quinta-feira, 28 de setembro de 2017

"A Verdade", de Henri-Georges Clouzot


A Verdade (La Vérité - 1960)
Quando o produtor Raoul Lévy sugeriu ao diretor que trabalhasse com a maior estrela francesa da época, Brigitte Bardot, ele sabia que apenas um profissional competente e sério como Clouzot seria capaz de subverter a imagem da jovem, com coragem para contrariar as expectativas do público, acostumado a enxergar ela apenas como um símbolo sexual. “A Verdade” até entrega boas doses de sensualidade nos flashbacks, mas, em essência, é um impecável drama de tribunal. A atriz teve nas mãos, pela primeira vez, um material que verdadeiramente a desafiava. Ela vive a esfuziante Dominique, acusada pelo assassinato de seu amante, vivido por Sami Frey, que era noivo de sua tímida irmã. Enquanto acompanhamos o seu julgamento e os depoimentos das testemunhas, somos apresentados à jornada que a conduziu àquele terrível destino.

O roteiro foi escrito por Clouzot e sua esposa, a brasileira Vera Gibson-Amado, que faleceria pouco tempo depois. O toque de gênio é fazer com que a opinião do espectador sobre a jovem mude a cada situação nova revelada, o texto nos incita a julgar cada ação na tela de forma intempestiva, exatamente como a sociedade faz no macrocosmo, tentando reduzir a complexidade de sentimentos humanos a um padrão facilmente identificável, a garota é boa ou má, sem tons de cinza. E a trama envolve esta simplificação com o manto da crueldade, a tendência natural ao apedrejamento, a negação da empatia, o distanciamento arrogante das vaidosas figuras de autoridade, advogados, juiz e júri, que enxergam a garota como estatística, como mais um caso dentre tantos. O que importa, ao final do dia, é se mostrar superior, os advogados de defesa e de acusação buscam respeitabilidade, o embate dura até a martelada final, os dois defendem apenas o dinheiro na conta. Se a jovem será condenada à morte, ou não, tanto faz, outros clientes virão. Em uma brilhante cena, os dois profissionais, no calor da silenciosa arena de batalha, conscientemente omitem por conveniência trechos de uma carta que está sendo lida, moldando os fatos sem qualquer remorso. Faz parte do trabalho. Qual verdade importa para eles?

Dominique roubou o noivo da irmã com a intenção clara de agredir ela, sempre tão ajuizada e meiga, mas o rapaz também agiu errado, ele não se preocupou com os sentimentos da noiva. Após conseguir seu objetivo, ela se desinteressou por ele, voltou para a sua rotina de festas e muita paquera, o rapaz se revoltou, ficou enciumado. É quando o filme entrega uma de suas cenas mais bonitas, de forte simbologia. Ele é maestro, vive da música, da arte, gosta de controlar tudo. Ela, uma força da natureza, desapegada das normas sociais, livre. Abandonada, aquela que gargalhava na cara do conservadorismo, aquela que acreditava ser tão autossuficiente, entra escondida em seu local de trabalho e chora estupefata ao ver ele regendo. A grandeza daquele som, tão diferente de tudo o que ela costumava escutar, ativa algo em seu íntimo que nunca havia sido estimulado. O amor genuíno, sem se importar com competição infantil por atenção, sentimento que não se esvai ao não ser correspondido, já que não depende de aceitação, ele simplesmente existe. Este momento engrandece ainda mais o desfecho brutal da obra, adicionando camadas preciosas, evidenciando o quão frágil é o conceito do julgamento. 

Os jornalistas que cobriam o caso, antes mesmo das últimas palavras serem ditas, já abandonaram o local, o que importa é a manchete, o que importa é ser o mais rápido a entregar a matéria. O material humano nesta equação é lixo. 

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

"Coração Satânico", de Alan Parker


Coração Satânico (Angel Heart - 1987)
A minha mãe chegou do trabalho uma tarde, lá no início da década de 90, dizendo que tinha pegado emprestado com uma colega uma fita com filmes de terror, coisa pesada, tramas demoníacas. Quando minha contraparte infantil já estava praticamente afundando na própria saliva, ela displicentemente afirmou que eu não devia ver. Aquele argumento era uma ordem direta para que aquele VHS se tornasse imediatamente um Santo Graal em minha mente. Tudo naquilo era mágico, o dia que havia sido tão desinteressante, em questão de minutos, criou material para que se eternizasse em minha memória, como o texto que agora escrevo comprova. Os títulos dos três filmes escritos com caneta vermelha nos adesivos: “Coração Satânico”, “Warlock - O Demônio” e “A Catedral”. O segundo não era lá grande coisa, mas eu fiquei apavorado com o primeiro e o último, dirigido pelo italiano Michele Soavi. Vi os três em sequência, sem intervalo nem para beber água. Anos mais tarde eu me interessei em ler o livro original, escrito por William Hjortsberg, mas sempre adiei, não encontrava em sebos e acabei esquecendo com o tempo. Tive a oportunidade de conhecer a obra agora, com o lançamento de luxo pela editora “Darkside”, que recomendo sobremaneira. 

O diretor Alan Parker abraçou o estilo neo-noir com segurança invejável, creio que apenas Ridley Scott conseguiu feito similar, com “Blade Runner”, este perfeito equilíbrio entre estética, conteúdo e execução. A mistura de aventura detetivesca, com forte inspiração nos trabalhos de Raymond Chandler, com o horror fincado no ocultismo, garante uma aura diferente de tudo o que o gênero apresentava na época, raras exceções como “Hellraiser” e, com menos intensidade, “Os Olhos da Cidade são Meus”, lançados no mesmo ano, contrastavam bastante com o auge da onda “terrir”. Apostar em algo tão sombrio, tão adulto, não parecia comercialmente inteligente, a garotada queria rir depois de cada susto. E não há alívio cômico algum em “Coração Satânico”, apenas o devastador relato da jornada de um homem às profundezas do inferno.

Mickey Rourke vive Harry Angel, um detetive que aceita um serviço aparentemente simples, após uma enigmática conversa com um homem de poucas palavras e unhas enormes e pontudas, grande momento de Robert De Niro, mas que rapidamente se percebe envolvido até o pescoço em uma série de assassinatos envolvendo magia negra e uma seita demoníaca do Harlem, em plena década de cinquenta, período dominado pelo racismo declarado. Sem revelar muito, para não estragar a experiência de quem verá pela primeira vez, afirmo que o conceito por trás do desfecho é dos mais corajosos que o gênero já entregou, especialmente considerando que atualmente vivemos um tempo culturalmente marcado por histórias psicologicamente infantilizadas. Auxiliado muito pela trilha sonora jazzística de Trevor Jones, cujos temas evocam a essência primitiva do ser humano na busca pela natureza do mal, comandados pelo saxofone de Courtney Pine, dos Jazz Warriors, o resultado potencializa a atmosfera suja, proibida, o sexo como elemento de ritual, o corpo se debatendo ao tomar consciência da violação da alma, a música rimando com os símbolos frequentes, galinhas sacrificadas, o pastor evangélico que desavergonhadamente vende a palavra divina (“se você acredita em Deus, abra sua carteira”), as pás do ventilador que lentamente mudam de direção indicando que algo antinatural ocorre, o pentagrama invertido, sinais que ganham pontos em revisão. 

Alan Parker, de “O Expresso da Meia-Noite”, mestre em construir climas absurdamente opressivos sem firulas técnicas, estabelece um tom perturbador que gradativamente ganha contornos de pesadelo, com sua lógica impenetrável e seu senso de perdição constante. Revisto hoje, trinta anos depois de sua estreia, não envelheceu sequer um dia. Obra-prima do terror que segue desafiando seu público.


* A editora "Darkside" está lançando o livro "Coração Satânico", de William Hjortsberg, com a qualidade extrema que a consolidou no mercado nacional. 

terça-feira, 26 de setembro de 2017

"Cavadoras de Ouro", "Serpente de Luxo" e o cinema pré-code em Hollywood


Cavadoras de Ouro (Gold Diggers of 1933 – 1933)
Serpente de Luxo (Baby Face – 1933)
A década de 30 é a minha favorita no cinema por vários motivos, a riqueza única dos projetos crepusculares do pré-code é um deles. O breve período entre os primeiros experimentos sonoros e a censura do código de produção é fascinante, os roteiros abordavam corajosamente temas como prostituição, drogas, homossexualidade, violência extrema e promiscuidade. “Monstros”, de Tod Browning, grande exemplo, protagonizado por artistas de circo com deformidades físicas reais, o tipo de obra que jamais receberia sinal verde hoje em dia. O "Código Hays", como ficou popularmente conhecido, como toda atitude nascida do conservadorismo hipócrita, sempre reforçado pela voz de um pregador religioso, buscava envolver Hollywood no manto da moralidade dos homens de bem da época. Alguns diretores mais ousados, como Otto Preminger, ajudaram a enfraquecer este grito de estupidez, forçando os limites do que era aceitável mostrar em seus filmes. Após a censura, até mesmo a simples cena de um casal que compartilha a mesma cama estava fora de questão. Dentre todos os clássicos que amo nesta fase, destaco o musical “Cavadoras de Ouro” e o drama “Serpente de Luxo”.

A indústria ainda estava aprendendo a trabalhar a linguagem do musical de forma visualmente interessante, que fugisse do teatro filmado das primeiras tentativas, quando o coreógrafo Busby Berkeley demonstrou que havia esperança em “Whoopee! ”, de 1930, belo cartão de visitas. Ao representar com sua visão caleidoscópica os bastidores da Broadway em “Rua 42” e “Cavadoras de Ouro”, lançados no mesmo ano, ele injetou frescor no gênero. Com direção do sempre competente Mervyn LeRoy e a presença marcante de Joan Blondell, Aline MacMahon, Ruby Keeler, Dick Powell e Ginger Rogers, a trama se alimentava do drama da grande depressão para mostrar que a arte é capaz de resgatar a dignidade do indivíduo. Existem vários momentos maravilhosos de insinuação de nudez, vestidos reveladores, mas há uma sequência musical que é inesquecível pelo alto nível de erotismo, “Pettin’ in the Park”, em que um bebê maroto, vivido por Billy Barty, um anão de nove anos, age como sorridente voyeur ao espiar mulheres trocando de roupa, e, como se já não bastasse, finaliza com um rapaz utilizando um abridor de latas para atravessar a armadura de castidade de uma garota. E vale ressaltar também a opção por terminar o filme em tom amargo e intensamente crítico, “Remember my Forgotten Man”, cantada por Joan Blondell, quebrando todas as regras, utiliza o palco como janela para a realidade brutal dos veteranos da Primeira Guerra Mundial, mentalmente perturbados e viciados em drogas consumidas no tempo em serviço, que não conseguiam se integrar de volta à sociedade. A grandeza deste desfecho me arrepia e me emociona sempre em revisões. 

Em “Serpente de Luxo”, com direção de Alfred E. Green a partir de uma história de Darryl F. Zanuck, magnata da indústria de cinema que sabia exatamente do que estava tratando, Barbara Stanwyck vive Lily, uma jovem de família pobre que foi explorada durante a infância e adolescência pelo pai, um jogador bêbado que a oferecia sexualmente para amigos influentes em troca de favores políticos. Chico, a empregada vivida por Theresa Harris, havia acabado de ser despedida por quebrar uma bandeja de taças, quando a jovem parte para cima do pai em defesa dela, um laço de amizade com clara insinuação de homossexualidade trabalhado no roteiro que, especialmente em um período intensamente racista, merece ser salientado pela tremenda coragem. Lily então decide subir socialmente na vida revidando sem piedade os abusos sofridos, aconselhada pelas leituras de Nietzsche, devolvendo na mesma moeda, explorando todos os homens que encontra pela frente. Ela, em uma sequência visualmente brilhante, galga rapidamente degraus no prédio do banco em que trabalha ao se oferecer sexualmente para seus superiores, com a câmera acompanhando sua jornada pelo lado de fora do edifício, evidenciando as melhorias de cargo. A natureza da protagonista vai contra tudo o que os censores tentavam celebrar na época.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Mostra "Elvis é Joia", em dezembro, no RJ

Em dezembro, eu serei o curador da mostra no Cine Joia (RJ), cinco noites, cinco filmes. Antes de cada sessão, eu irei apresentar o filme, contar e CANTAR a vida do eterno rei do rock. Em breve, mais informações sobre o evento.


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Palestra "O Cinema por Octavio Caruso" e exibição do curta "Se" no Cine Joia (Copacabana - RJ)


Que momento lindo, verdadeiramente inesquecível, o evento foi um sucesso! O dia 20 de setembro de 2017 ficará guardado para sempre em minha memória. Agradeço a cada pessoa que me emocionou com sua presença. Abaixo, algumas fotos desta noite especial.


Tereza Filardy, Eduardo Doria, Teresa Cristina e Mônica Foroni, elenco do curta "Se".


Com Zaira Zambelli, minha primeira professora de teatro (em 2002).
Com Julio Lellis, que me dirigiu no longa "Histórias Íntimas".



sexta-feira, 15 de setembro de 2017

"It: A Coisa", de Andrés Muschietti


It: A Coisa (It - 2017)
O ano está excelente para o horror, “It: A Coisa” é mais um título que não tem prazo de validade curto, merece constar nas listas de melhores adaptações das obras de Stephen King, mérito do diretor argentino Andrés Muschietti, responsável pelo arrepiante cartão de visita chamado “Mamá”, de 2008, curta que em apenas três minutos conseguiu atrair a atenção dos produtores da indústria norte-americana, que o escalaram para comandar também a versão em longa-metragem lançada cinco anos depois. A primeira adaptação do livro foi uma minissérie em dois episódios bastante fraca, que alternava entre o núcleo infantil e suas contrapartes adultas e só se salvava pela presença irretocável de Tim Curry, vivendo o palhaço Pennywise.

A decisão de focar toda esta primeira parte em apenas um período temporal foi muito inteligente. Agora a responsabilidade não precisa pesar tanto nos ombros de Bill Skarsgård, o grupo de crianças é encantador, o clube dos perdedores, cada uma representando uma característica que socialmente é vista como obstáculo, o gago, o asmático, o gordinho, o magricela de óculos, em suma, indivíduos que enfrentam diariamente a estupidez do bullying escolar. E o roteiro de Gary Dauberman, Chase Palmer e Cary Fukunaga consegue retratar este aspecto com tremenda sensibilidade, verdadeiramente emocionando, como no momento em que a menina bonita encontra o caderno do gordinho sem assinaturas e decide demonstrar carinho. Estes pequenos gestos, situações simples, vão construindo arcos narrativos sólidos, conduzindo o público a se importar, de fato, com o bem-estar deles. A reconstrução de época, o resgate da nostalgia da geração dos anos oitenta, não soa artificial como em “Stranger Things”, ou “Super 8”, que se preocupavam demais com a estética, o figurino, mas falhavam em captar a essência libertária e o senso de humor despretensioso. Muschietti evidencia as referências, Molly Ringwald é citada, toda a aura de ameaça representada pelo palhaço reverbera os ataques oníricos de Freddy Krueger, a camaradagem orgânica que se estabelece entre as crianças remete à “Patrulha B.R.A.T.”, “Conta Comigo”, “Os Goonies”, fruto de uma geração que cresceu escutando músicas infantis que enalteciam o poder da amizade e a importância de lutar pela honra. O que as crianças escutam hoje?

A “coisa” representa o medo em duas fases distintas na vida em que a insegurança parece tomar o controle, quando a criança percebe estar amadurecendo e quando o adulto encara a proximidade da finitude, elemento que engrandece o livro e que é inteligentemente retratado no filme, com a computação gráfica possibilitando a pluralidade de versões que ele pode assumir na mente de cada vítima. O monstro se alimenta da insegurança, o seu objetivo é fazer nascer no espírito puro o medo, ele se mostra presente nos momentos em que o indivíduo se mostra existencialmente fragilizado diante do desconhecido, logo, ao encontrar crianças marcadas a ferro e fogo pela exposição diária à estupidez de seres sem empatia, psicopatas em estado embrionário, o agente do mal encara pela primeira vez a resistência. A forma como o roteiro trabalha as sequências de horror não é altamente original, nem precisaria ser, exatamente por tratar do medo como instinto primitivo, ele se apoia em convenções como jump scares e efeitos sonoros alarmantes, com instigante utilização das sombras, mérito da fotografia de Chung Chung-hoon, a execução é impecável. 

"Loja do Doido", de John Paddy Carstairs


Loja do Doido (Trouble in Store - 1953)
Norman Wisdom, Norman Sapiência, sobrenome perfeito para a comédia, especialmente considerando que o tipo que o tornou famoso é um tremendo pateta, espécie de Jerry Lewis britânico que nunca chegou a ser muito conhecido no Brasil, apesar de ter salvado a indústria de seu país durante a década de cinquenta.

O garimpo na internet me possibilitou entrar em contato com suas obras, que não foram lançadas por aqui nem em VHS. Ele fez mais de quinze filmes, foi citado por Charles Chaplin como seu “palhaço favorito”, mas a qualidade das obras varia muito, o seu melhor momento está registrado em “Loja do Doido”, a sua premiada estreia, em que recebeu o BAFTA de revelação mais promissora do ano, um exagero, grande parte do mérito da obra está na criatividade visual da direção, gags como a do carro e da bicicleta logo no início. A voz aguda dele em situações de desespero, a gargalhada contagiante e a personalidade ingênua são características muito similares às que facilmente identificamos no tipo que Lewis já defendia nas produções da Paramount com Dean Martin, mas é possível que Frank Tashlin tenha se inspirado neste filme para trabalhar o conceito de “Errado pra Cachorro”, realizado dez anos depois e protagonizado por Lewis, também ambientado em uma loja de departamentos.

A trama é simples, Norman, que trabalha no almoxarifado, conhece o novo chefe e já comete uma tremenda gafe, o que faz com que seja despedido. Ele então passeia pela loja, tomando laranjada num saloon estilizado do velho oeste, ajudando indiretamente nos furtos de uma idosa (a respeitada Margaret Rutherford) bastante ousada, declarando desajeitadamente seu amor de forma musical para uma jovem atendente, até que consegue seu emprego de volta, o que abre diversas possibilidades cômicas, pastelão de alto nível, como a ótima sequência em que tenta provar sua competência como vitrinista. 

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

"Na Mira do Atirador", de Doug Liman


Na Mira do Atirador (The Wall - 2017)
Com esta pérola ambientada em 2007, na fase crepuscular da guerra do Iraque, Doug Liman prova que é um dos mais competentes cineastas em atividade, construindo tensão utilizando espaço cênico reduzido, a parede em ruínas que serve como proteção, apenas dois atores e um terceiro personagem que se comunica por rádio. E considerando que o soldado vivido por John Cena é abatido logo nos primeiros minutos, o roteiro de Dwain Worrell tem o desafio de prender nossa atenção por oitenta minutos, sem apelar uma única vez para recursos convencionais como flashbacks ou trilha sonora emotiva, apoiando toda a carga dramática nos ombros de Aaron Taylor-Johnson, excelente ao transmitir, entre uma teatral exibição de bravata patriótica e outra, a fragilidade inerente à motivação de sua presença naquele inferno.

Como todo bom filme de guerra, o interesse maior está em evidenciar quão estúpida e sem sentido é aquela realidade. Apesar do péssimo título em português, simplificação que, como sempre afirmo, ressalta o baixo nível educacional do brasileiro, a mensagem poderosa reside na metáfora da parede que separa o soldado norte-americano e o atirador de elite iraquiano (voz de Laith Nakli), a incapacidade de um compreender o outro, os olhares turvos pelo véu de manipulação doentia e gananciosa que os posicionou naquela situação. “Irônico, a mesma parede que seu país veio destruir, agora você tenta a todo custo evitar que caia. Esta parede em que você se esconde já foi uma escola. ” O diálogo sintetiza a riqueza crítica do texto, algo pouco usual em obras do gênero, quase sempre movidas pela construção de cenas de ação progressivamente mais empolgantes. Em “Na Mira do Atirador”, o estímulo intelectual é mais contundente que qualquer explosão.

A voz tranquila do caçador que demonstra conhecer mais sobre a cultura norte-americana do que aquele que teoricamente está lá para defender a pátria, a opção consciente por tomadas longas que intensificam a sensação de frustração crescente da vítima, a fotografia bruta de Roman Vasyanov emulando o torpor causado pela exposição ao sol ardente do deserto, elementos que engrandecem o resultado.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Sobre o caso da exposição no Santander Cultural

Um pouco de lucidez, uma reflexão simples: O ato de censurar arte é sintoma de um sistema desprezível composto por indivíduos claramente desequilibrados emocionalmente, movidos pelo instinto baixo de traçar uma linha imaginária na areia e defender que algo não deve ser considerado relevante (questão de opinião que deve ser respeitada) e, por conseguinte, não merece existir (algo indefensável). Nem mesmo o argumento moralista utilizado desta feita é novidade, a Alemanha nazista e sua exposição "Arte Degenerada" já segregava pintores como Picasso e Matisse na década de 30. Ray Bradbury mostrava em seu "Fahrenheit 451" uma sociedade distópica em que todos os livros eram queimados, obra adaptada para o cinema por François Truffaut em 1966. O tempo passou, mas os seres humanos seguem chafurdando na lama da estupidez. É vergonhoso que este tipo de coisa ainda suscite discussões em 2017.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

"Um Acidente de Caça", de Emil Loteanu / "Cossacos de Kuban", de Ivan Pyryev


Um Acidente de Caça (Moy Laskovyy i Nezhnyy Zver – 1978)
Adaptado da novela de Anton Chekhov, publicada como folhetim em 1884-85 e considerada precursora do romance policial psicológico, o filme penetra no vazio moral da aristocracia decadente ao narrar o drama da jovem Olga, filha de um servo, cobiçada por três homens de meia-idade.

O primeiro elemento que emociona na obra é a trilha sonora maravilhosa composta por Eugen Doga, especialmente a valsa de casamento, que atravessou a fronteira cinematográfica e entrou na cultura popular, tendo sido escolhida em 2014 pela UNESCO como a quarta obra-prima musical do século vinte. A sequência que a apresenta ao público esbanja requinte, qualidade perceptível até nas cenas filmadas em ambientes claustrofóbicos, com a câmera isolando o rosto da jovem Olga (Galina Belyaeva) durante a dança, evidenciando em sua expressão a satisfação por ter conquistado finalmente o status social de nobreza que sempre desejou. Ela, a terna besta do título, em sua inconsequência adolescente, brinca com os sentimentos dos três adultos, que enxergam nela a glória perdida de uma aristocracia em ruínas, a projeção saudável e radiante de seus ímpetos de poder. Os pilares podem estar descascando, o torpor do álcool já não consegue mais ser controlado, o único prazer advém da caça, do ato de abater seres incapazes de se defender. Aquela bela jovem, sem esforço algum, faz deles presas patéticas. A fotografia de Anatoliy Petritskiy, responsável pelo “Guerra e Paz”, de Bondarchuk, agrega uma aura onírica sombria, a presença constante da morte à espreita, tragédia anunciada, reforçada pelo peso que cada componente do elenco injeta no texto, algo que felizmente afasta o tom de melodrama que poderia ter sido adotado por um cineasta menos competente. É um grande filme que merece ser mais conhecido pelo público brasileiro.



Cossacos de Kuban (Kubanskie kazaki – 1950)
Ambientado nas estepes do rio Kuban, nos primeiros anos do pós-guerra, o filme conta a história de dois kolkhozes (cooperativas agrícolas) que competem para ver quem consegue colher mais trigo. Realizado em cores, foi a maior produção musical do cinema soviético.

Como peça explícita de propaganda, um primor em cada detalhe, a sequência inicial nas montanhas representa muito bem a utopia comunista de Stalin, com os trabalhadores agrícolas sorridentes a cantar, enquanto na vida real o povo passava fome. Ao contrário de Eisenstein, que encenava a revolta popular com sujeira e agressividade, o gênero que realmente servia ao propósito da máquina comunista era o musical, o único que satisfazia plenamente o interesse em glorificar/mitificar o ideal de seus pensadores, como “Volga-Volga”, de 1938, não por acaso, o filme favorito de Stalin. “Cossacos de Kuban” foi lançado já na fase crepuscular, talvez por isto seja tão desesperado, tão forçado, o desejo de imprimir felicidade excessiva em cada cena pintada em cores vibrantes. Era a tentativa dos soviéticos de seguirem o molde industrial de Hollywood.


* Os filmes estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "CPC - Umes Filmes".

domingo, 10 de setembro de 2017

"O Cair das Folhas", de Alice Guy Blaché

Alice Guy Blaché
O Cair das Folhas (Falling Leaves - 1912)
Em 22 de Março de 1895, a francesa Alice Guy Blaché é convidada pelos irmãos Lumière para testemunhar uma demonstração do cinematógrafo. No ano seguinte, apaixonada por aquela nova ferramenta que, ao contrário dos seus anfitriões, enxerga como potencial recurso de entretenimento, ela escreve e dirige “La Fée aux Choux”, com apenas sessenta segundos, mas pioneiro na utilização da narrativa ficcional, quando o usual era captar cenas comuns do cotidiano. Ela foi a responsável por inserir teatralidade na equação. Quase sempre eclipsada por Georges Méliès nas páginas da história, ela teve papel fundamental no processo inicial de amadurecimento desta arte, fazendo questão de manter total controle criativo em suas produções, da escolha de figurinos, passando pela seleção de elenco, até a pesquisa para encontrar as locações adequadas. Infelizmente, grande parte de seus trabalhos foram perdidos, mas aqueles que sobreviveram seguem inspiradores. Como admirador dos textos de O. Henry, gosto especialmente do curta “O Cair das Folhas”, inspirado livremente em um de seus contos mais bonitos: “The Last Leaf”, que também foi adaptado em “Páginas da Vida”, de 1952.


A trama simples evoca a pureza da criança. Ao escutar o médico da família informar elegantemente que sua irmã mais velha, com tuberculose, “morrerá ao cair da última folha de outono”, a pequena, vivida por Magda Foy, idealiza um plano para impedir a fatalidade, ela inocentemente utiliza fios de barbante para prender as folhas nos galhos e devolver aquelas que já haviam caído. A linda atitude impulsiva da menina, deixando a cama e desobedecendo a ordem dos adultos, possibilita que seu caminho se cruze por acaso com o de um médico que passeava na região. Ao revelar a razão por trás de seu gesto exótico, ele, que estava trabalhando em uma cura, vai ao encontro da enferma, conduzido pela mão daquela corajosa menina de seis anos de idade que ousou lutar contra algo que era tido como impossível pelos mais velhos. A poética inocência venceu o medo. A opção pela naturalidade nas atuações, marca registrada da diretora, garante alguns momentos encantadores. 

sábado, 9 de setembro de 2017

Sobre o boicote (sutil) ao filme "Polícia Federal - A Lei é Para Todos"

Acaba de ser lançado o filme "Polícia Federal - A Lei é Para Todos", percebo a clara intenção de boicote de parte do público, atitude que sempre repudio. Uma breve reflexão: a beleza do cinema é também a capacidade de abordar o mesmo evento por perspectivas diferentes. Você pode ver um clássico alemão de propaganda nazista e a resposta norte-americana incitando os jovens à guerra, "Suss the Jew" (1940) é antissemita até o talo, enquanto "Confissões de um Espião Nazista" (1939) desfere um soco de direita no queixo de Hitler.

Por este motivo não consigo acreditar quando leio um texto crítico profissional tentando deslegitimar o filme nacional utilizando como base o argumento de que retrata a versão de apenas um lado da história. Não há argumento mais tolo, um desserviço à função da crítica como ferramenta filosófica que prima pela pluralidade de pontos de vista. Ficando no mesmo tema, "Lula, o Filho do Brasil" era imparcial? Que os dois filmes sejam vistos, nunca boicotados (ainda que de forma sutil), que a pluralidade de abordagens agregue à experiência de cada espectador.

Pretendo escrever em breve sobre a obra, mas já adianto que gostei do ritmo e, com algumas ressalvas, considero um importante passo no gênero de thriller político, vertente poucas vezes trabalhada no cinema nacional. Qualquer tentativa da nossa indústria de se aventurar fora da zona de conforto narrativa deve ser incentivada.

Lançamento do meu segundo livro (dias 4 e 9 de setembro)


Esta foi uma semana muito especial em minha vida, estou lançando meu segundo livro. "A Arte do Guerreiro Lúcido" é uma obra sobre esperança, uma celebração apaixonada do poder inspirador da cultura em momentos de crise.


O artista dedicado que vive no Brasil já se acostumou com a frustração, basta ver o material que é valorizado e divulgado nos veículos diariamente, a vergonha alheia ganhando cada vez mais espaço, escritores sérios morrendo à míngua em estandes vazios na Bienal do Livro, enquanto tolos midiáticos imediatistas arrebanham multidão. Apesar de divulgar bastante nas redes sociais o novo livro, poucos são os profissionais que demonstram interesse em ajudar neste processo. Já me acostumei a ler mensagens de colegas que pensam em desistir, compreendo cada impulso, não é fácil trabalhar dependendo do interesse de outrem pelo aprimoramento intelectual constante. Boa parte sequer mensura a importância de se lançar um livro, afinal, nunca terminou a leitura de um tomo.


"Um país se faz com homens e livros", Lobato afirmava. Eu acredito plenamente. Agradeço o carinho da editora Jaguatirica com o meu trabalho. E agradeço o carinho de todos que puderam estar presentes na Livraria Blooks de Botafogo no dia 4, e no estande da editora na Bienal do Livro (RJ) no dia 9, compartilhando comigo esta emoção. Que a minha paixão por cinema e literatura nunca esmoreça diante do cenário lastimável em que estamos inseridos.


TOP - 2003


1 - Oldboy (Oldeuboi), de Park Chan-wook
"... A melhor adaptação de quadrinhos no cinema, quem diria, não veio da indústria norte-americana. O coreano Park Chan-wook provoca catarse sensorial ao contar uma história que me remeteu em sua essência ao clássico "O Enigma de Kaspar Hauser", de Herzog, e "Muito Além do Jardim", protagonizado por Peter Sellers, adaptado do livro "O Videota". A principal diferença é que o protagonista vivido por Choi Min-sik busca a vingança após o confinamento..."


2 - Dogville, de Lars von Trier
"... Apesar de insuportavelmente pretensioso, este é o trabalho mais poderoso do diretor, aquele em que a estética verdadeiramente agrega, ao invés de servir apenas como exibicionismo. Uma crítica à sociedade que rejeita empatia, uma análise contundente sobre a propensão do ser humano ao apedrejamento..."


3 - A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi), de Hayao Miyazaki
"... Lançado em 2001, mas estreia agora no Brasil, um trabalho sensível e encantador do estúdio Ghibli sobre a coragem necessária para se enfrentar o caminho do autoconhecimento, o melhor filme de Miyazaki até o momento..."


4 - Sobre Meninos e Lobos (Mystic River), de Clint Eastwood
"... O roteiro espertamente subverte as expectativas geradas pela sinopse, compondo um retrato melancólico do devastador efeito das cicatrizes existenciais, a comprovação da maturidade de Eastwood como diretor..."


5 - Memórias de Um Assassino (Salinui Chueok), de Bong Joon-ho
"... Suspense de altíssimo nível com toques de humor envolvendo os perigos de uma investigação irresponsável, uma aula coreana que poderia ser assimilada pela indústria de Hollywood..."


6 - Extermínio (28 Days Later...), de Danny Boyle
"... Uma releitura criativa dos zumbis de Romero em uma produção de baixo orçamento, com destaque para, desde já, uma das sequências mais impactantes do gênero: a perseguição ao som da "Ave Maria", de Gounod..."


7 - As Confissões de Schmidt (About Schmidt), de Alexander Payne
"... Gratíssima surpresa que impressiona com as atuações de Jack Nicholson e Kathy Bates, um estudo sobre o tédio, o peso da melancolia e o aprendizado precioso que a simples empatia pode suscitar..."


8 - As Invasões Bárbaras (Les Invasions Barbares), de Denys Arcand
"... Temas profundos sendo abordados com leveza, Arcand consegue se superar em sua crítica à intelectualidade academicista após o ótimo "O Declínio do Império Americano"..."


9 - Simplesmente Amor (Love Actually), de Richard Curtis
"... O conceito pode ser considerado brega, mas a execução é primorosa, especialmente considerando o estado criativo vegetativo em que o gênero da comédia romântica se encontra..."


10 - Igual a Tudo na Vida (Anything Else), de Woody Allen
"... Na figura de Jason Biggs, opção ousada de Allen, encontramos a versão jovem do tipo que o cineasta defendeu por boa parte de sua carreira. O roteiro constrói um emaranhado filosófico bem-humorado a partir de uma situação simplória ocorrida em uma viagem de táxi..."

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

"Histórias Que Nossas Babás Não Contavam", de Osvaldo de Oliveira


Silvio Santos foi um generoso pai para toda uma geração de garotos, a programação do SBT apimentava as tardes com comédias adolescentes eróticas e presenteava as nossas noites de Domingo com clássicas pornochanchadas. “Histórias Que Nossas Babás Não Contavam”, de 1979, costumava ser transmitida com frequência na “Sessão das Dez”, as chamadas nos intervalos do “Topa Tudo Por Dinheiro” já bastavam para que eu, na época, um pré-adolescente excessivamente introvertido, sentisse aquele maravilhoso frio na espinha, antecipando uma noite mágica na frente da televisão e o atraso considerável na escola na manhã seguinte.

“Se você já desconfiava das histórias que a babá contava, tinha toda razão! Ela lhe contou uma outra versão. O lado que você conhecia era só fantasia, história de príncipe e princesa sempre acaba em safadeza. ” (Tema musical de abertura)

Hoje em dia a moda é discutir a agitada vida sexual dos reis, rainhas e príncipes de “Game of Thrones”, mas nada surpreende aquele que cresceu vendo a princesa Clara das Neves sendo disputada em sorteio por seis anões tarados, já que o sétimo, Zangado, amargava o orgulho ferido após perder o monopólio sexual da turma de “filhinhos da... floresta”, como o roteiro espirituosamente define o grupo. A maravilhosa Adele Fátima, dublada com a voz sensual de Marly Marcel, ficou marcada para sempre no imaginário coletivo da garotada. Meiry Vieira, outra beldade, vivia a maldosa rainha que era aconselhada pelo espelho mágico homossexual, vivido por Renato Pedrosa. O príncipe, vivido por Dênis Derkian, dublado por Marcelo Gastaldi, teve a sorte de atravessar horizontalmente neste filme o caminho de duas das mulheres mais lindas do cinema erótico nacional, mas, em uma reviravolta que nem M. Night Shyamalan cogitaria, acaba sorridente nos braços do anão rejeitado. E pensar que o cinema engajado atual acredita estar sendo revolucionário. 

“A história da maçã é fantasia, maçã igual àquela o papai também comia. ” (Marchinha de Carnaval entoada pelos anões)

Conversei com o Dênis sobre as lembranças das filmagens e de como ele foi escalado para o projeto, depoimento exclusivo para o “Devo Tudo ao Cinema”.

D - Caro Octavio, vai aí um resumo do que lembro quanto ao projeto, já não me recordo com precisão de nomes e lugares, mas descrevo a situação. Eu lembro que estava numa roda de pessoas ligadas ao cinema da boca, rua do Triunfo, e discutia-se os rumos do cinema, como sempre difíceis. A conversa começou séria, depois de algum tempo, como sempre entre um copo e outro, alguém disse: já que está tudo uma merda mesmo, podíamos fazer um filme satirizando os contos de fadas, mas tudo na sacanagem, aí saiu um: puta que pariu! Alguém criticou, disse que isso ia dar merda, que a crítica ia cair de pau; outro disse: que se dane a crítica. E começou a viagem: que tal chapeuzinho vermelho e o lobo mau? A coitada da chapeuzinho, o lobo mau e vovozinha foram sacaneados por algum tempo pela turma, até que alguém deu a ideia da Branca de Neve, começou outra sessão de sacanagem, até que alguém disse que isso daria um filme. Quem fará a Branca Neve? Daí começou a esculhambação, até que alguém disse que precisava ser uma mulata gostosa, tipo aquelas do Sargentelli. Daí saiu outro “puta que pariu”. E a Rainha? Vários nomes sugeridos. E o caçador? Alguém disse: Costinha, daí veio outro “puta que pariu”. E o Príncipe? Saiu o terceiro palavrão, seguido de “você, bonitão! ”. Aquilo só podia ser brincadeira! Só que não foi, aconteceu!

O - Osvaldo de Oliveira foi um grande diretor de fotografia, trabalhou na série “Vigilante Rodoviário” e em “O Caso do Irmãos Naves”, e, como diretor, ele tinha feito alguns filmes voltados para a música sertaneja (como “No Rancho Fundo”, de 1971), antes de entrar no filão da pornochanchada. Como ele lidou com o material do filme? Vocês tinham boa relação? E seu relacionamento com o elenco?

D - Sobre a minha relação com o diretor, na verdade não tínhamos proximidade, nos víamos às vezes, mas não existia nenhum vínculo de amizade até a filmagem propriamente dita, eu conhecia o profissional, os filmes e histórias engraçadas. Ele era uma figuraça, no set só confirmou o profissional conhecedor de seu ofício e sua intimidade com as lentes e enquadramentos, muito técnico, deixou seu legado, um diretor do cinema feito na raça, em um tempo de titãs. Saudades do velho Carcaça! Quanto a relação com o elenco, conhecia Felipe Levy, os demais fui conhecer no dia das filmagens, não existia essa prévia, tipo leitura de texto, apresentação do elenco, discutir personagem etc... Era no grito, se vira nos trinta. Logicamente que coisas inéditas aconteciam no set, o Príncipe montava um belo garanhão branco, cheguei mais cedo no set de filmagem para poder criar um vínculo de confiança com o animal, já que tratava-se de um puro sangue, logo obtive domínio do animal, fiz com ele várias vezes o percurso da estreita picada pela qual deveria passar montado, estava tudo bem, posicionaram a câmera na lateral da picada, na cena eu teria que passar por ela montado no belo animal, fizemos alguns ensaios de passagem pela câmera, mas na hora do valendo, o bicho pegou, pois a câmera produzia um som que lembrava o guizo de cobra cascavel. Quem disse que esse cavalo passava pela câmera? O belo puro sangue foi substituído por um pangaré, no filme ninguém percebeu a troca (risos). Tem uma falha curiosa na película, eu fumava na época, numa das cenas onde estou montado no cavalo, entre os ensaios da cena que se repetiu várias vezes, o diretor filmou o ensaio, e nesse momento acendi um cigarro, pois era ensaio, não estava valendo. Eu penso que na montagem prevaleceu o take em que estou com o cigarro entre as rédeas (risos). E guardo uma lembrança hilária do Costinha. Ele não voa, tinha medo de avião. Eu perguntei a ele a razão, ele respondeu: já pensou se é o dia do piloto morrer e eu estou junto? (risos)

O - Como é que você enxerga, em retrospecto, este trabalho?

D - Sinceramente, penso que não existiu intenção de fazer crítica, ninguém estava levantando qualquer bandeira social, muito menos intelectual, nem mesmo indicando uma nova tendência, acho que a intenção era que a ideia fosse reverter em bilheteria, talvez o produtor tenha imaginado um fenômeno de bilheteria. O filme, pelo que acompanhei e soube, teve carreira normal. O curioso é que depois, no decurso dos anos, ele foi despertando curiosidade de diferentes públicos, e é assunto de jovens cineastas, continua gerando riqueza para seu produtor. Hoje é Cult. No âmbito do reconhecimento, nada mudou. Eu nunca recebi um só centavo de direitos autorais. Na esperança que o produtor algum dia disponibilize em algum banco os valores correspondentes que nós atores temos direito, contudo sigo “cinemando”, tomando cuidado redobrado para não mais trabalhar com picaretas, prometo oferecer ao público mais alguns bons filmes. 


sábado, 2 de setembro de 2017

Kung-Fu Fighting - "China O'Brien" e "China O'Brien 2", de Robert Clouse


China O'Brien - A Herdeira do Dragão (China O'Brien - 1988)
China O'Brien 2 (1990)
O cinema oriental de artes marciais consagrou várias mulheres ao longo das décadas, mas no ocidente apenas uma conseguiu se provar rentável nas bilheterias: Cynthia Rothrock. E ela, baixinha e de aspecto meigo, meteu o pé na porta da indústria no momento em que os heróis de ação norte-americanos representavam o auge do fisiculturismo. Vale salientar também que, ao contrário de suas imitadoras, ela não ligava sua imagem cinematográfica à sensualidade, o seu desejo era, como professora de karatê na vida real, criar uma persona nas telas que inspirasse as meninas. Como comparação, analise a forma como Ronda Rousey é trabalhada nas cenas de suas produções, as coreografias dos filmes protagonizados por Mimi Lesseos, ou a personagem de Kathy Long em “The Stranger”, pura satisfação de fetiche masculino, com as curvas do corpo realçadas pelo figurino e pelos ângulos da câmera.

Infelizmente, Rothrock é pouco lembrada hoje em dia, não participou de obras especialmente importantes, mas registrou seu “chute do escorpião” (quando ela neutraliza o oponente que a agarrou por trás chutando acima de sua cabeça e diretamente em seu rosto) em várias pérolas de baixo orçamento que faziam a festa da garotada nas locadoras de vídeo. Ela chamou atenção inicialmente em produções de Hong Kong, foi parceira de Michelle Yeoh no bom “Justiça em Dose Dupla”, de 1985, mas seu grande momento solo foi em “China O’Brien”, para o estúdio Golden Harvest. Quem jogava “Streets of Rage” no Sega Genesis vai perceber a clara inspiração para a estética do jogo, o trio de heróis formado por Rothrock, Richard Norton e Keith Cooke (que faria alguns anos depois o Reptile em “Mortal Kombat”) é propositalmente uma caricatura pueril, são tipos carismáticos que caberiam perfeitamente nas páginas dos quadrinhos infanto-juvenis. A policial China (inspirada na história real do corajoso xerife Buford Pusser, que, sozinho, decidiu limpar sua cidade da máfia) jura não utilizar mais armas de fogo após atirar em um marginal adolescente. O enigmático Dakota (Cooke), com aparência de índio e uma mão imobilizada, exibe um estilo de luta mais acrobático e busca vingança contra o chefão da região, que matou sua mãe. Matt (Norton), namorado de China, tem um estilo de luta altamente teatral, sendo capaz de desferir cinco socos no rosto da vítima em poucos segundos.

A direção dos dois filmes é de Robert Clouse, responsável por “Operação Dragão”, o clássico de Bruce Lee. Os roteiros são simplórios, as coreografias são empolgantes, acho curioso que no final dos dois, os vilões principais não enfrentam a protagonista, algo nada usual no gênero, eles são assassinados por mulheres fragilizadas, aquelas que sofriam diretamente com suas atitudes. A personagem de Rothrock age como elemento transformador de inspiração, modificando o ambiente em que vive e, de forma indireta, resgatando o amor próprio daquelas que haviam sido subjugadas.