quarta-feira, 26 de abril de 2017

"Zero de Conduta", de Jean Vigo


Zero de Conduta (Zéro de Conduite - 1933)
É um exercício interessante analisar como esse média-metragem influenciou o mundo da arte, em suas várias vertentes. “Os Incompreendidos”, o nascimento da Nouvelle Vague pelas mãos de François Truffaut, referência mais óbvia, conta até com uma homenagem direta na sequência que acompanha o grupo de crianças se perdendo conscientemente pela cidade, quando deveriam seguir o mestre, quebrando o código de conduta. Você pode enxergar inspiração também em “If”, de Lindsay Anderson, “The Wall”, disco seminal do grupo Pink Floyd, ou no filme adolescente “Clube dos Cinco”, de John Hughes. O roteirista/editor/diretor francês Jean Vigo faleceu antes dos trinta anos, mas deixou um legado precioso. Com menos de três horas, reunindo todos os seus trabalhos, o rapaz simplesmente redefiniu as regras do jogo.

O tema sempre me agradou, li na infância “Os Meninos da Rua Paulo”, de Ferenc Molnár, experiência que gravou em minha mente várias passagens até hoje, o conceito de utilizar crianças se rebelando é pleno em simbologia, como se a pureza de caráter se revoltasse contra o corruptível mundo adulto. Paulo Emílio escreveu dois livros sobre a obra de Vigo, verdadeiros tesouros, abordando até mesmo a influência do pai na vida profissional do filho. Mas ver “Zero de Conduta” automaticamente surpreende pelo frescor de estilo, não há sinal de pedantismo desejoso de aceitação pelos intelectuais, a abordagem é despida de tudo aquilo que não é natural. Os recursos artificiais, o belo slow motion na guerra de travesseiros, jump cuts, servem para potencializar a força anárquica das ações, o revide ao encarar a repressão das figuras de autoridade. Claro que a obra sofreu censura na época, sendo liberada apenas após a Segunda Guerra Mundial. Vigo resgatou no filme, com muito humor, as suas lembranças de infância, época em que a imaginação rege o universo de possibilidades escancaradas no futuro. E, em sua visão, o sistema educacional é falho, objetivando mais o encarceramento físico e ideológico dos alunos, inserindo crianças em um molde limitado, permitido na sociedade, que elimina qualquer impulso artístico como embrião revolucionário.

A pouca experiência do diretor, somada às dificuldades técnicas, incentivaram o rapaz a subverter as convenções narrativas, abandonando a linearidade, garantindo uma caligrafia única, com a criatividade atuando livre de qualquer amarra, um tratado libertário, representado pelo desfecho com as crianças correndo pelos telhados da instituição. 

terça-feira, 25 de abril de 2017

Cine Bueller - "O Rapto do Menino Dourado", de Michael Ritchie


O Rapto do Menino Dourado (The Golden Child - 1986)
Esse filme, com a dublagem espetacular de Mario Jorge, fez minha infância mais feliz. Em uma época sem internet, a garotada ficava repetindo na sala de aula as frases do filme, como: “Eu quero o punhal”, “Não, nem morto, nojo”, “Só quero umas batatinhas”, “Viva o Nepal”, “Tira essa meleca do casaco antes que ela congele e arranhe você”, “É a continuação de um livro chamado: Tora Doce, sobre toras confeitadas”, “Você viu um anãozinho hare krishna nu por aí, correndo com uma nota de cem dólares? ”, “Me engana que eu gosto” e “Parece um bagulhão, passa a língua e fuma”. E todos entendiam o contexto, porque ele havia sido exibido na “Sessão da Tarde” do dia anterior. Lançado na mesma época que o tematicamente similar “Os Aventureiros do Bairro Proibido”, muitos se referem a ele como um dos primeiros escorregões na carreira de Eddie Murphy, não consigo entender o argumento, considero superior a “Um Tira da Pesada” e “48 Horas” juntos!

O roteiro foi escrito por Dennis Feldman, responsável por um dos melhores filmes adolescentes dos anos oitenta: “Quase Igual aos Outros” (Just One of The Guys), inserindo o tipo urbano malandro de Murphy em um cenário de exótico misticismo, com personagens que poderiam ter saído das aventuras fantásticas de Ray Harryhausen, como a mulher dragão. O equilíbrio perfeito entre humor e ação dá o tom da missão que é dada pela linda Charlotte Lewis ao investigador especializado em localizar crianças perdidas: Salvar o Menino Dourado, a criança que nasce a cada mil anos com o poder de espalhar o bem, ou o mal, pela face da Terra, das mãos do demônio vivido com sobriedade shakespeariana pelo sempre competente Charles Dance. O projeto inicialmente seria protagonizado por Mel Gibson, mas acabou tendo que ser modificado radicalmente com a entrada do comediante que estava em franca ascensão. O diretor Michael Ritchie vinha do sucesso com “Fletch – Assassinato por Encomenda”, veículo para Chevy Chase. É perceptível que ele deu sinal verde para improvisações, o elenco se mostra bastante relaxado, sentimento que é transmitido para o espectador e consegue transformar diálogos, no papel, comuns, em material cômico de alto nível.

Vale destacar o exemplo mais deliciosamente cara de pau de product placement, a cena da latinha dançante de Pepsi, ao som de “Putting on the Ritz”, produzida pelos magos da ILM, de George Lucas, utilizando técnica pioneira que depois seria trabalhada em “Uma Cilada Para Roger Rabbit”. Para a criança brasileira que estava acostumada a ver o Bocão da Royal jogado de qualquer maneira nas cenas dos filmes dos Trapalhões, esse refinamento publicitário era uma lufada de ar fresco. 

sábado, 22 de abril de 2017

"Vida", de Daniel Espinosa


Vida (Life - 2017)
O filme dirigido pelo sueco Daniel Espinosa é um terror sci-fi extremamente competente, infelizmente prejudicado pelo setor de marketing que o vende como uma homenagem ao “Alien” de Ridley Scott. Esse tipo de estratégia causa um problema grave, insere o elemento da expectativa na equação.

É tolice comparar o cenário da indústria hoje com o do final da década de setenta, o ritmo da narrativa do clássico hoje não seria aceito pela garotada imediatista que vai para a sala escura para extravasar as frustrações sociais, falar alto e frequentemente checar mensagens no celular. Se o filme antigo, exatamente como ele é, tivesse sua estreia hoje, seria um fracasso nas bilheterias. É uma triste constatação de como a sociedade culturalmente deu passos largos para trás. A informação hoje precisa ser transmitida com rapidez publicitária, o roteiro apresenta os personagens, insere o conflito e conduz, com muita ação, até o desfecho, essa é a fórmula. E, como crítico e público, aplaudo sempre que vejo um projeto no gênero que ousa se desviar dessa armadilha.

O roteiro de Rhett Reese e Paul Wernick não cria algo especialmente novo, mas utiliza um modelo desgastado como laboratório criativo, a câmera caótica no início desorienta o espectador, aproveitando a falta de gravidade no ambiente, refletindo o estado psicológico dos astronautas, longe de seus familiares e forçados a um convívio alimentado por sentimentos essencialmente artificiais. Com poucas cenas, não mais que vinte minutos, o companheirismo é estabelecido eficientemente. Ao mostrar eles respondendo questões de crianças no monitor, ou carinhosamente saudando o colega que acaba de conhecer em uma transmissão de vídeo o seu filho recém-nascido, o espectador é levado naturalmente a se importar com aqueles indivíduos, mérito que merece ser salientado. O elenco ajuda nesse sentido, o foco não é a construção de personagens, mas Jake Gyllenhaal, Rebecca Ferguson, Ryan Reynolds, Olga Dihovichnaya e Aryion Bakare são carismáticos o suficiente, ainda que com poucas oportunidades dramáticas.

Quando a ameaça alienígena se faz presente, visualmente inofensiva a princípio, “Vida”, não tendo nenhuma relação com a criação de Ridley Scott, acaba se mostrando mais fiel ao espírito perturbador do primeiro “Alien”, que as sequências oficiais protagonizadas pelo xenomorfo. Outro ponto que merece ser ressaltado é a forma como a trama termina, utilizando um truque que sintetiza a mágica do cinema, a montagem como o ilusionista. 

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Woody Allen - "Hannah e Suas Irmãs"

Link para os textos anteriores desse especial que se leva tão a sério quanto o próprio Woody:

"Euclides levantou da cama, admirou a vista da janela, agradeceu à chuva por lavar seu carro, tomou um shot de uísque para despertar seu organismo, desceu a escada em direção à cozinha, percebeu que seu cão havia fugido novamente, discou o número do vizinho, constatou que não havia ninguém em sua casa, piscou duas vezes os olhos para umedecer as vias lacrimais, pensou por um momento em como seria interessante o conceito da Terra plana para quem tem pés chatos, depois levantou a mão direita na direção do rosto e afastou com delicadeza o mosquito que tencionava se alojar em sua pele para sugar..."

O editor não conseguia acreditar naquilo que estava lendo, ele jogou os originais do autor na mesa e pediu para sua secretária entrar em contato com o rapaz imediatamente. A reunião foi marcada para aquela tarde, o destino literário de Ashton Moser estava por um fio.

Ashton Moser, pseudônimo de Cícero Adamantino, entrou no escritório com a segurança de um narcisista em uma sala de espelhos, ele representava o futuro da nação, o jovem que trocou uma carreira promissora na loja de calçados por uma possibilidade de inserir seu nome dentre os imortais das letras. O único obstáculo era sua capacidade impressionante de ser desprovido de qualquer talento na área. Ele se sentou e aguardou os elogios.

- O seu herói se chama Euclides? – O editor tentou iniciar no amor.

- Exatamente. Um espião à serviço secreto de sua majestade...

- O sabiá? – O corte debochado do seu superior perceptivelmente não o agradou.

- Como? Não estou entendendo.

O editor se levantou, contendo seu impulso de esmurrar o nobre mentecapto, trabalhando cada palavra com a leveza de um boxeador.

- É pedir demais que você se atenha ao cenário nacional? O seu texto é chato porque você quer passar uma imagem de algo que não conhece, nem sequer estuda o tema. Você é tipo aquele diretor de cinema metido a culto que filma uma árvore ao contrário por cinco minutos e chama isso de arte. Eu não vou te enrolar, o seu texto é insuportável!

- Eu já te contei do meu outro projeto engavetado? – A animação do autor surpreendeu o editor.

- Você escutou uma palavra do que eu disse?

O jovem se levantou também, aquele feedback negativo não parecia ter abalado sua confiança.

- Olha, imagine isso, uma história que vai agarrar o público pelo bolso...

- Diga, Cícero, não me faça sofrer por antecipação.

- Uma mulher, dois homens, um corretor de imóveis...

- Ok, já escutei o suficiente. Chega! Leve seus originais e, por favor, pense no que eu te disse. Você precisa se alimentar, está magro demais, precisa tomar um sol, sair um pouco e se divertir.

- Eu tentei começar um treino na academia de ginástica.

- É isso! Esse é o caminho. Não está treinando?

- Eles exigiram um exame físico, eu disse que já havia passado por uma bateria de exames médicos de vídeos de ASMR, a personal trainer não aceitou...

O editor, prezando por sua sanidade, abriu a porta do escritório e esperou o rapaz abandonar o local. Aquele era o fim da promissora carreira literária de Ashton Moser, o mito nacional, a lenda.


Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sisters – 1986)
A filha mais velha de um casal de artistas, Hannah (Mia Farrow) é uma dedicada esposa, mãe carinhosa e atriz de sucesso. Uma leal defensora de suas duas confusas irmãs: Lee (Barbara Hershey) e Holly (Diane Keaton), ela é também a espinha dorsal de uma família que parece se ressentir de sua estabilidade quase tanto quanto dependem da mesma.


Inspirado em "Fanny e Alexander", de seu ídolo Ingmar Bergman, Allen trabalha a evolução de um núcleo familiar através de três celebrações anuais, pela ótica do leitmotiv defendido em cena: "O coração é um músculo muito, muito elástico". Na cena mais bela do filme, ele captura aquela que considero a melhor explicação para a vida. Seu personagem acreditava estar prestes a morrer, entristecido também pela impossibilidade de sua esposa engravidar, sem paixão com relação ao futuro, então ele caminha pela cidade sem rumo por algumas horas, guiado apenas pela centelha de esperança que se recusa a ceder perante a doença fatal que acredita ter. Ele chegou a apontar o cano de um rifle para a própria cabeça, acreditando não haver motivação alguma em sua existência. Nada parecia fazer sentido, até que ele entra numa sala de cinema e, mesmo naufragando em um oceano de depressão, ele se surpreende sorrindo com uma comédia dos Irmãos Marx.

O personagem conclui que, mesmo a vida sendo um passeio numa montanha-russa de mais baixos que altos, aqueles breves momentos de conforto e alegria valem o preço do ingresso. E o elemento desconhecido inerente a todos nós, que o perseguia com tantos questionamentos, nunca seria plenamente revelado, independentemente do quão insistentemente perguntasse. Ele então relaxa na poltrona, com todos os seus conflitos internos sucumbindo ao peso daquele leve entretenimento, e se permitiu o prazer da diversão. O ânimo adquirido naquela sessão motivou seu espírito a enfrentar mais um dia. E, um ano depois, envolvido em uma relação muito mais feliz com outra mulher, num ato inesperado do destino, ele se emociona por ter realizado o sonho de ser pai.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Como Hollywood trabalha a figura de Jesus


Quando o cinema aborda temas religiosos, dificilmente faz de forma original. Há basicamente duas maneiras de se tocar no assunto, com exagerada reverência, ou correndo os riscos de se abraçar a contestação crítica. Não existe o meio termo. Algumas das melhores obras que a sétima arte nos legou no passado tocam exatamente nestes temas. Produções grandiosas como “A Bíblia” (1966), do lendário John Huston, prestam-se a forçar no didatismo, deixando de lado a fluência de um ritmo mais cinematograficamente sedutor, favorecendo a retratação simples de várias passagens do livro sagrado católico. A longa duração não ajuda a tornar a experiência mais agradável, criando um enfadonho e nada orgânico retrato dos textos milenares. Problema parecido sofre o pomposo “A Maior História de Todos os Tempos” (1965), de George Stevens, com Max von Sydow interpretando um Jesus um tanto quanto apático e pouco marcante. De qualquer modo, a culpa não pode recair no ator, mas no roteiro truncado e, para piorar, na direção megalomaníaca (a várias mãos) e perceptivelmente desorientada. No cinema mudo, o diretor francês Carl Theodor Dreyer eternizou a imagem de Renée Falconetti como uma sofrida Joana D’Arc no ótimo “A Paixão de Joana D’Arc” (1928). Algo raro, mesmo o filme sendo contrário à igreja católica, conseguiu entrar na seleta lista dos indicados pelo Vaticano.


Existem filmes de menor apuro técnico com o intuito central, não menos importante neste gênero, de doutrinar o público. Essas produções podem ser encontradas aos montes nas seções religiosas das locadoras, estampando por vezes em suas capas artistas renomados. Estas obras não possuem méritos que as tornem referências. Honestamente, eu prefiro aquelas incursões de diretores autorais e com roteiros audaciosos, como “A Última Tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese. O filme nos propõe uma instigante releitura da vida de Cristo que evita as suas virtudes divinas e dedica generosa atenção às suas inconfessáveis fraquezas humanas. Considerado pela igreja católica como algo abrasivo e herético, acabou sendo proibido em diversos países. Baseado no ótimo livro de Nikos Kazantzakis, o roteiro se foca no conflito interior entre o messias predestinado por Deus ao derradeiro sacrifício e o homem comum, que ambiciona constituir família e desfrutar de uma vida pacífica em pleno e confortável anonimato. Em sua ânsia de proteger o legado de Cristo (e, claro, seus próprios interesses), a igreja deixou de perceber o quanto o filme é essencialmente cristão. Scorsese apenas mostra durante as quase três horas de duração uma alucinação de Jesus já na cruz, garantindo que, ao final, ele esteja consciente de que seu suplício final era necessário. Não existe nada de herético em se apresentar uma segunda versão, ainda mais quando ela não tem pretensão alguma de ser vista como a oficial. Afinal, se nós somos criações à imagem e semelhança de “Deus”, porque ele se furtaria a refletir o que temos de mais humano, a nossa própria natureza cheia de conflitos? Esta releitura de Scorsese e Kazantzakis, junto ao roteirista Paul Schrader, mostra-se muito mais interessante que a concepção tradicionalmente acatada, tão destituída de humanidade.


O diretor húngaro Ladislao Vajda filmou em 1955 o terno e sensível “Marcelino Pão e Vinho”, que trazia como protagonista o jovem e carismático Pablito Calvo. A obra cativou públicos de todas as idades com a história de um menino órfão que é deixado em um mosteiro. Solitário e ingênuo, o pequeno acaba fazendo amizade com uma enorme estátua do Cristo crucificado, com a qual conversa. É encantadora a forma como a trama trabalha a pureza da criança. O meu filme favorito do gênero, o responsável por minha paixão pelo cinema, como já citei em textos anteriores, não aborda centralmente Jesus, mas acredito que é o que melhor se utiliza de sua figura: “Ben-Hur” (1959), de William Wyler, com Charlton Heston no elenco. No épico embate entre o judeu vivido por Heston e seu inimigo romano, vivido por Stephen Boyd, na clássica corrida de quadrigas, existe uma motivação muito bem construída. Judah Ben-Hur outrora havia sido um príncipe. Ele perdeu tudo após ser traído por seu amigo de infância: Messala, que cresceu e se tornou um centurião romano ambicioso e arrogante. Após uma infeliz tragédia, o príncipe vê sua vida destruída ao ser levado para as galés. 


O roteiro deixa claro que a cada virada de seu remo, o ódio e o desejo de vingança crescia nele, junto à angústia de não saber o paradeiro de sua mãe e irmã, abandonadas no vale dos leprosos. Na obra literária de Lew Wallace e na versão muda de 1925, o personagem de Jesus e o contexto bíblico são muito presentes, quase que dividindo a obra em duas partes distintas. Na celebrada refilmagem, Cristo se mostra menos presente visualmente, mas seus atos ecoam ao longo de toda projeção. Ele ensina ao jovem revoltado que o caminho da espada nunca é solução, o ódio só alimenta o ódio, a maior rebeldia em um mundo corrupto é se manter íntegro. Outro grande acerto dos produtores foi não mostrar seu rosto, fazendo com que sua presença fosse notada pelo uso magistral da impressionante trilha sonora de Miklos Rozsa. Wyler não quis fazer sermão para ninguém, apenas contar uma bela história que poderia ter como pano de fundo qualquer período histórico. Acredito que este filme transcende qualquer tipo de limitação filosófica, religiosa ou cultural.

Mesmo um ateu pode perceber que a história de Jesus tem todos os elementos de um grande herói mítico, com a glória, queda e a redenção ao final. Mel Gibson conseguiu transpor a sua visão da queda de maneira excruciante no ótimo “A Paixão de Cristo” (2004). Poucas cenas são tão emocionantes quanto uma desesperada Maria indo socorrer seu filho caído no chão, após não ter suportado o peso da cruz. A beleza da edição, que intercala o momento trágico com um flashback da mãe e do filho ainda criança, aliado a uma linda trilha sonora de John Debney, já valem a experiência difícil de assistir o sofrimento que o diretor intencionalmente nos mostra ao longo da projeção. Uma obra completamente antagônica à visão de Gibson é “Rei dos Reis” (1961), do mestre Nicholas Ray. Aproveitando o sucesso que os épicos religiosos estavam fazendo na época, com filmes como “Os Dez Mandamentos”, “Quo Vadis” e “O Manto Sagrado”, Hollywood decidiu dar uma face ao personagem central do catolicismo. Escolheram para esta missão o jovem Jeffrey Hunter, que possuía fama de bom moço e nunca havia se envolvido em nenhum escândalo que abalasse sua persona pública. O filme, narrado por Orson Welles, reconta de forma bastante didática e poética os eventos descritos no Novo Testamento. Com a ajuda da imponente trilha de Miklos Rozsa são apresentadas cenas de incrível beleza estética, que acabaram tornando-se referências no gênero. Passagens como o sermão da montanha exalam refinamento e emocionam sobremaneira. É, sem dúvida alguma, a versão cinematográfica de Jesus mais elegante já realizada. 


Já o italiano Franco Zefirelli exagerou no didatismo em seu monumental “Jesus de Nazaré” (1977), esquecendo que estava criando um produto para todos os tipos de público, não uma exibição de slides para uma palestra católica. Rico em informações, mas estruturalmente fraco e com esparsos momentos de genuína emoção. O grupo inglês Monty Python, com sua genial verve cômica, nos convida a ver a história do messias por outro ângulo em seu precioso “A Vida de Brian” (1979). Caso assistido em sessão dupla com outra obra prima do grupo: “O Sentido da Vida” (1983), mostra-se uma experiência que abre mentes e amplia conceitos enquanto diverte. Um bom exemplo de crítica eficiente ocorre no segundo filme citado, um pai católico explica à sua extensa prole que terá que doar as crianças para experiências científicas, já que o Vaticano proíbe os métodos anticoncepcionais e ele está financeiramente quebrado. A cena é conduzida como um grande musical, com direito a freiras dançarinas e um refrão que defende: “Caso um esperma seja jogado fora, Deus ficará muito irado”.

O cinéfilo pode escolher sua versão favorita: O Jesus humano e questionador (logo, combatido pela igreja católica) de Scorsese e seu polêmico “A Última Tentação de Cristo”, o Jesus puramente simbólico e inocente que ajuda Pablito Calvo no clássico “Marcelino, Pão e Vinho”, o Jesus didático de Zeffirelli em seu gigantesco “Jesus de Nazaré”, o Jesus poético, loiro e de olhos azuis de “Rei dos Reis”, o Jesus transgressor e musical de “Jesus Cristo Superstar”, entre muitos outros. O cinema une a todos e nos faz discutir ideias e subverter conceitos. Seria louvável se as organizações religiosas criadas pela ganância do homem também fossem assim.

"12 Homens e Uma Sentença", de Sidney Lumet


12 Homens e Uma Sentença (12 Angry Men - 1957)
É possível escutar os tambores de guerra no horizonte, vivemos tempos sombrios, líderes políticos promovendo ódio, segregação cruel, valores invertidos em todos os níveis da sociedade, medo e dor, angústia e fome, o mundo parece estar nas mãos de loucos e psicopatas, o apedrejamento nunca foi tão incentivado nas redes sociais, justiceiros virtuais que compartilham notícias falsas e são facilmente manipulados, aderindo a modismos imediatistas, frases repetidas pelo prazer de se sentir parte da manada, gostos moldados servindo aos interesses dos titereiros, vivemos a era da informação ao alcance de todos, mas grande maioria do povo perdeu o elemento fundamental do interesse.

Um adulto alfabetizado que enxerga alguma verdade na estratégia torpe de um programa televisivo que melhora seus pontos de audiência com uma polêmica grosseiramente engendrada. Um jovem alfabetizado que aplaude fervorosamente um político estúpido defensor do clássico “direitos humanos para humanos direitos”. Figuras que respiram, comem, caminham e falam, mas não passam de zumbis em estado vegetativo, intelectualmente vazios. O mundo precisa urgentemente de pessoas como Davis, o personagem vivido por Henry Fonda.

O roteiro gira em torno do julgamento de um jovem porto-riquenho que é acusado de ter matado o próprio pai. Doze jurados são convocados para decidir a sentença. Onze deles, movidos por razões egoístas e por puro preconceito, votam sem pensar duas vezes pela condenação. O jurado número oito (Fonda) é um homem de caráter íntegro, ele acredita que o jovem deve ser considerado inocente até que se prove o contrário. Os seus colegas se revoltam com essa atitude, a pequena sala de júri é abafada, o calor intensifica os ânimos. Não há qualquer senso de empatia deles pelo rapaz, uma vida dispensável, o estranho responsável por aquela tarde perdida. A voz dissonante é a mais baixa na mesa, o homem introvertido, elegante, de poucos gestos, o rebelde que pede apenas para que seus pares argumentem, dedicando tempo ao caso, atenção sincera, em suma, um clamor por humanidade.

O senso comum forja verdades frágeis, convicções são alimentadas por sentimentos pequenos, a memória é capaz de criar situações impossíveis, as provas teoricamente inabaláveis podem ser aniquiladas caso analisadas por outro ponto de vista, o ser humano enxerga aquilo que quer ver, projetando no outro as suas frustrações e desejos mais íntimos. O brilhante diretor Sidney Lumet, trabalhando o roteiro de Reginald Rose, reduz ao máximo o espaço cênico, a trama se passa quase que inteiramente nesse único local, uma decisão muito acertada. O suspense é estruturado nos diálogos, no embate franco de ideias. A solução se dá a partir do questionamento, recurso cada vez mais raro em nossa sociedade.

É fundamental que os seres humanos despertem desse coma existencial, não é possível que essa tragédia anunciada não possa ser evitada. A minha esperança reside naquele indivíduo que, contra todas as probabilidades, levanta a mão e pede a palavra, ousando confrontar o pensamento medíocre dominante.

terça-feira, 11 de abril de 2017

"Dogma", de Kevin Smith


Dogma (1999)
O mundo corre o risco de desaparecer. Tudo por causa de Bartleby (Ben Affleck) e Loki (Matt Damon), dois anjos expulsos do céu e que querem retornar a qualquer custo. Para tanto, eles têm um plano: Cruzar o portal de uma igreja em New Jersey para, absolvidos de seus pecados, poderem retornar ao paraíso. Só que tal ato provaria que Deus é falível e, como consequência, a realidade se desmancharia. Para evitar que a tragédia ocorra é montada uma equipe de combate aos anjos, formada pela última descendente de Jesus Cristo (Linda Fiorentino), um 13º apóstolo negro (Chris Rock), dois profetas (Jason Mewes e Kevin Smith) e uma Musa Inspiradora (Salma Hayek).

Eu lembro que tomei conhecimento do filme à época da estreia nas páginas da revista Sci-Fi News, o tema e a abordagem me fizeram vibrar por antecipação. Eu já gostava muito do trabalho do roteirista/diretor Kevin Smith, “O Balconista” e “Barrados no Shopping”, que gravei de exibições no Telecine, quando a televisão a cabo ainda era uma novidade lá em casa. Ele é o tipo de pessoa que consegue transformar qualquer assunto em algo hipnoticamente interessante, basta ver como ele domina a plateia até hoje em suas apresentações com um senso de humor muito afinado. O roteiro é brilhante, a cantora Alanis Morissette interpreta “Deus” como uma criadora com senso de humor, Chris Rock faz um apóstolo negro amargurado por não ter sido citado na Bíblia, Salma Hayek e Alan Rickman aproveitam cada segundo, cada linha espirituosa de texto, como figuras divinas nada convencionais. 

Para um adolescente questionador, ávido leitor de Carl Sagan, Isaac Asimov e outros mestres do gênero, nada poderia ser mais bem-vindo que uma divertida crítica à religião organizada. E “Dogma”, como já se poderia esperar, foi muito apedrejado pelos encabrestados religiosos, apesar de ser essencialmente uma celebração da fé. É como salienta o anjo supremo Metatron, vivido por Alan Rickman, os humanos só se importam em conhecer a matéria na superfície, eles são capazes de manter crenças sem qualquer conhecimento sobre o tema. Logo nas primeiras cenas, uma personagem afirma que se cansou de ir às missas e não sentir nada, o ritual é a perfeita antítese de tudo o que Jesus pregou, ele era o primeiro a dizer que a oração devia ser um ato solitário do indivíduo, ele odiaria saber que templos foram levantados em seu nome. Mas, nesse mundo moderno tão exótico, até mesmo feministas podem ser católicas, o estudo é algo cada vez mais menosprezado, adultos alfabetizados ainda enxergam alguma relevância divina na figura de um Papa, nada mais justo que Smith convocar o saudoso comediante George Carlin, ateu fervoroso, para viver um padre que busca uma imagem simbólica mais boa praça do Cristo, algo menos depressivo que o corpo crucificado usual para tentar renovar o interesse do povo pela igreja, o sorridente “Buddy Christ”, profetizando, de certa forma, a estratégia eficiente que colocou Jorge Mario Bergoglio como o atual Chefe de Estado do Vaticano, alguém que é capaz até de, numa ousadia tremenda para alguém acima de seis anos de idade, afirmar publicamente que Adão e Eva não são reais. E, o pior, a imprensa do mundo todo repercutiu essa atitude altamente polêmica. Alguns analisam que a civilização humana não está preparada para o encontro com alienígenas. Já eu, mais pessimista ao constatar esses fatos, creio que ela não está preparada sequer para decidir se vai comer pão com manteiga ou ovos mexidos no café da manhã.

Ao final da sessão, a proposta de reflexão é irresistível. A fé é preciosa, Jesus ensinou que o amor é a única verdade, mas as organizações religiosas foram criadas pela ganância humana, pelo gosto do homem por poder, possibilitando absurdos como os cometidos pelos pastores neopentecostais televisivos, a redução da mulher ao papel de causadora de todos os males históricos, a segregação de homossexuais, o cruel sentimento de culpa nos fiéis que se relacionam sexualmente antes do casamento, ou nos divorciados, a omissão criminosa nos atos de Hitler, os assassinatos cometidos pela Santa Inquisição, entre muitos outros. É preciso querer abrir os olhos. Será que a massa facilmente manipulada está preparada para isso?

domingo, 9 de abril de 2017

"Os Picaretas", de Frank Oz


Os Picaretas (Bowfinger - 1999)
Sendo um produtor/diretor de cinema independente, eu me identifico profundamente com a angústia do personagem vivido por Steve Martin, Bobby Bowfinger, um sonhador que cria as próprias oportunidades, utilizando os recursos disponíveis. O roteiro escrito pelo ator é, de fato, por trás de todas as sequências hilárias, uma declaração de amor aos cineastas independentes. “Chubby Rain” (gotas de chuva gordinhas), invasão de alienígenas em gotas de chuva, conceito absurdo pensado por um contador sem experiência na área, que, aos olhos de um desesperado falido, simboliza um oceano de possibilidades criativas. O problema é que o protagonista, o astro internacional Kit Ramsay, não pode saber que está sendo filmado e que fará parte do filme. É quando a trama encontra a solução em uma crítica maravilhosa à cientologia criada pelo escritor L. Ron Hubbard, seita tola defendida no mundo real por nomes como Tom Cruise, John Travolta e Will Smith, uma prova de que dinheiro não aprimora a inteligência do indivíduo. Eddie Murphy, em seu último grande papel cômico, homenageia novamente Jerry Lewis ao abraçar duas personas radicalmente opostas, o arrogante astro de cinema e seu irmão Jiff, tímido, desajeitado e ingênuo. 

Quando o riso é causado ao colocar sapatos femininos nas patas de um cão, artifício encontrado para criar a ilusão que será montada na sala de edição, você pode enxergar uma gag visual simplória, mas, na realidade, a ação sintetiza a mágica do cinema, arte que nasceu de um acidente técnico, evoluiu anos depois com Méliès descobrindo no susto que a edição poderia operar truques, até cair nas mãos dos russos, que revolucionaram a narrativa visual pela montagem. Bowfinger une a gravação anterior da atriz solitária na locação com a cena do cão seguindo o astro que ignora estar sendo filmado, típico material que faria Ed Wood vibrar, basta lembrar o que ele fez com Bela Lugosi em “Plano 9 do Espaço Sideral”, inserindo um sósia escondendo o rosto para não desperdiçar os segundos que já haviam sido gravados antes de seu falecimento. A equipe reunida para essa missão não tem qualquer conhecimento básico sobre o tema, o diretor resgata alguns imigrantes ilegais mexicanos na fronteira, convoca uma jovem (Heather Graham) que está disposta a se deitar com todos os profissionais envolvidos no projeto, uma tragédia anunciada. É picaretagem passional, o sentimento que guiou nomes como Jess Franco e os genéricos de Bruce Lee na década de setenta, força que move atualmente cineastas como Kevin Smith, gente que verdadeiramente ama o que faz e que não se permite ser impedida de trabalhar por qualquer motivo. 

"Os Picaretas" é uma das melhores comédias da década de noventa. Veja, nem que seja apenas pela impagável sequência em que Jiff precisa atravessar correndo a autoestrada, acreditando que os carros são dirigidos por dublês. Ao chegar do outro lado, já traumatizado para o resto da vida, ele precisa escutar Bowfinger pedir mais uma tomada. Tudo pelo amor ao cinema. 

quarta-feira, 5 de abril de 2017

TOP - 2009


1 - O Lutador (The Wrestler), de Darren Aronofsky
"... Poucos filmes conseguiram retratar tão bem a decadência de um indivíduo. O lutador acostumado a fingir dor na arena, percebe que o pior oponente é a solidão, a culpa, a consciência de que não é aceito na sociedade..."


2 - Gran Torino, de Clint Eastwood
“... O preconceito, o medo do desconhecido, o retrato perfeito da ignorância é representado pelo personagem vivido por Clint Eastwood, inserido em uma sociedade que só dá valor ao próximo enquanto ele a serve de alguma forma...”


3 - A Partida (Okuribito), de Yôjirô Takita
"... O que morre é o corpo, desaparece nas labaredas da cremação ou é dissolvido de volta à mãe terra. Sobrevive o legado, as boas atitudes que continuarão inspirando próximas gerações, o sentimento passado e que, de tão sincero, continua a ressoar em todos aqueles que foram tocados por sua presença. Como aceitar que a máquina responsável por essa infinidade de sensações, após seu desligamento, seja manipulada com desleixo por estranhos?..."


4 – Lunar (Moon), de Duncan Jones
“... Nada mais justo que o filho de David Bowie, “O Homem que Caiu na Terra”, ser o responsável pelo melhor filme sci-fi dos últimos anos. O isolamento do astronauta na lua estimula reflexões no nível dos melhores livros de Isaac Asimov...”


5 - Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds), de Quentin Tarantino
“... Só a longa sequência inicial protagonizada por Christoph Waltz já seria mérito suficiente, mas Tarantino, equilibrando bem seus impulsos de violência, consegue entregar algo que transcende a diversão escapista, o roteiro ludicamente reescreve as páginas da História...”


6 - Mártires (Martyrs), de Pascal Laugier
“... O melhor filme de terror do ano é francês, uma pérola gore de baixo orçamento que me remete à época em que o gênero não tinha receio de agredir os sentidos...”


7 – Alexandria (Ágora), de Alejandro Amenábar
“... A história da matemática grega Hipátia, que chocou a sociedade de sua época por sua paixão pelos estudos, desafiando os dogmas católicos e a mentalidade machista que a queria ver intelectualmente vazia...”


8 - Up – Altas Aventuras (Up), de Pete Docter e Bob Peterson
“... Os primeiros dez minutos sintetizam a sensibilidade impressionante com que os diretores trabalham o relacionamento humano, uma maturidade emocional difícil de encontrar até mesmo nos dramas convencionais mais celebrados...”


9 - Dúvida (Doubt), de John Patrick Shanley
“... O tema espinhoso do padre acusado de pedofilia é trabalhado com elegância, alicerçado nas atuações poderosas de Meryl Streep, Amy Adams, Viola Davis e Philip Seymour Hoffman, compondo um retrato que permite ao espectador analisar os pontos de vista com lucidez...”


10 - (500) Dias Com Ela ((500) Days of Summer), de Marc Webb
“... Um revigorante sopro de ar fresco que subverte o gênero da comédia romântica, buscando inspiração em “Annie Hall”, com a sensibilidade conectada ao seu tempo, Marc Webb é um jovem diretor de futuro promissor...”

domingo, 2 de abril de 2017

Tesouros da Sétima Arte - "Os Verdes Anos", de Paulo Rocha


Os Verdes Anos (1963)
O cineasta português Paulo Rocha faleceu aos setenta e sete anos no dia 29 de dezembro de 2012, após um acidente vascular cerebral. Deixando para trás uma carreira estável como advogado, o jovem preferiu seguir seu sonho e absorver a arte dos franceses, em especial Jean Renoir, de quem foi assistente, voltando para seu país disposto a redefinir o cinema que lá era feito. Nas décadas anteriores, o povo português abraçava o humor simples das comédias de Vasco Santana, enquanto que filmes mais pretensiosos, quase sempre medianos, como “Saltimbancos”, que Manuel Guimarães lançou em 1951, falhavam em estabelecer conexão com seu público. No início dos anos sessenta, influenciados pelo neo-realismo italiano e pela nouvelle vague francesa, diretores como Fernando Lopes, do média-metragem: “Belarmino”, José Ernesto de Sousa, de “Dom Roberto” e Paulo Rocha, abriram novas possibilidades para o cinema português.

Levando suas câmeras para as ruas de Lisboa, sem medo de expor os contrastes sociais, ele filmou seu primeiro trabalho: “Os Verdes Anos”, contando de forma simples a relação entre um jovem (Rui Gomes) ingênuo recém-chegado do interior e uma empregada doméstica (Isabel Ruth) da cidade grande. O roteiro, em pouco tempo, estabelece eficientemente a essência de cada personagem. O garoto inseguro que se defende dizendo: “Um homem sem dinheiro é como um carro sem gasolina”, ou que se intimida no salão de dança ao som de um rockabilly. A menina deslumbrada que desfila para ele, trajando os vários vestidos de sua patroa. Salvo por um americano de uma briga com seu tio (Paulo Renato) em um bar, o garoto caminha pelas ruas acompanhado de seu novo amigo, sem que nenhum dos dois entenda o que está sendo dito pelo outro, o americano afirma em dado momento: “Não entendo uma palavra do que diz, mas estou inclinado a concordar”, traduzindo de forma brilhante o conflito do rapaz com a hipocrisia da cidade e de seu povo, numa crítica bem-humorada e ainda atual. Ao final, como em uma das variações da canção “Construção”, de Chico Buarque, a simbólica morte da sua juventude ingênua e interiorana, acarretada por uma decisão intempestiva e inconsequente, acabou atrapalhando o tráfego.

O tema e a condução podem ter envelhecido de forma pouco generosa, mas a sua trilha sonora, composta pelo genial e saudoso guitarrista Carlos Paredes, que respondeu ao convite do diretor e identificou-se com o tema, resiste bravamente, emocionando como sempre. Um filme que precisa ser garimpado pelo cinéfilo brasileiro dedicado.