1 - Mãe! (mother!), de Darren Aronofsky
"... O símbolo do criador sendo representado como poeta escritor
é muito eficiente, criação artística e divina, há uma camada de interpretação
menos alegórica que permite identificar a trama como um tratado sobre as
dificuldades do processo criativo e o desejo narcisístico de ser reconhecido
pelo trabalho. O bebê que é entregue à massa de adoradores, o livro que
finalmente vai ser lido por outrem, o esforço do autor e o abandono do material
que agora será adotado por cada leitor. Mas o viés religioso é muito mais
instigante. O bebê Jesus, os seus ensinamentos, desvirtuados por vários
interesses baixos, o pastor que fala em nome do criador e faz fortuna vendendo
sua imagem. O mesmo povo que mata o bebê por negligência, no torpor da adoração
excessiva, divide ele em pedaços e ingere sua carne em ritual, a celebração da
falsa aparência, enquanto praticam o oposto do que ele pregou, destruindo a
casa em sua ruidosa passagem, literalmente estuprando a mãe Terra. A personagem
vivida por Kristen Wiig, a editora/apóstola, está pronta para utilizar os
escritos do autor e lucrar em seu nome, uma organização que busca apenas
conquistar o poder e manter-se relevante, injetando culpa, medo e penitência
como elementos de controle social e político. E, num gesto de incrível coragem,
Aronofsky mostra ela no terceiro ato sendo a fria líder armada em uma chacina, as
guerras santas, o dedo que aperta o gatilho, ou se omite quando é conveniente. Uma
obra questionadora, que desafia o público e estabelece tensão na medida certa
para satisfazer até mesmo aqueles interessados apenas no elemento do
entretenimento. Ao ousar novamente em um produto mainstream, o diretor prova
que ainda há vida inteligente na indústria..."
2 - A Criada (Ah-ga-ssi), de Chan-wook Park
"... Adaptando com liberdade poética o livro Fingersmith, de Sarah Waters, o diretor sul-coreano Chan-wook Park demonstra tremendo refinamento estético e implacável ousadia, além de perfeito senso de suspense, sem receio de abraçar o erotismo da obra. Uma experiência que deve ser apreciada com o mínimo conhecimento sobre sua trama..."
3 - O Cidadão Ilustre (El Ciudadano Ilustre), de Gastón Duprat e Mariano Cohn
"... Mas há um elemento que compensou todos os absurdos vividos
por ele, uma réstia de luz que brotou de onde menos se esperava, o jovem
atendente do hotel, educado, de fala mansa, que, com toda delicadeza, ofereceu
seus despretensiosos escritos para a avaliação do visitante. Naquela cortês
figura que os clientes arrogantes nunca valorizam reside a matéria nobre que
jamais será reconhecida naquela cidade, o sonho profissional que nunca será
estimulado, a força de espírito que será pisada até se tornar uma lembrança
melancólica em uma rotina frustrante, o reflexo no espelho do veterano, a mão
estendida que implora por ajuda em uma massa de zumbis. E o homem, esgotado e
pronto para abandonar novamente aquele esgoto a céu aberto, dedica então
preciosos minutos para oferecer ao garoto o melhor presente de sua vida:
esperança. Se ele conseguir salvar pelo menos um indivíduo valoroso, a viagem
terá valido a pena..."
4 - Clash (Eshtebak), de Mohamed Diab
"... O diretor egípcio do excelente Cairo 678 retorna em grande estilo, mais maduro e seguro em seu ofício. Nunca um espaço cênico tão reduzido serviu para explorar tantas questões sociopolíticas fundamentais. É uma aula de cinema, com baixo orçamento e um ritmo vertiginoso. Filme de gente grande para gente grande..."
5 - Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight), de Barry Jenkins
"... Acordar sabendo que a sociedade o rejeita de diversas
formas, excluído por ser pobre e negro, agredido na escola por ser
introvertido, internamente incapaz de compreender sua homossexualidade,
obrigado a medir cada gesto, silenciar impulsos, sem poder contar com a
estabilidade emocional de uma mãe (Naomie Harris) entregue ao vício em crack,
esse é o cotidiano do pequeno Chiron. A sua única figura paterna, um traficante
de drogas que o encontra arredio, fugindo do ataque de seus colegas, alguém que
enxerga nos olhos da criança a pureza que outrora guiava suas ações, antes do
mundo o bestializar. O homem, vivido impecavelmente por Mahershala Ali, tem
consciência de que faz parte da engrenagem que está destruindo o garoto, a
culpa o humaniza, evitando inteligentemente o estereótipo..."
6 - Corra! (Get Out), de Jordan Peele
"... Ao perceber o carro de polícia se aproximando na cena do
crime, o rapaz negro, apesar de estar consciente de sua inocência, levanta os
braços aguardando a injustiça do sistema. O ato de viver em alerta constante, o
medo de se permitir confiar em alguém, Jordan Peele, roteirista/diretor em sua
obra de estreia, impressiona pela segurança com que trabalha os elementos
tradicionais do gênero terror, focando nessas questões sem ser panfletário,
equilibrando com desenvoltura na equação os alívios cômicos..."
7 - Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake), de Ken Loach
"... O relacionamento de amizade formado entre Daniel, Katie e
seus filhos, elemento que brota naturalmente a partir de um simples gesto de
carinho dele com a jovem, um olhar atento quando todos fingiam não perceber sua
presença, proporciona momentos de linda delicadeza e refinado simbolismo, como
a estante feita à mão na esperança de que suporte no futuro o peso dos livros
acadêmicos da amiga, a salvação pela cultura..."
8 - La La Land: Cantando Estações (La La Land), de Damien Chazelle
"... A cena inicial sintetiza uma das propostas do filme, a
proposta mais óbvia, a celebração do gênero musical, a importância de se
apreciar a beleza de suas convenções. O ato antinatural de contar uma história
utilizando o canto e a dança, a reclamação mais comum dentre os detratores de
musicais, apenas agrega mais possibilidades criativas. É preciso ter
sensibilidade. A sociedade está cada vez mais insensível, impaciente e
intolerante, mas a música está sempre presente, de alguma forma, até mesmo no
alarme de mensagens do celular. Ao optar por dar o tom da trama mostrando
vários motoristas entretidos musicalmente, enquanto aguardam o trânsito fluir,
Damien Chazelle evidencia a onipresença melódica que é capaz de nos conduzir
para a infância, ou ajuda a relembrar amores perdidos e marca momentos
especiais, nos faz rir e chorar, em suma, enverniza a vida com a matéria de que
são feitos os sonhos..."
9 - Doentes de Amor (The Big Sick), de Michael Showalter
"... O choque de culturas já seria interessante o suficiente, a
angústia do rapaz que é guiado pelos pais egoístas à uma escolha profissional
indesejada e encontros românticos arranjados em que o amor é o elemento menos
importante na equação. Se ele demonstrar interesse em uma garota que não seja
de sua cultura, a família se sente envergonhada e rompe a relação de afeto com
o filho. É a tradição de seu país, assim como a oração diária que ele finge
fazer enquanto checa os vídeos engraçados na internet, um cabresto
social/religioso que pode ter profunda relevância para seus pais e irmãos, mas
que não significa absolutamente nada em sua vida. A forma como o texto orgânico
trabalha a questão, aliada à entrega incrivelmente natural do elenco, faz com
que em poucos minutos o espectador esteja conectado emocionalmente aos
personagens, o que é essencial para a eficiência narrativa do ponto de virada,
quando o fator da imprevisibilidade conduz a trama além das convenções usuais
do gênero da comédia romântica..."
10 - Frantz, de François Ozon
"... Quando é revelado o real motivo que levou Adrien a visitar a
lápide de Frantz, o filme ganha contornos poéticos, revelando-se um bonito
conto sobre o poder do perdão e da mentira como forma de arte. Os pais de
Frantz sorriem mantidos na ignorância plena, Anna enfrenta seu medo e revela
seu sentimento, algo tão forte que sequer a rejeição enfraquece, muito pelo
contrário, no delicado desfecho, consciente do efeito curador da mentira
contada por Adrien, com a fotografia colorida ressaltando o futuro promissor
que se revela no horizonte, livre da culpa, a jovem agradece à pintura por
mantê-la viva..."