessa realidade deplorável dominada pela ignorância, logo, terreno fértil para o misticismo. O local chegou a ser retratado em artigos jornalísticos do início do século vinte como sendo habitado por primitivas criaturas sub-humanas com aspecto de lobo. Nesse contexto Buñuel encontrou a matéria-prima para seu terceiro trabalho, o excelente documentário “Terra sem Pão” (Las Hurdes, tierra sin pan), de 1933, realizado com o apoio financeiro do revolucionário anarquista Ramón Acín, pintor e jornalista, que havia prometido ao amigo cineasta que patrocinaria integralmente um filme seu caso ganhasse o prêmio máximo na loteria. Como nada é por acaso, a sorte sorriu para os dois. Numa análise mais atenciosa, fica latente que o investimento era de profundo interesse do grupo anarquista, revelar ao mundo pela ótica cinematográfica de um diretor que já havia comprovado ter coragem para enfrentar a batalha, as reais condições lastimáveis do povo rural, com o interesse óbvio de provocar repulsa e revolta nos espectadores. Toda a equipe era formada por militantes da causa, inclusive profissionais que já haviam sido presos na tentativa de documentar aquilo que os dignitários da nação não desejavam que se tornasse público. Nesse intuito, a estratégia mais eficiente é que a mensagem fosse passada de forma objetiva, sucinta, potencializando o choque, uma vocação natural que se mostrou parte intrínseca do repertório de Buñuel desde o corte do olho com navalha, o “cartão de apresentação” mais corajoso da história do cinema.

É sensacional a forma como o filme sutilmente trabalha o tema com admirada reverência, elemento perceptível até mesmo na trilha sonora, mostrando os habitantes do local como valentes símbolos de resistência, ao invés do viés de coitadismo que compreensivelmente poderia ter sido utilizado. Em um dos momentos mais impactantes, o narrador revela que o professor da região entrega os pães para as crianças, pedindo para que elas comam na sua presença, por medo de que, em suas casas, o alimento seja roubado pelos pais. As famílias consideradas privilegiadas eram aquelas que tinham um porco ao longo de um ano, refeição que durava cerca de três dias. Carne de cabra era rara, apenas quando alguma perdia o equilíbrio nas ladeiras íngremes e era encontrada morta. Infecções causadas por falta de higiene no tratamento de picadas de cobra, ou o bócio que atinge crianças e adultos, parece não haver escapatória para esses bravos desamparados. A morte é o único evento que perturba a apatia miserável, corpos sendo carregados por longas distâncias para serem enterrados nos poucos cemitérios. Já próximo do desfecho, entramos em contato com anões selvagens e os retardados frutos das frequentes relações sexuais incestuosas, a câmera registra com a clara intenção de explorar o medo do desconhecido, como se utilizasse o misticismo inerente à história do local como fonte narrativa. Mas nada disso é mais triste do que o relato de uma espécie de indústria que premiava a parentalidade irresponsável. Mulheres pobres que faziam dois longos dias de caminhada até a Assistência Pública e pegavam crianças abandonadas, mantendo-as em casa apenas como forma de garantir uma pensão mensal de quinze pesetas, um valor que sustentava essas famílias.

O governo vetou a exibição do filme alegando que manchava a imagem do país e atentava contra o orgulho do povo espanhol, acusando o golpe crítico certeiro desferido pelo cineasta, atitude que quebrou definitivamente a ilusão de Buñuel com relação à república. Apenas quando a Frente Popular centro-esquerdista retomou o poder, em 1936, o documentário receberia uma licença para exibição pública, somente para ser retirado do radar novamente com o início da Guerra Civil. Outro amor de formação, o surrealismo, também começava a ruir em seu idealismo, descontente com o crescente apreço de seus colegas de filosofia pela fama, e, por conseguinte, pela busca da satisfação de outrem, atitude que ia contra os princípios fundamentais do movimento. Em 1934 ele casa com Jeanne Rucar, a mulher que ficaria ao seu lado por cinquenta anos, e começa a trabalhar nos estúdios de dublagem da Warner em Madri.

No ano seguinte, recrutado como produtor executivo pela Filmófono, companhia espanhola pioneira na tecnologia do som, defensora de um cinema popular de gêneros e mercadologicamente competitivo, o jovem se viu novamente confrontado por suas crenças e com medo de ferir sua reputação. Pela primeira vez ele teria controle artístico, como produtor, editor e diretor, mas estava confinado em um sistema regido por um baixíssimo critério. Com dor na consciência, ele aceitou a proposta impondo uma única condição: o total anonimato. Essa condição radical acabou favorecendo o empreendimento, já que os censores, alertas para toda e qualquer movimentação artística do perigoso Buñuel, não se incomodavam com o tal fulano desconhecido que assinava os projetos. A experiência durou cerca de intensos dois anos, período em que ele teve oportunidade de amadurecer profissionalmente, aprendendo na prática a importância de se alcançar o elegante equilíbrio entre os desejos autorais e a demanda de mercado, o caminho que seguiu em seus projetos futuros, a única maneira de uma nação construir uma indústria forte de cinema. Sem essa passagem pela Filmófono, provavelmente ele não teria realizado suas várias obras-primas posteriores e seu nome seria hoje reconhecido apenas como curiosidade exótica pelos estudantes mais dedicados.

O mais importante ao analisar a gênese artística de Luis Buñuel é constatar que em apenas três produções, juntas elas não somavam sequer duas horas, um rapaz nascido na aldeia de Calanda foi capaz de estabelecer mundialmente o seu nome como algo a ser temido pelos conformistas ideológicos, uma personalidade tão íntegra que não tombaria ao sabor do vento. Em um meio que prima pela insegurança, pela necessidade mercadológica da obra ser validada pela quantidade de ingressos comprados, ele era uma valiosa peça de resistência. 

* Texto escrito para o catálogo da "Mostra Luis Buñuel - Vida e Obra", ocorrida na Caixa Cultural Rio de Janeiro, dos dias 23 de Agosto a 04 de Setembro (2016).