quarta-feira, 20 de novembro de 2013

"O Tempo Redescoberto", de Marcel Proust


“Lá onde a vida levanta muros, a inteligência abre uma saída”.
Marcel Proust (1871-1922) chegou a afirmar que nunca havia assistido a um filme, aquela curiosa invenção muda que dominava as feiras e os pequenos Nickelodeon da época, dizendo ainda que não acreditava que aquela ferramenta conseguiria captar a vida com a mesma profundidade que a literatura. É interessante perceber, no entanto, como sua recorrente abordagem sobre o impacto da passagem de tempo nas relações afetivas e na personalidade de seus protagonistas é profundamente cinematográfica em sua essência. A dificuldade de transportar em imagens as contemplações dedicadas do autor foi um grande empecilho na indústria, fazendo com que as tentativas de Luchino Visconti e Joseph Losey (com roteiro de Harold Pinter) fossem interrompidas.

Adaptar os sete volumes (quase 4000 páginas) do maravilhoso “Em Busca do Tempo Perdido”, onde Proust trabalha o tema do sentido da vida pelo filtro das memórias, seria algo extremamente complicado. Os fatores que fazem um indivíduo ser algo único, através da criação de sua identidade. O respirar de um novo ar, que sendo uma constante reminiscência de sua experiência de vida, mantém-se irremediavelmente puro. São reflexões filosóficas que surpreendem pelo bom humor. Pérolas como: “deixem as mulheres bonitas para os homens sem imaginação”. O autor não é reconhecido por isso, talvez porque muitos que o celebram objetivando algum tipo de status intelectual, nunca leram com atenção os sete volumes. Ele segue estimulando-nos a desconfiar daquela realidade proposta nas páginas, assimilando a identidade dos personagens pelo filtro de suas variações, atravessando o fogo cruzado entre o tempo e a memória, vista como instrumento de aprendizado para a inteligência. O autor vê o homem como um ser em constante evolução, indiferente às explicações nascidas das ideologias religiosas e dos estudos científicos. O mais bonito na experiência dessa longa leitura é constatar que após o término, ficamos com vontade de reiniciar apenas para usufruir da retrospectiva com o acréscimo de nossas próprias memórias, um passo a frente do autor. E posso constatar que vale cada segundo investido.

O corajoso e intensamente criativo diretor chileno Raoul Ruiz (falecido em 2011) selecionou logo o último volume, o mais lúdico, para transportar em seu “O Tempo Redescoberto” (Le Temps Retrouvé, d'après l'oeuvre de Marcel Proust – 1999), conseguindo captar com sensibilidade a fusão entre o narrador Marcel (como ele divertidamente cita no livro, esse seria seu nome caso fosse o autor) e o romancista experiente Proust. Nos primeiros minutos, que acompanham o autor (vivido por Marcello Mazzarella) em seu leito de morte, podemos perceber que estamos diante da tela de um artesão, experimentando truques visuais, com móveis que se deslocam em cena, transpondo a sensação de que fazemos parte do resgate emotivo do personagem, que deseja profundamente terminar sua obra, mas que também se questiona sobre a validade de tão hercúleo esforço, já que todos aqueles que ele ama e a sociedade em que vive, irão perecer. Seu livro irá acabar acumulando poeira em alguma estante, muitos anos após sua morte. Ele inicia buscando conscientemente inspiração na memória resgatada pelas fotografias, mas terminará descobrindo que o segredo reside no poder daquelas lembranças involuntárias. A forma como o diretor utiliza esse conceito no filme (com clara inspiração em “Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais), não ajuda a torná-lo fácil, até mesmo para aqueles que leram as obras. Mas o esforço de acompanhar a trama é muito válido, sobretudo pelo brilhantismo estético e pelas invenções narrativas, como portas que se abrem para revelar o “eu” criança do personagem. Ainda mais se consideramos que ele foi lançado em um dos períodos mais fracos em criatividade no cinema mundial.

O filme eleva sua qualidade ao depender da reação do espectador descobrindo os elementos que o fascinaram na leitura. A Arte justifica a existência humana, ou como Proust afirma no livro:

“... Um minuto livre da ordem do tempo recriou em nós, para senti-lo, o homem livre da ordem do tempo. E pode-se entender que este homem deve ter a confiança em sua alegria, mesmo que o simples sabor de uma Madeleine (bolinho cujo sabor evoca o passado no autor) não parece lógico para conter dentro dele as razões para esta alegria, pode-se entender que a palavra "morte" não deve ter nenhum significado para ele, situado fora do tempo, por que ele deveria temer o futuro?...”.

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