Quando o cinema aborda temas religiosos, dificilmente faz de
forma original. Há basicamente duas maneiras de se tocar no assunto, com exagerada reverência, ou correndo os riscos de se abraçar a contestação crítica. Não existe o
meio termo. Algumas das melhores obras que a sétima
arte nos legou no passado tocam exatamente nestes temas. Produções grandiosas como “A
Bíblia” (1966), do lendário John Huston, prestam-se a forçar no didatismo,
deixando de lado a fluência de um ritmo mais cinematograficamente sedutor,
favorecendo a retratação simples de várias passagens do livro sagrado católico.
A longa duração não ajuda a tornar a experiência mais agradável, criando um
enfadonho e nada orgânico retrato dos textos milenares. Problema parecido
sofre o pomposo “A Maior História de Todos os Tempos” (1965), de George
Stevens, com Max von Sydow interpretando um Jesus um tanto quanto apático e
pouco marcante. De qualquer modo, a culpa não pode recair no ator, mas no
roteiro truncado e, para piorar, na direção megalomaníaca (a várias mãos) e perceptivelmente
desorientada. No cinema mudo, o diretor francês Carl Theodor Dreyer eternizou a
imagem de Renée Falconetti como uma sofrida Joana D’Arc no ótimo “A Paixão de
Joana D’Arc” (1928). Algo raro, mesmo o filme sendo contrário à igreja
católica, conseguiu entrar na seleta lista dos indicados pelo Vaticano.
Existem filmes de menor apuro técnico com o intuito central,
não menos importante neste gênero, de doutrinar o público. Essas produções podem
ser encontradas aos montes nas seções religiosas das locadoras, estampando por
vezes em suas capas artistas renomados. Estas obras não possuem méritos que as
tornem referências. Honestamente, eu prefiro aquelas incursões de diretores
autorais e com roteiros audaciosos, como “A Última Tentação de Cristo” (1988),
de Martin Scorsese. O filme nos propõe uma instigante releitura da vida de
Cristo que evita as suas virtudes divinas e dedica generosa atenção às suas
inconfessáveis fraquezas humanas. Considerado pela igreja católica como algo
abrasivo e herético, acabou sendo proibido em diversos países. Baseado no ótimo
livro de Nikos Kazantzakis, o roteiro se foca no conflito interior entre o
messias predestinado por Deus ao derradeiro sacrifício e o homem comum, que
ambiciona constituir família e desfrutar de uma vida pacífica em pleno e
confortável anonimato. Em sua ânsia de proteger o legado de Cristo (e, claro,
seus próprios interesses), a igreja deixou de perceber o quanto o filme é
essencialmente cristão. Scorsese apenas mostra durante as quase três horas de
duração uma alucinação de Jesus já na cruz, garantindo que, ao final, ele
esteja consciente de que seu suplício final era necessário. Não existe nada de
herético em se apresentar uma segunda versão, ainda mais quando ela não tem
pretensão alguma de ser vista como a oficial. Afinal, se nós somos criações à
imagem e semelhança de “Deus”, porque ele se furtaria a refletir o que temos de
mais humano, a nossa própria natureza cheia de conflitos? Esta releitura de
Scorsese e Kazantzakis, junto ao roteirista Paul Schrader, mostra-se muito mais
interessante que a concepção tradicionalmente acatada, tão destituída de
humanidade.
O diretor húngaro Ladislao Vajda filmou em 1955 o terno e
sensível “Marcelino Pão e Vinho”, que trazia como protagonista o jovem e
carismático Pablito Calvo. A obra cativou públicos de todas as idades com a
história de um menino órfão que é deixado em um mosteiro. Solitário e ingênuo,
o pequeno acaba fazendo amizade com uma enorme estátua do Cristo crucificado,
com a qual conversa. É encantadora a forma como a trama trabalha a pureza da
criança. O meu filme favorito do gênero, o responsável por minha paixão pelo
cinema, como já citei em textos anteriores, não aborda centralmente Jesus, mas
acredito que é o que melhor se utiliza de sua figura: “Ben-Hur” (1959), de
William Wyler, com Charlton Heston no elenco. No épico embate entre o judeu
vivido por Heston e seu inimigo romano, vivido por Stephen Boyd, na clássica corrida
de quadrigas, existe uma motivação muito bem construída. Judah Ben-Hur outrora havia
sido um príncipe. Ele perdeu tudo após ser traído por seu amigo de infância:
Messala, que cresceu e se tornou um centurião romano ambicioso e arrogante.
Após uma infeliz tragédia, o príncipe vê sua vida destruída ao ser levado para
as galés.
O roteiro deixa claro que a cada virada de seu remo, o ódio e o
desejo de vingança crescia nele, junto à angústia de não saber o paradeiro de
sua mãe e irmã, abandonadas no vale dos leprosos. Na obra literária de Lew
Wallace e na versão muda de 1925, o personagem de Jesus e o contexto bíblico
são muito presentes, quase que dividindo a obra em duas partes distintas. Na
celebrada refilmagem, Cristo se mostra menos presente visualmente, mas seus
atos ecoam ao longo de toda projeção. Ele ensina ao jovem revoltado que o
caminho da espada nunca é solução, o ódio só alimenta o ódio, a maior rebeldia em
um mundo corrupto é se manter íntegro. Outro grande acerto dos produtores foi
não mostrar seu rosto, fazendo com que sua presença fosse notada pelo uso
magistral da impressionante trilha sonora de Miklos Rozsa. Wyler não quis fazer
sermão para ninguém, apenas contar uma bela história que poderia ter como pano
de fundo qualquer período histórico. Acredito que este filme transcende
qualquer tipo de limitação filosófica, religiosa ou cultural.
Mesmo um ateu pode perceber que a história de Jesus tem
todos os elementos de um grande herói mítico, com a glória, queda e a redenção
ao final. Mel Gibson conseguiu transpor a sua visão da queda de maneira
excruciante no ótimo “A Paixão de Cristo” (2004). Poucas cenas são tão
emocionantes quanto uma desesperada Maria indo socorrer seu filho caído no
chão, após não ter suportado o peso da cruz. A beleza da edição, que intercala
o momento trágico com um flashback da mãe e do filho ainda criança, aliado a
uma linda trilha sonora de John Debney, já valem a experiência difícil de
assistir o sofrimento que o diretor intencionalmente nos mostra ao longo da
projeção. Uma obra completamente antagônica à visão de Gibson é “Rei dos Reis”
(1961), do mestre Nicholas Ray. Aproveitando o sucesso que os épicos religiosos
estavam fazendo na época, com filmes como “Os Dez Mandamentos”, “Quo Vadis” e
“O Manto Sagrado”, Hollywood decidiu dar uma face ao personagem central do
catolicismo. Escolheram para esta missão o jovem Jeffrey Hunter, que possuía
fama de bom moço e nunca havia se envolvido em nenhum escândalo que abalasse
sua persona pública. O filme, narrado por Orson Welles, reconta de forma
bastante didática e poética os eventos descritos no Novo Testamento. Com a ajuda
da imponente trilha de Miklos Rozsa são apresentadas cenas de incrível beleza
estética, que acabaram tornando-se referências no gênero. Passagens como o
sermão da montanha exalam refinamento e emocionam sobremaneira. É, sem dúvida alguma, a versão cinematográfica de Jesus mais elegante já realizada.
Já o italiano Franco
Zefirelli exagerou no didatismo em seu monumental “Jesus de Nazaré” (1977),
esquecendo que estava criando um produto para todos os tipos de público, não uma
exibição de slides para uma palestra católica. Rico em informações, mas
estruturalmente fraco e com esparsos momentos de genuína emoção. O grupo inglês
Monty Python, com sua genial verve cômica, nos convida a ver a história do
messias por outro ângulo em seu precioso “A Vida de Brian” (1979). Caso
assistido em sessão dupla com outra obra prima do grupo: “O Sentido da Vida”
(1983), mostra-se uma experiência que abre mentes e amplia conceitos enquanto diverte.
Um bom exemplo de crítica eficiente ocorre no segundo filme citado, um pai
católico explica à sua extensa prole que terá que doar as crianças para
experiências científicas, já que o Vaticano proíbe os métodos anticoncepcionais
e ele está financeiramente quebrado. A cena é conduzida como um grande musical,
com direito a freiras dançarinas e um refrão que defende: “Caso um esperma seja
jogado fora, Deus ficará muito irado”.
O cinéfilo pode escolher sua versão favorita: O Jesus humano e questionador (logo, combatido pela igreja católica) de Scorsese e seu polêmico
“A Última Tentação de Cristo”, o Jesus puramente simbólico e inocente que ajuda
Pablito Calvo no clássico “Marcelino, Pão e Vinho”, o Jesus didático de
Zeffirelli em seu gigantesco “Jesus de Nazaré”, o Jesus poético, loiro e de
olhos azuis de “Rei dos Reis”, o Jesus transgressor e musical de “Jesus Cristo
Superstar”, entre muitos outros. O cinema une a todos e nos faz discutir ideias
e subverter conceitos. Seria louvável se as organizações religiosas criadas pela ganância do homem também fossem assim.