François Truffaut dizia que Hitchcock filmava cenas de amor
como se fossem de assassinato, enquanto as cenas de assassinato eram filmadas
como cenas românticas. Eu adicionaria nesta análise genial do diretor francês
em ambos os casos o elemento do humor, que muitos equivocadamente encontram
apenas em obras mais assumidamente cômicas, como “O Terceiro Tiro”, mas que faz
parte de todos os filmes do mestre do suspense. Considero o inglês um dos pais
da Sétima Arte, junto com Georges Méliès, D.W. Griffith e Charles Chaplin. Enquanto
o mágico francês pegou o invento dos irmãos Lumière e o transformou em um
catalisador de sonhos, Griffith mostrou ser possível concatenar os sonhos em
uma narrativa, Chaplin deu a estes sonhos sensibilidade, ternura e emoção,
Hitchcock pode ser considerado a evolução natural: expandiu os limites da
realidade e criou a expectativa, o suspense. Tudo que foi realizado após
isto foi meramente um aproveitamento destes conceitos.
Ele iniciou sua carreira com quatorze anos como designer
gráfico de publicidade. Na década de vinte, começou a trabalhar criando as
telas de texto que representavam os diálogos nos filmes mudos. Por conta
própria aprendeu a criar roteiros e a editar, o que acabou levando-o a ser
assistente de direção de algumas produções inglesas do período. Dono de uma
criatividade única, não demorou muito para que os dirigentes dos estúdios o
promovessem a diretor principal. Em 1926, muito interessado pela história de
Jack, o Estripador, criou o ótimo suspense mudo: “O Pensionista” (The Lodger: A
Story of the London Fog), contando a saga de um homem (Ivor Novello) que é
perseguido por acreditarem que ele seja o famoso serial killer. Devido a uma
intensa admiração que o diretor tinha pelo movimento do Expressionismo Alemão,
se mostra aparente ao longo desta obra, claras referências ao cinema de Murnau.
Em entrevista para Truffaut, Hitchcock explica as razões que o levavam a
abordar com regularidade, histórias sobre homens culpados injustamente: “O tema
do homem acusado injustamente proporciona aos espectadores uma sensação maior
de perigo, pois eles se imaginam mais facilmente na situação desse homem do que
na de um culpado que está fugindo”. Demonstrando sua genialidade,
preocupado com a realização de uma cena (lembrando que se tratava de um filme mudo),
ele usa um efeito para mostrar os passos do pensionista no andar de cima.
Colocando um piso de vidro, facilitou para quem estava em baixo, saber que o
personagem misterioso estava caminhando de um lado para o outro em seu quarto.
Uma forma criativa de contornar as limitações técnicas, criando um efeito muito
mais eficiente que se houvesse som.
Já em “A Sombra de Uma Dúvida” (Shadow of a Doubt – 1943), o
diretor nos apresenta a jovem Charlie (Theresa Wright), que começa a desconfiar
que seu tio (que ela idolatrava) esconde segredos nefastos. Joseph Cotten
realiza neste filme, o que considero seu melhor trabalho, como o serial killer
charmoso, que casa com viúvas ricas, para depois assassiná-las. Novamente com
fortes referências ao Expressionismo Alemão (por conseguinte, com o
cinema Noir), a obra é permeada de ângulos de câmera irregulares e
variações dos tons da iluminação, representando os altos e baixos na relação
entre tio e sobrinha. Hitchcock considerava este projeto, seu melhor trabalho.
O grau de interesse que o diretor nutria pelos seus filmes estava diretamente
relacionado à admiração que o público sentia pelos mesmos. Esta preocupação com
a preservação da experiência do público, somado ao seu cuidado com os detalhes
e alto conhecimento técnico, fizeram com que ele produzisse obras refinadas e
acessíveis para plateias de todas as classes sociais.
Não existe arte mais voyeur em sua essência que o cinema.
Hitchcock sabia disto e criou “Janela Indiscreta” (Rear Window – 1954). Nele,
James Stewart vive um fotógrafo confinado a uma cadeira de rodas após um
acidente. Genialmente o mestre nos apresenta nos segundos iniciais do filme,
por intermédio de simples movimentação de câmera, elementos que explicam
perfeitamente as razões do protagonista estar naquela situação. Sem diálogos ou
narrações em offdesnecessárias, ficamos sabendo todo o necessário para nos
ligarmos empaticamente ao protagonista. Novamente com James Stewart, Hitchcock
entrega seu trabalho mais complexo: “Um Corpo que Cai” (Vertigo – 1958). A
faceta manipuladora do diretor encontra neste filme sua catarse mais vibrante.
Deixando de lado certos aspectos mais comerciais de sua filmografia, o diretor
aborda os radicalismos do amor, sua intangibilidade e loucura. Stewart vive um
detetive que descobre sofrer de acrofobia (medo de lugares altos) ao presenciar
um colega cair do telhado de um prédio. Aposentado, acaba sendo contratado por
um velho amigo para investigar a sua mulher (Kim Novak), que aparenta estar
possuída por uma ancestral suicida. Com o uso de um truque de câmera (posteriormente
chamado de “Hitchcock Zoom”), a sensação de vertigem é transmitida com
elegância e incrível funcionalidade. A ausência de um final feliz, aliada a uma
trama complexa fizeram com que muitos na época rejeitassem o filme, porém o
tempo fez justiça a esta monumental obra-prima, inclusive sendo eleita em
enquete recente e prestigiada, em um honroso primeiro lugar. Preocupado com as
críticas pouco simpáticas à complexidade estrutural de “Um Corpo que Cai”, o
diretor acabou realizando no ano seguinte sua obra mais escapista: “Intriga
Internacional” (North by Northwest – 1959). Para entender sua importância,
basta dizer que sua condução acabou inspirando o primeiro filme do agente
secreto James Bond, em 1962.
Truffaut disse certa vez: “Por dominar os elementos de
um filme e impor ideias pessoais em todas as etapas da direção, Alfred
Hitchcock possui de fato um estilo. Todos reconhecerão que é um dos três ou
quatro diretores em atividade que conseguimos identificar só de assistir a
poucos minutos de qualquer filme seu”. Isto fica bastante claro nesta aventura,
pois sua trama não possui nenhum elemento claramente engenhoso, trata-se da
clássica história do homem inocente em fuga. Porém o diretor consegue inserir
pequenos detalhes que modificam completamente a imersão na história. Cary Grant
vive um executivo que é erroneamente tido como um agente secreto e se vê
perseguido por agentes inimigos por todo o país. O detalhe que torna esta obra
algo atemporal é o desenvolvimento do personagem principal. Grant no início é
apenas um americano típico de meia idade, preguiçoso, sem uma personalidade
marcante ou brilho interior. Ao ser caçado como um agente secreto, ele torna-se
como que por osmose alguém heroico, vibrante e confiante. O próximo passo do
diretor foi se testar como realizador. Cortando consideravelmente a verba,
decidiu contar a história de Norman Bates em “Psicose” (Psycho – 1960),
primando pelo minimalismo. Fica difícil imaginar o choque que a obra causou em
sua época, posto que atualmente seus temas e estrutura narrativa já foram
copiados à exaustão. Vale lembrar que não era nada comum uma troca radical de
protagonistas, na primeira meia hora de projeção. O famoso assassinato no
chuveiro não foi marcante apenas pelo uso da trilha sonora de Bernard Herrmann
ou pelos cortes de câmera inovadores, mas sim por ser algo completamente
inesperado. Quem imaginaria que a protagonista (Janet Leigh) iria morrer logo
no início do filme?
Finalizo com o primeiro que eu me lembro de ter assistido,
ainda pré-adolescente: “Os Pássaros” (The Birds – 1963) é um exercício de
suspense dos mais intrigantes. A trama é simples: sem motivo aparente, pássaros
começam a atacar uma pequena cidade litorânea, no exato momento em que uma
jovem (Tippi Hedren) de outra cidade intenciona se envolver com um dos
moradores. O roteiro é trabalhado de forma lenta e progressiva, apresentando os
personagens, fazendo-nos conectar empaticamente com aquelas pessoas, para logo
em seguida iniciar os ataques e deixá-los completamente desamparados. Esta
aparente lentidão inicial pode ser mal interpretada como uma falha, porém
trata-se de uma aula de suspense que infelizmente muitos diretores atuais
parecem ter cabulado. Novamente abdicando de um final feliz, Hitchcock nos
apresenta uma visão apocalíptica inesquecível. Após tantas décadas destruindo o
habitat natural de outras espécies, o diretor nos deixa na posição de indefesas
vítimas de uma força sobrenatural e irrepreensível, tão bestial e inconsequente
quanto nós mesmos.
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