Federico Fellini expressava em sua arte algo muito pessoal.
Assistindo aos seus filmes conhecemos o homem por trás das câmeras, o nome por
trás do mito. Diferente dos projetos biográficos, suas qualidades e boas ações
são minimizadas, dando espaço aos defeitos e falhas. Suas fraquezas são
expostas sem medo do julgamento. Nós nos tornamos seus analistas, enquanto o
cineasta narra suas angústias deitado em um divã. Esse texto não pretende
contar a vida de Fellini, pode ser visto mais como uma breve conclusão de um
analista sobre um paciente. Começo citando uma cena de uma obra que não está na
minha lista de favoritos, mas acho que ela sintetiza magistralmente as
intenções de Fellini. Em “E La Nave Va” (1983), duas moças estão no convés de um
navio admirando o sol que já desce na linha do horizonte. O diretor deixa claro
para nós os materiais usados para criar aquele entardecer, você nota que as
moças estão sobre um estrado de madeira, sobre um tapete de plástico enrugado
cobrindo o chão. Na frente delas uma parede, com um meio disco vermelho
alaranjado representando o sol, que brilha exibindo sua artificialidade,
enquanto uma das moças comenta que a tarde está tão bonita que até parece de
mentira.
Um de seus filmes mais belos é “A Estrada da Vida” (La
Strada – 1954), onde ele se utiliza do cenário circense para mostrar o que
resulta de um encontro entre a pura brutalidade, representada pelo rústico
artista Zampano (vivido por Anthony Quinn) e a doçura inocente, papel que coube
como uma luva nas mãos de Giulietta Masina e sua inesquecível Gelsomina. O
choque entre ambos resulta em sequências que ficarão na memória do público
eternamente, evidências de que a brutalidade necessita da doçura, assim como a
doçura somente se faz percebida na presença da brutalidade. Um choque que
representa claramente a angústia de um diretor que acreditava que teria apenas
dez anos para produzir suas obras mais notáveis.
Além da angústia e desta eterna luta entre seu lado bruto e
manso, podemos reconhecer em sua obra-prima “8 ½” (1963) o Fellini inseguro,
que seu alter ego Guido (vivido por Marcello Mastroianni) tão bem personifica.
O filme retrata a crise de criatividade de um cineasta que demonstra um
esgotamento em seu estilo de vida e resolve se isolar para buscar inspiração. O
próprio título nasceu desta insegurança, pois o autor já havia realizado oito
projetos e não tinha a menor ideia do que iria fazer em seguida. Com a
crescente pressão dos produtores, nasceu esse conceito instigante que culminou
no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e homenagens como o musical “Nine”.
A sua frustração com a decadência da sociedade romana na
década de sessenta o fez criar o genial “A Doce Vida” (La Dolce Vita – 1960).
Mais uma vez falando pela boca de Mastroianni, o diretor abriu suas feridas e
deixou-as expostas, assim como os olhos do enorme peixe que havia acabado de
ser retirado do mar e que os participantes da festa hedonista (uma metáfora
descarada da sociedade) correm para ver, com latente desejo sádico. No entanto,
quando o personagem de Mastroianni, um jornalista de meia-idade, está para
perder as esperanças no futuro, aparece uma menina angelicalmente inocente que
chama por ele à distância. Como um toque de gênio, o personagem não consegue
escutá-la, devido à algazarra no local.
Assim é o cinema de Fellini, uma constante busca
por redenção e compreensão. Para nós, fica difícil explicar o que nos atrai em
seus projetos, mas eu exemplificaria da seguinte forma: como em uma linda cena
de “8 ½”, onde o protagonista que está preso em um trânsito insuportável dentro
de seu carro, faz com que sua mente o leve voando por sobre a extensa formação
de automóveis. Do alto e com o vento soprando seu cabelo, mal se ouve a
balbúrdia de buzinas abaixo. Ele finalmente encontra a paz, mesmo que irreal.
Um sentimento libertador. Ao escutarmos o relato de sua liberdade, nos sentimos
capazes de, mesmo compartilhando a frágil existência humana, romper as
barreiras e atravessar o trânsito da vida pelo alto.
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