“Lá onde a vida levanta muros, a inteligência abre uma saída”.
Marcel Proust (1871-1922) chegou a afirmar que nunca havia
assistido a um filme, aquela curiosa invenção muda que dominava as feiras e os
pequenos Nickelodeon da época, dizendo ainda que não acreditava que aquela
ferramenta conseguiria captar a vida com a mesma profundidade que a literatura.
É interessante perceber, no entanto, como sua recorrente abordagem sobre o
impacto da passagem de tempo nas relações afetivas e na personalidade de seus
protagonistas é profundamente cinematográfica em sua essência. A dificuldade de
transportar em imagens as contemplações dedicadas do autor foi um grande
empecilho na indústria, fazendo com que as tentativas de Luchino Visconti e Joseph
Losey (com roteiro de Harold Pinter) fossem interrompidas.
Adaptar os sete volumes (quase 4000 páginas) do maravilhoso “Em
Busca do Tempo Perdido”, onde Proust trabalha o tema do sentido da vida pelo
filtro das memórias, seria algo extremamente complicado. Os fatores que fazem
um indivíduo ser algo único, através da criação de sua identidade. O respirar
de um novo ar, que sendo uma constante reminiscência de sua experiência de vida,
mantém-se irremediavelmente puro. São reflexões filosóficas que surpreendem
pelo bom humor. Pérolas como: “deixem as mulheres bonitas para os homens sem
imaginação”. O autor não é reconhecido por isso, talvez porque muitos que o
celebram objetivando algum tipo de status intelectual, nunca leram com atenção os
sete volumes. Ele segue estimulando-nos a desconfiar daquela realidade proposta
nas páginas, assimilando a identidade dos personagens pelo filtro de suas
variações, atravessando o fogo cruzado entre o tempo e a memória, vista como
instrumento de aprendizado para a inteligência. O autor vê o homem como um ser
em constante evolução, indiferente às explicações nascidas das ideologias
religiosas e dos estudos científicos. O mais bonito na experiência dessa longa leitura
é constatar que após o término, ficamos com vontade de reiniciar apenas para usufruir
da retrospectiva com o acréscimo de nossas próprias memórias, um passo a frente
do autor. E posso constatar que vale cada segundo investido.
O corajoso e intensamente criativo diretor chileno Raoul
Ruiz (falecido em 2011) selecionou logo o último volume, o mais lúdico, para
transportar em seu “O Tempo Redescoberto” (Le Temps Retrouvé, d'après l'oeuvre
de Marcel Proust – 1999), conseguindo captar com sensibilidade a fusão entre o
narrador Marcel (como ele divertidamente cita no livro, esse seria seu nome
caso fosse o autor) e o romancista experiente Proust. Nos primeiros minutos,
que acompanham o autor (vivido por Marcello Mazzarella) em seu leito de morte,
podemos perceber que estamos diante da tela de um artesão, experimentando
truques visuais, com móveis que se deslocam em cena, transpondo a sensação de
que fazemos parte do resgate emotivo do personagem, que deseja profundamente
terminar sua obra, mas que também se questiona sobre a validade de tão hercúleo
esforço, já que todos aqueles que ele ama e a sociedade em que vive, irão
perecer. Seu livro irá acabar acumulando poeira em alguma estante, muitos anos
após sua morte. Ele inicia buscando conscientemente inspiração na memória
resgatada pelas fotografias, mas terminará descobrindo que o segredo reside no
poder daquelas lembranças involuntárias. A forma como o diretor utiliza esse
conceito no filme (com clara inspiração em “Ano Passado em Marienbad”, de Alain
Resnais), não ajuda a torná-lo fácil, até mesmo para aqueles que leram as
obras. Mas o esforço de acompanhar a trama é muito válido, sobretudo pelo
brilhantismo estético e pelas invenções narrativas, como portas que se abrem
para revelar o “eu” criança do personagem. Ainda mais se consideramos que ele
foi lançado em um dos períodos mais fracos em criatividade no cinema mundial.
O filme eleva sua qualidade ao depender da reação do
espectador descobrindo os elementos que o fascinaram na leitura. A Arte
justifica a existência humana, ou como Proust afirma no livro:
“... Um minuto livre da ordem do tempo recriou em nós, para senti-lo,
o homem livre da ordem do tempo. E pode-se entender que este homem deve ter a
confiança em sua alegria, mesmo que o simples sabor de uma Madeleine (bolinho
cujo sabor evoca o passado no autor) não parece lógico para conter dentro dele
as razões para esta alegria, pode-se entender que a palavra "morte"
não deve ter nenhum significado para ele, situado fora do tempo, por que ele
deveria temer o futuro?...”.
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