O Inquilino (The Lodger: A Story of the London Fog - 1927)
Hitchcock considerava esse filme como o ponto de partida em
sua carreira, uma pérola do cinema mudo que segue eficiente hoje. É perceptível
o fascínio dele pelas experimentações na linguagem, colocando em prática tudo o
que aprendeu durante sua fase nos estúdios alemães, o expressionismo absorvido
com segurança por alguém com forte senso autoral. A trama é inspirada nos casos
de Jack, o Estripador, algo consideravelmente recente no imaginário popular da
época. A histeria coletiva que incrimina um inocente, tema que se tornaria
recorrente na obra do mestre do suspense, emoldurada por uma utilização altamente
criativa dos cenários, com destaque para a celebrada sequência em que a câmera
nos mostra os passos do protagonista, vivido por Ivor Novello, filmados sobre
um chão de vidro, potencializando a preocupação dos moradores no andar de baixo
com a enigmática presença do hóspede. O desafio de contar a história sem
diálogos provou ser enriquecedor para o jovem britânico, que pôde flertar com
simbolismos visuais, o triângulo que reflete a estrutura dos relacionamentos
trabalhados na narrativa, além, claro, das vítimas loiras que se tornariam cada
vez mais frequentes. A estética usual do teatro filmado silencioso dava lugar
ao jogo de imagens do cinema moderno. Vale destacar que a ideia inicial
preservava o mistério sobre a autoria dos assassinatos, mas a escalação de
Novello, ídolo jovem muito querido pelas adolescentes, impossibilitou a dúvida,
ninguém queria correr riscos nas bilheterias.
O Marido Era o Culpado (Sabotage - 1936)
Quando conheci o filme na adolescência, em uma exibição
televisiva no “Cine Vida”, da “Rede Vida”, apresentado por Brancato Júnior e
pelo crítico José Tavares de Barros, eu me lembro de ter ficado assustado com a
crueza de Hitchcock. De certa forma, considero “O Marido Era o Culpado” mais
ousado que os posteriores “Cortina Rasgada” e “Frenesi”. A temática do
terrorismo fez com que o filme fosse banido em alguns países, o tom sombrio refletia
a complicada situação política na Europa, com a ameaça nazista espreitando nas
sombras. O nível impressionante de tensão na sequência em que acompanhamos o
passeio do menino que, sem saber, carrega uma bomba pelas ruas da cidade, uma
aula que une elementos da montagem soviética de Eisenstein e Vertov ao senso de
humor macabro do diretor. Inspirado levemente no livro “O Agente Secreto”, de
Joseph Conrad, essa pérola da fase britânica merece maior reconhecimento,
especialmente pela coragem. O mundo ficaria chocado com o assassinato da
personagem de Janet Leigh na primeira meia-hora de “Psicose”, em 1960, mas
Hitchcock já subvertia todas as expectativas aqui, eliminando brutalmente a
criança no ato terrorista, a pureza sendo a primeira vítima do medo.
* Os filmes estão sendo lançados em DVD pela distribuidora "Versátil", com a curadoria sempre impecável de Fernando Brito, no digistack "A Arte de Alfred Hitchcock", que contém também um documentário sobre a fase inglesa do mestre do suspense e os filmes "Jovem e Inocente" e "A Estalagem Maldita".
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